"aborto de feto anencefálico – duas reflexões"

Há cerca de três semanas, na última sessão antes do recesso, o Supremo Tribunal Federal brindou-nos com uma corajosa e importantíssima decisão, que sem dúvidas deve repercutir bastante no meio médico. É verdade que se trata, por ora, apenas de uma medida liminar, da lavra do eminente Ministro Marco Aurélio, concedida nos autos de uma argüição de descumprimento de preceito fundamental, com eficácia, portanto, erga omnes. Todavia, já é um bom começo, para tentar resolver um drama do qual muitos operadores do Direito fogem, escondendo-se covardemente atrás de uma interpretação literal do velho Código Penal de 1940 – a questão do aborto eugênico nas hipóteses de feto com anencefalia.

É verdade que, pela letra da Lei, só se permite o aborto sentimental e o aborto necessário – respectivamente quando a gravidez é oriunda de estupro ou não há outro meio para salvar a vida da gestante (art. 128 do Código Penal). O código não previu o aborto eugênico, nem em caso de anencefalia, parecendo, para o intérprete preguiçoso, que se contenta com a interpretação literal, que, em sendo assim, constitui crime interromper a gravidez em hipóteses tais, mesmo sabendo, com 100% de certeza médica, que o feto ou morrerá durante a gestação ou, no máximo, algumas horas depois de cortado o cordão umbilical.

Pergunta-se: será que a lei penal está a proteger tão-somente a gravidez, apenas enquanto fenômeno fisiológico, pouco importando a higidez do feto, ou será que o bem jurídico protegido é o feto em condições de se desenvolver sadiamente? Em outras palavras – nos casos de anencefalia, o feto não possui cérebro. O que nos diferencia dos animais é, exatamente, a capacidade de raciocinarmos: faz sentido conferir a dignidade de pessoa a um feto que, infelizmente, ainda que pudesse sobreviver à separação da mãe, jamais teria condições de raciocinar? Embora pareça óbvio que não, somente agora a mais alta Corte do País teve a coragem de proclamar o que nos parece ser de extrema obviedade, isto após, em instâncias inferiores, mães gestantes de feto com anencefalia terem que amargar o sofrimento provocado pela covardia dos operadores do direito, que lhes impuseram a dor de ter que levar adiante a gestação de um filho, por nove meses, apenas para, ao nascer, vê-lo morrer.

Esta postura é irracional! Inadmissível em pleno século XXI! Decisões judiciais deste porte beiram as raias do sadismo! Parecem tripudiar com o sofrimento das mães, dos pais e demais familiares envolvidos no sublime e maravilhoso fenômeno da gravidez.

Antes tarde do que nunca. Sugiro ao meio médico a promoção de eventos que tenham por tema este assunto, porque é importante divulgar e dissecar em toda sua plenitude a posição assumida pelo Supremo Tribunal Federal, que, paradoxalmente, me parece um marco na defesa da vida.

A IGREJA E O ABORTO DE FETO ANENCEFÁLICO

Às vezes o medo da renovação e a timidez na abertura a novos conceitos leva instituições tradicionais a persistir num erro: cultuar dogmas como se fosse pecado mudar. Não pode ser assim. O ser humano é inteligente e isto é um dom de Deus. Se é assim, é natural que o domínio do conhecimento o leve a refletir sobre certos dogmas, sendo inevitável que desta reflexão resultem mudanças que, quem não acompanhar, certamente estará fadado a perder o bonde da História e, depois, quando for tarde demais, acabar admitindo e se penitenciando por séculos de intolerância e radicalismo. Foi assim por ocasião das Inquisições, do período de caça às bruxas e aos hereges que a Igreja comandou na Idade Média; foi assim com Galileu, que cometeu o pecado de apregoar que o mundo era redondo; está sendo assim com a questão do aborto dos fetos anencefálicos. Para quê Deus permitiu que o homem inventasse a ultrassonografia, se não pode se valer de suas evidências e fazer cessar uma gestação cujo produto está fadado a morrer?!

Será que Deus quer impor que se gere, por nove meses, não uma vida; mas uma morte?!. Veja-se o que os dicionários definem como anencefalia: “monstruosidade em que não há abóbada craniana e os hemisférios cerebrais ou não existem, ou se apresentam como pequenas formações aderidas à base do crânio”. Os dicionários definem a criança anencefálica como uma monstruosidade. Será que é vontade de Deus que a mulher seja obrigada a gerar, por nove meses, uma monstruosidade?! Não se pode conceber tamanho absurdo!

O bom senso diz que tal concepção de vida – a de uma monstruosidade – é uma aberração maior do que a própria monstruosidade. Isto sem falar nos riscos que a própria gestante corre ao longo da gravidez, por estar gerando a morte dentro de si. Onde está a dignidade da pessoa humana? Por quê se descuidar do sofrimento da gestante? Nem que se entendesse esse sofrimento como um castigo, a reprimenda encontraria abrigo dentro de um mínimo senso de razoabilidade e de proporcionalidade. Seria de uma maldade ímpar supor que a tragédia de se descobrir que o filho tão querido é uma monstruosidade que vai morrer durante a própria gestação ou, quando muito, algumas horas depois de “nascer” é uma provação de Deus à qual o homem não poderia recusar e, portanto, não lhe seria lícito interromper o calvário. Talvez eu seja muito ignorante no assunto mas, com o perdão de minha ignorância, não me parece, ou melhor, não pode ser este o Deus a que tantos milhões e milhões de pessoas amam e guardam devoção em todo o mundo. Prefiro acreditar que Ele esteja, neste caso, sendo mal interpretado pela Igreja; do que acreditar que esta seja realmente a Sua vontade.

A propósito: nunca vi discussões sobre licitude da retirada de órgãos para transplante. A lei que regula o assunto a permite em casos de morte cerebral. Nunca vi ninguém dizer que isto seria homicídio: retirar órgãos de paciente com morte cerebral – inclusive o coração. Nem a Igreja, ao que sei, condena esta retirada de órgãos para transplante. Pois bem: como se admitir – e não se cogitar de homicídio – a retirada de órgãos para transplante de pacientes cujo cérebro morreu e não se querer permitir – cogitando de aborto – a interrupção da gravidez na hipótese de feto que nem cérebro possui?!

Cuida-se de um paradoxo em todos os sentidos: um paradoxo jurídico! Um paradoxo de fé!

Marcelo Lessa Bastos

Promotor de Justiça
Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva

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