Abuso de autoridade

( * ) Antonio Iran Coelho Sírio

Constitui abuso de autoridade punível na forma da lei, qualquer ato do poder que atentar contra os direitos e garantias individuais do homem, inerentes à sua liberdade de locomoção, inviolabilidade do seu domicílio, sigilo de correspondência, liberdade de consciência e crença, livre exercício do culto religioso, liberdade de associação, direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto, direito de reunião, incolumidade física do indivíduo e direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional.

Constitui ainda abuso de autoridade, qualquer ato do poder que consista em restrição à liberdade individual sem amparo legal ou sem se revestir das formalidades legais, não comunicar ao juiz prisão ou detenção de qualquer pessoa, não relaxar o juiz prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada, levar à prisão e nela deter quem proponha a pagar fiança permitida em lei, cobrar o carcereiro ou agente da autoridade policial carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa, se a cobrança não tem amparo legal, quer quanto à espécie quer quanto ao valor, recusar o carcereiro ou agente da autoridade policial recibo de importância recebida a título de carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa, e, finalmente, ato lesivo da honra ou do patrimônio da pessoa física ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal, segundo elenco expressamente instituído pelos arts. 3º e 4º, da Lei No. 4.898, de 9 de dezembro de 1965.

Embora a lei expressamente se refira a abuso de autoridade, melhor, porque, mais técnico seria referir-se a abuso de poder. Com efeito, abuso de autoridade, conforme ressalta, com muita propriedade o douto Damásio de Jesus, condiz muito mais com o domínio das relações privadas, enquanto que abuso de poder depende da existência de cargo ou ofício público, sendo mais compatível com o espírito da lei que pretende coibi-lo. Neste sentido, averbe-se que o Código Penal, tratando das circunstâncias agravantes, em seu artigo 61, II, “f” e “g” institui diferença fundamental entre abuso de autoridade e abuso de poder.

Historicamente, a conquista de direitos assegurados por lei, na luta contra o abuso de poder remonta ao “Bill of Rights” promulgado por Guilherme III, na Inglaterra, em 1689, endossando e avalizado pela França em 1793, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

No Brasil, a matéria está intima e indissociavelmente ligada ao direito de representação, garantia constitucional que nos foi legada pela Constituição Democrática de 18 de setembro de 1946 em seu artigo 141, § 37, subsistindo pela norma constitucional inserta no Parágrafo 30 do art. 153, da Constituição de 1969 e mantida pelo art. 5º, inciso XXXIV, “a”, da Constituição de 1988, que assim estabelece:

“Art. 5º omissis.

XXXIV – São a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direito ou contra ilegalidade ou abuso de poder “;

Criado em tese, pela Constituição Federal de 18 de setembro de 1946, somente em 1965, foi regulamentado o direito de representação, porque somente naquele ano o Congresso Nacional aprovou a Lei No. 4.898, de 9 de dezembro, sancionada pelo Presidente da República, cuja ementa, está assim redigida:

REGULA O DIREITO DE RPESENTAÇÃO E O PROCESSO DE RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA, CIVIL E PENAL, NOS CASOS DE ABUSO DE AUTORIDADE.

Em sua versão inicial, a lei exigia a representação que deveria ser feita em petição escrita e dirigida à autoridade que tivesse competência legal para aplicar à autoridade civil ou militar culpada, a respectiva sanção, ou ao Órgão do Ministério Público competente para iniciar processo crime contra a autoridade culpada. A representação deveria ser redigida em duas vias e conter a exposição do fato constitutivo do abuso de autoridade com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado e o rol das testemunhas, no máximo três, se houvesse.

A ação era então necessariamente pública condicionada.

Em 1967, a Lei No. 5.249, de 9 de fevereiro, que define os crimes de responsabilidade e regula processo e julgamento, dispensou a necessidade da representação.

As normas processuais objetivando o procedimento criminal para aplicação da Lei No. 4,898/65 estão enumeradas nos seus artigos 17 usque 28, mas o § 1º do artigo 13, dispõe que a denúncia será oferecida em duas vias.

Segundo dispõe o artigo 6º da pré-falada lei, o abuso de autoridade sujeitará seu autor à sanção administrativa, civil e penal, que, na forma do comando ditado pelo § 4º, daquele mesmo artigo, poderão ser aplicadas autônoma ou cumulativamente. O artigo 15 impõe a aplicação do “princípio da devolução”, se o Órgão do Ministério Público ao invés de oferecer a denúncia, requerer o arquivamento da representação, e, com isto, não concordar o juiz. Sumamente desnecessária tal assertiva, porque a matéria a que alude é norma geral ditada pelo art. 28, do Código de Processo Penal, que a própria Lei Especifica sobre o abuso de autoridade, manda aplicar supletivamente.

O artigo 16, define a posição do Ministério Público como parte principal. O artigo 28 informa que nos casos omissos, serão aplicáveis as normas do Código de Processo Penal, sempre que compatíveis com o sistema, instrução e julgamento regulados pela Lei Especial.

