Aborto: uma questão social

Não se pode negar que o problema do aborto não tem solução, por afrontar o paradoxo entre a vida e a morte. Quando há interesses contrapostos, a discussão é sempre polarizada, e difícil é encontrar uma resposta que componha satisfatoriamente a questão, principalmente quando grupos éticos e religiosos apregoam uma repressão rígida e determinados grupos feministas radicais acabem preconizando a banalização do aborto, surgindo o risco, por todos indesejado, de ser usado como mero método de controle da natalidade.

Mas não se pode pensar nesse problema sem deixar de arrostar uma realidade, ainda que triste. No Brasil, são praticados um milhão de abortos por ano. Como se trata de prática clandestina, difícil sua exata quantificação, tendo quem fale em um milhão e meio, ou ainda que a cada nascimento corresponde um abortamento. Soma-se a esses assustadores números outro dado: 10.000 mulheres morrem em decorrência de procedimentos de má qualidade, sendo a maior causa de morte feminina. Por isso, justifica-se a insistência da OMS em apontar o Brasil como recordista mundial em abortos provocados.

Assim, ainda que se trate de uma questão que tem desdobramentos na Medicina, na Psicologia, na Religião, no Direito, na Política, na Ética, na Bioética, o aspecto mais saliente é que se trata de uma questão social.

Dizer que um ato é um crime não coíbe sua prática, não podendo o Estado deixar de cumprir sua função de controlar a sociedade e assegurar a vida de todos. Ao optar pela preservação da vida de um embrião, deixou de garantir a vida das mulheres, limitando-se simplesmente a ignorar que a interrupção da gravidez indesejada continua a ser realizada. Portanto, ter criminalizado sua prática não bastou para impedir que continue a ser levado a efeito, mas em condições adversas, face à falta de controle estatal.

Atualmente, só a elite, que tem condições de atender aos exorbitantes valores cobrados pelas clínicas particulares, pode exercer o direito de escolha. Aquela que não tem como pagar precisa submeter-se a procedimentos clandestinos, cujos riscos são por demais conhecidos, sujeitando-a a seqüelas que todos sabem quais são.

Restringir as possibilidades abortivas ao chamado aborto terapêutico – quando há risco de vida à gestante – e ao aborto emocional, ou seja, à maternagem agressiva, decorrente de estupro, é permanecer não visualizando a questão social. A simples descriminalização do chamado aborto eugênico – quando há probabilidade de presença de graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais – e da gravidez decorrente de prática não-consentida de reprodução assistida, constantes do anteprojeto que busca dar nova redação ao art. 128 do Código Penal, com certeza não levará à reversão desse quadro.

A responsabilidade pela formação do cidadão, que deveria ser do Estado, é delegada à família, como se vê do art. 227 da Constituição Federal, que outorga primeiro à família, à sociedade e por último ao Estado a formação e a proteção da criança e do adolescente. Essa responsabilidade recai quase sempre sobre os ombros da mãe, sendo indispensável assegurar-lhe o direito de optar. Necessário que deixem as mulheres de ser vistas como verdadeiro depósito de maternagem, concepção decorrente da verdadeira sacralização da família como entidade destinada à procriação. Não deve o Estado substituir-se à vontade da mulher, que tem o direito de decidir sobre sua vida e sobre a assunção de prole.

Essa atitude omissiva está a penalizar exclusivamente quem foi privada de uma educação reprodutiva, quem não tem acesso a meios seguros de contracepção ou ainda quem não tem condições de interromper, ainda que clandestinamente, uma gestação indesejada em clínicas particulares. Nestas, ainda que se realizem procedimentos abortivos revestidos de segurança, valores exorbitantes são cobrados, exatamente pela omissão do Estado de fiscalizar sua prática.

Por isso, urge que assuma o Estado sua função de preservar a vida e a dignidade do cidadão – no caso, das cidadãs -, pois a clandestinidade em que o abortamento é realizado, transformando mulheres e adolescentes em criminosas, com certeza não tem tido o efeito esperado, de coibir ou impedir que sejam realizados. Os danos biopsicológicos que inquestionavelmente ocorrem fazem com que a imputação da culpabilidade leve à exacerbação dessas seqüelas, seqüelas essas que ao certo serão minimizadas se for desclandestinizada a sua prática, e o primeiro passo deve ser sua descriminalização.

* Maria Berenice Dias

Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFam

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