Por Kelly Susane Alflen
Pedir perdão por uma injustiça é, afinal, assumir alguma responsabilidade por ela. E uma pessoa não pode pedir desculpas por algo que não fez. Ou seja, como você pode pedir perdão por algo que foi feito antes de você nascer?
John Howard, primeiro ministro australiano, usou esse argumento para rejeitar o pedido oficial de desculpas aos aborígenes. “Não acredito que a geração atual de australianos deve pedir perdão formalmente ou assumir a responsabilidade pelos atos de gerações anteriores. Argumento semelhante foi usado no debate nos Estados Unidos relativo às indenizações pela escravidão.
Henry Hyde, deputado republicano, criticou a ideia de indenizações com base neste argumento: “Nunca tive um escravo. Nunca oprimi ninguém. Não vejo por que deveria pagar por alguém que fez isso [possuiu escravos] muitos anos antes de eu nascer”. Walter E. Willians, economista negro contrário às indenizações, expressou um ponto de vista semelhante: “Estaria tudo certo se o governo ganhasse o dinheiro de Papai Noel. Mas o governo teria de tirar o dinheiro dos cidadãos, e nenhum cidadão ainda vivo foi responsável pela escravidão”.
Cobrar impostos dos cidadãos de hoje para indenizar por erros passados pode dar origem a um problema especial. No entanto, essa mesma questão surge nos debates sobre desculpas que não implicam compensação financeira.
Quando se conta de pedir perdão, o que conta é a ideia. E a ideia em questão é o reconhecimento da responsabilidade. Todos deploram as injustiças. Mas apenas alguém que esteja de alguma forma implicado na injustiça pode pedir desculpas por ela. Os críticos do pedido de desculpas compreendem corretamente as implicações morais. E repudiam a ideia de que a atual geração possa ser moralmente responsabilizada pelos pecados de seus antepassados. Logo, um pedido de desculpas deste gênero, equivale a um pedido de desculpas por atos realizados pelo“trisavô”, no mínimo.
Pedir aos cidadãos democráticos que abandonem suas convicções morais e religiosas ao entrar na esfera pública pode parecer uma forma de garantir a tolerância e o respeito mútuo. Na prática, entretanto, pode acontecer justamente o contrário. Decidir sobre importantes questões públicas (e também privadas) fingindo uma neutralidade que não pode ser alcançada é receita para o retrocesso e o ressentimento.
Dos pedidos públicos de desculpas e indenizações que vão desde a responsabilidade coletiva por injustiças históricas, tais como os judeus pleiteando indenizações em razão do holocausto se apresentam as responsabilidades específicas, que crescem em larga escala, e dentre as quais já se pode contabilizar no afã da cotidianidade desde decepções, frustrações e traições, que se um dia iam para a conta das agruras pessoais, hoje são reconhecidas como dano moral. Assim é que no cenário das indenizações surge a noiva deixada ao pé do altar, o bufê que falhou no serviço, ou mesmo os filhos abandonados afetivamente pelos pais como em recém decisão festejada ou, quem sabe ainda, a mulher traída pelo marido.
A par disso, os negros reivindicam cotas. No entanto, a qualquer momento podem, ainda, pleitear outros prejuízos. Provavelmente, os gays também queiram reparação pelo que o preconceito lhes tomou. E as mulheres? Oprimidas durante séculos. E, os índios, aborígenes. Enfim, o que importa, é que essas e outras ainda são questões indissociáveis de concepções relativas à moral e à culturalidade.
O que também parece um convite a moralismos limitados e intolerantes. Logo, o medo de cairmos em um “sermão moral” pode levar-nos a minimizar o papel que os valores e a cultura desempenham em alguns de nossos mais prementes problemas sociais. E, o que parece, a princípio, um contrassenso tem sido servido a que a aspiração à neutralidade tenha como base uma “filosofia pública moral subjacente” do poder público, e que tem feito consentir em pedidos públicos de desculpas e indenizações.
Daí porque, a exemplo da Suprema Corte dos EUA dos EUA que votou a favor do direito ao casamento homossexual, em alguns meses mais tarde a maioria do eleitorado derrubou a decisão em um plebiscito estadual. E, já em 2009, Vermont foi o primeiro estado a legalizar o casamento gay por meio da lei, e não por decreto (decisão) judicial. Isso não é nada sugestivo.Todavia, o casamento, ou mesmo “uniões” são questões para que, levem ou não –de modo sério – “o selo governamental de aprovação”.
O debate sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo é fundamentalmente um debate sobre valor das uniões gays, sobre se elas merecem o mesmo respeito e o mesmo reconhecimento que a sociedade outorga ao casamento sancionado pelo Estado. Desse modo, a questão moral implícita é inevitável. Ad exempla, pois, isto também serve, no que diz respeito à recém decibilidade concernente às cotas para negros, particularmente, quando em sede de Estado Democrático de Direito, pois também é questão de moralidade e culturalidade.
E, em sede de Estado Democrático de Direito, em que os comandos são dados pelos princípios fundamentais regedores do Estado, há de pensar, que uma “filosofia pública moral subjacente” conduz, inevitavelmente, a um dilema de lealdade para com o povo, e do Estado para com o povo, mas não apenas com um justificável débito histórico de Estado-para-Estado como no caso das cotas universitárias.
Eis os dilemas de lealdade: é possível que, em virtude do contexto cultural e estatal emergente se passe a considerar que respeitar as convicções dos compatriotas signifique ignorá-las (pelo menos para propósitos políticos). Mas essa evasiva de parte do poder público revela um respeito espúrio pelo povo, que, com freqüência, significa suprimir as divergências “morais e históricas” em vez de evita-las. E isso pode provocar retrocessos e ressentimentos do Estado em face ao povo. Pode também traduzir um discurso público empobrecido, que se reproduz intermitentemente, preocupado apenas com o que é escandaloso, sensacionalista e trivial. Um comprometimento público maior com essas divergências proporcionaria uma base para o respeito mútuo mais forte, e não mais fraco.
Afinal, não obstante a interdependência entre os Poderes, quando se trata de chancelar com o “selo governamental de aprovação” determinados direitos, isso ainda é algo para o legislador, e não para juízes. O que conduz, certamente, a uma política de engajamento e comprometimento moral, e não apenas a uma política de esquiva do debate. É essa a liberdade e a responsabilidade que deve haver, de se saber em que sociedade se está, e qual realmente se quer. Até quando, dilemas de lealdade se produzirão sob o manto de uma filosofia pública moral subjacente? Ou, de outro modo: de que forma e para onde vai o Estado? Pois, que produzir justiça, é produzir com liberdade, mas com responsabilidade, ainda que seja assumir a responsabilidade da avocação por um débito histórico, transferindo ao povo o débito distributivo, e de hoje! O mesmo serve para outros “novos direitos” e ineditismos.
O desafio é imaginar uma política que leve a sério as questões de justiça e de responsabilidade. Eis que para além de se perguntar de que forma vai e para onde vai o direito público estatal, pode-se interrogar até onde chega o direito penal moderno?
É de se pensar.
Kelly Susane Alflen é advogada, doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade do Porto (Portugal) e professora da Faculdade de Direito de Santa Maria (RS).