SUJEITOS DOS DELITOS PREVISTO NA LEI NO. 4898/65
SUJEITO ATIVO: É A AUTORIDAE. É CONSIDERADA AUTORIDADE A PESSOA QUE EXERCE CARGO, EMPREGO OU FUNÇÃO PÚBLICA DE NATUREZA CIVIL, OU MILITAR, AINDA QUE TRANSITORIAMENTE E SEM REMUNERAÇÃO(ART. 5º). TRATA -SE, POIS, DO CONJUNTO DE NORMAS QUE DESCREVEM CRIMES PRÓPRIOS, EIS QUE SÓ PODEM SER PRATICADOS POR PESSOAS QUE EXERÇAM AUTORIDADE.

Neste particular é importante ressaltar o que é o ato de autoridade se traduz em toda manifestação ou omissão do Poder Público ou de seus delegados, no desempenho de suas funções ou a pretexto de exercê-la. Ainda por autoridade, entende-se a pessoa física investida de poder de decisão dentro da esfera de competência que lhe é atribuída pela norma legal.

SUJEITO PASSIVO: HÁ DUPLA SUBJETIVIDADE PASSIVA:

Sujeito Passivo imediato: É o Estado, titular da Administração Pública;

Sujeito Passivo mediato: É o cidadão, titular da garantia constitucional lesada ou molestada.

OBJETO MATERIAL:

Os delitos previstos na lei em estudo possuem dupla objetividade jurídica:

OBJETIVIDADE JURÍDICA MEDIATA: é o interesse concernente ao normal funcionamento da Administração Pública em sentido amplo, no que se refere à conveniência da garantia do exercício da função pública sem abusos de autoridade;

OBJETIVIDADE JURÍDICA IMEDIATA: proteger as garantias individuais estatuídas pela Constituição Federal. Neste campo a CF/88 nos incisos de seu art. 5º, determina essas garantias.

É de se notar que antes do advento da Lei No. 4.898/65 algumas das figuras nela definidas como crimes de abuso de autoridade, já estavam contempladas pelo Código Penal, como é o caso dos crimes definidos em seus artigos:

322 – VIOLÊNCIA ARBITRÁRIA; e

350 – EXERCÍCIO ARBITRÁRIO OU ABUSO DE PODER.

Promulgada a Lei No. 4.898/65, instaurou-se, inequivocamente o conflito aparente de normas, que, à jurisprudência coube solucionar.

Hoje, trinta e quatro anos após o advento da Lei Especifica, persiste a controvérsia quanto ao entendimento jurisprudencial no sentido de que foram ou não revogados pela Lei Nova, os artigos 322 e 350 do Código Penal.

A Lei No. 4.898/65, define os crimes de abuso de autoridade, prevendo como ilícito qualquer atentado à “incolumidade física individual”(art. 3o., j). Diante desse diploma legal, passou-se a discutir se ainda vige o art. 322, do Código Penal. Neste sentido esclarece Júlio Frabrini Mirabete, em sua Obra Código Penal Interpretado, Atlas, 1999, pág. 1737: “Embora já se tenha decidido pela não-revogação do referido dispositivo do estatuto básico, não mais tem sido ele aplicado por se entender que prevalece agora a lei especial, tanto que não se tem mais notícias de processos com fundamento no art. 322, mas sim com base na lei de abuso de autoridade.

O ART. 322 DO CP ESTÁ REVOGADO – TJSC: “Violência arbitrária. Delito Capitulado no art.

322 do Código Penal, revogado pela Lei No. 4.898/65. O art. 322 do Código Penal não mais pode servir de suporte condenatório porque se acha revogado pela Lei No. 4.898/65. Trata-se de lei que regulou inteiramente a punição dos crimes de abuso de poder, classe a que pertence o denominado delito de violência arbitrária(Juiz Lauro Malheiros do TACRIM-SP). NO MESMO SENTIDO: RT 405/417, 397/277, 394/297. 382/206, 376/246, 401/297; JUTACRIM 14/372, 11/152 E 248. CONTRA – STF: “O crime de violência arbitrária, previsto no art. 322 do Código Penal, não foi revogado pela Lei No. 4.898, de 1965”(RT 449/504). TJSP: “ Não foi extinta pelo crime de abusode autoridade, previsto no art. 3º, i, da Lei No. 4.898/65, a figura da violência arbitrária definida no Art. 322 do Código Penal”(RT 511/332).

Em relação ao art. 350, do Código Penal, não é diferente a discussão jurisprudencial acirrada quanto a estar ou não, revogado pela Lei No. 4.898/65.

