Abertura de inquérito contra devedores é equivocada

Por Maurício Silva Leite

Já faz algum tempo que o Supremo Tribunal Federal julgou o Habeas Corpus 81.611/DF onde, em Sessão Plenária, por maioria de votos, condicionou a configuração do crime contra a ordem tributária à pré-existência de auto de infração lavrado pelo órgão fiscal, convalidado em todas as instâncias do respectivo processo administrativo tributário.

A decisão da mais alta Corte de Justiça do país poderia parecer previsível nos tempos atuais, já que, afinal de contas, sem que se tenha um pronunciamento prévio dos órgãos fiscais acerca da incidência do tributo em determinada operação, não se pode cogitar de uma “virtual” sonegação fiscal, já que, no Estado Democrático de Direito cada um exerce a função para a qual foi incumbido, segundo os estritos termos da Constituição Federal. É dizer: a Polícia investiga, o Ministério Público denuncia, o juiz julga e o Fisco tributa. A questão dirimida, inclusive, foi objeto da Súmula 24 do Supremo Tribunal Federal, que afastou a incidência do crime de sonegação fiscal, previsto no artigo 1º da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo.

Todavia, até que o Supremo Tribunal Federal dissesse, aparentemente, o óbvio, foram instauradas inúmeras investigações, algumas delas com posterior oferecimento de denúncia, sem que houvesse qualquer pronunciamento dos órgãos fiscais sobre algo que é fundamental para a existência do crime contra a ordem tributária: o reconhecimento que o tributo é devido.

No entanto, em julgamento recente do Habeas Corpus 108.037/ES, em que se discutia um destes casos onde o processo penal precedeu o julgamento do processo administrativo tributário, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal convalidou a apuração criminal, o que contrariou o entendimento, até então, pacificado no Supremo Tribunal Federal. Não devemos ignorar que o caso concreto julgado pela 1ª Turma do STF tinha características peculiares que foram levadas em consideração pelos Ministros que participaram do julgamento em questão, o que, por si só, afasta a aplicação automática e indiscriminada desta decisão a todos os casos de sonegação fiscal.

Inobstante a decisão acima mencionada, continuamos com o posicionamento adotado pela Súmula 24 do STF, no sentido de que somente será possível cogitar a existência de crime de sonegação fiscal, após a constituição definitiva do crédito tributário. Segundo as regras de direito penal, o crime do artigo 1º, da lei 8.137/1990, comumente intitulado de crime de sonegação fiscal, é delito material ou de resultado, cuja consumação somente é possível após a efetiva constatação de supressão ou redução de determinado tributo, matéria reservada aos órgãos fiscais.

Mais do que isso, mesmo após a constituição definitiva do crédito tributário, não é permitido aos órgãos de acusação iniciar persecução penal de forma automática, sem uma análise aprofundada do caso concreto. De forma completamente equivocada, a grande maioria dos autos de infração confirmados em sede administrativa tem sido encaminhados ao Ministério Público, para a abertura de inquérito policial ou ação penal de sonegação fiscal. Ocorre que, nem toda dívida tributária é decorrente de sonegação fiscal. Nem todos os contribuintes que devem impostos praticaram crime contra a ordem tributária.

A norma que regula os crimes contra a ordem tributária, sobretudo o artigo 1º, da Lei 8.137/1990, exige que a supressão (eliminação total) ou redução (eliminação parcial) de determinado tributo venha acompanhada de uma fraude para que seja possível falar em crime.

Neste passo, a título de exemplo, somente quem ilude a fiscalização mediante determinada fraude, quem falseia os registros de sua escrituração ou omite dolosamente registros necessários, obtendo, com esta prática, um resultado mais favorável em sua apuração tributária, pode ser tido por sonegador segundo a norma legal.

É lamentável o tratamento que tem sido dado à norma penal, que hoje serve como instrumento de cobrança de impostos, podendo ser equiparada a uma espada apontada para a cabeça do contribuinte, prestes a atingi-lo em caso de não pagamento da sua dívida tributária.

Evidentemente, existem casos em que o processo penal tem cabimento, considerando que a conduta verificada se mostrou fraudulenta e se amolda às hipóteses de crime contra a ordem tributária previstas na lei de regência.

Estas situações, por óbvio, devem ser apuradas por meio do devido processo penal, até porque o crime de sonegação fiscal afeta a arrecadação pública e, consequentemente, a destinação social que deve ser dada aos recursos arrecadados. Por outro lado, é imprescindível adotar-se critérios técnicos para distinguir a figura do devedor e a do sonegador. O simples fato de dever tributos não é crime, até porque a nossa Constituição Federal não admite prisão por dívida.

Maurício Silva Leite é criminalista, sócio do escritório Leite, Tosto e Barros Advogados e presidente da Comissão de Cumprimento de Penas da OAB-SP.

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