Ao definir os crimes de abuso de autoridade de autoridade, a Lei No. 4.898/65, reproduziu integralmente no art. 4º, letra “a”, o tipo penal previsto no caput do art. 350, do CP. As disposições previstas no Parágrafo único, incisos I e II, referem-se a condutas que já estão, a rigor, definidas também no caput do art. 350 nesse mesmo dispositivo, e, portanto, no art. 4º, “a” da Lei No. 4.898/65. O inciso III está reproduzido, com a alteração abrangente, no art. 4º “b”, da mesma lei. No inciso IV, prevê-se a conduta que está subsumida nos vários dispositivos da lei especial(arts. 3o e 4o e suas alíneas). Assim os crimes de exercício arbitrário de abuso de poder previstos no art. 350 do CP, bem como os do art. 322 do mesmo estatuto, foram absorvidos e, portanto, revogados pela Lei No. 4.898/65, sob a denominação de abuso de autoridade, perdendo sua vigência com a entrada em vigor desta última. Embora haja algumas decisões em sentido contrário, o art. 350, do CP deixou de ser aplicado após a vigência da Lei No. 4.898/65, com raras exceções referentes ao Parágrafo Único, inciso IV, neste sentido é o entendimento do festejado Júlio Fabrini Mirabete.

Não obstante a tendência jurisprudencial seja no sentido de que o art. 350, do CP está absorvido pela Lei No. 4.898/65, não raros são os autores e cultores do direito que entendem o contrário.

E. Magalhães Noronha, discorrendo sobre a citada Lei No. 4.898/65 aduz: “Como se observa, a lei no art. 3º, fica em generalidades, e, no art. 4º, quando define especificamente crimes, não reproduz os nos.I, II e IV do Parágrafo Único do art. 350 do CPB, que nem por isso estão revogados.

Já o excepcional Penalista Damasio de Jesus, entende que o “art. 350 do CP, que define o crime de “exercício arbitrário ou abuso de poder”, foi revogado parcialmente revogado pelo art. 4º, da Lei No. 4.898/65. Trata-se de revogação tácita. O art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil, diz que “a lei posterior revoga a anterior quando regula inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”. Assim, o caput e o n. III do art. 350 foram revogados pelas normas das alíneas “a” e “b” do art. 4º, permanecendo em vigor os demais incisos(“Do abuso de Autoridade”, Revista Justitia 59/48).

Por outro lado, resultou da jurisprudência o entendimento uniforme de que é de se aplicar o concurso material entre os crimes de abuso de autoridade e lesões corporais, segundo a regra ditada pelo art. 69, caput, do Código Penal.

Neste sentido é o entendimento firmado pelo Colendo Supremo Tribunal Federal, senão vejamos:

“LESÕES CORPORAIS E ABUSO DE AUTORIDADE. SE O AGENTE, ALÉM DO CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE(ART. 3º ‘i”, DA LEI 4.898, DE 9-12-65) TAMBÉM PRATICAR LESÕES CORPORAIS NA VÍTIMA, APLICAR-SE-Á AREGRA DO CONCURSO MATERIAL”(STF – HC – Rel. Cordeiro Guerra – RTJ 101/595).

Registre-se por oportuno que a lei especial não previu os delitos na forma culposa.

É possível, salvo as exceções, a tentativa nos delitos disciplinados pela Lei No. 4.898/65, consuma-se o delito com a prática do atentado ou das ações ou omissões do art. 4º. Não se exige dano. Basta o perigo de dano.

Nos casos do art. 3º é impossível a tentativa o “tentar” já consuma o crime.

Importante também, observar que o delito de abuso de autoridade, por não constar do elenco das infrações do Código Penal Militar, é da competência da Justiça Comum, mas o de lesão corporal dolosa praticada por militar é da competência da Justiça Castrense. Existindo a conexão entre ambos, aplica-se o preceito do art. 79, I, do CPP, que autoriza a separação e desmembramento do processo.

Note-se ainda, que a denúncia, na forma do disposto no § 1º, do art. 13, da Lei No. 4.898/65 será oferecida em duas vias, sendo certo que o procedimento criminal está disciplinado pelos arts. 17 a 28 da Lei Especifica, aplicando-se subsidiariamente as normas ditadas pelo Código de Processo Penal.

As sanções são civis, administrativas e penais, prevendo ainda a lei a proibição, a titulo de pena, do exercício da função pública no município da culpa, pelo prazo mínimo de um ano e máximo de cinco anos, sanção que será aplicada autônoma ou acessoriamente.

Resta-nos a análise da PRESCRIÇÃO na legislação Especial.

Nos termos do art. 6º, § 3º, da Lei No. 6.898/65, que define os delitos de abuso de autoridade(arts. 3º e 4º), as penas consistem em:

“a) multa;

b) detenção por dez dias a seus meses;

c) perda do cargo e a inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por prazo até três anos.”

Essa penas podem ser aplicadas autônoma ou cumulativamente(§ 4º do mesmo artigo).

Como a lei especial não faz referência ao tema da prescrição, de aplicar-se os princípios do CP(art. 12). Assim, no tocante à prescrição da pretensão punitiva, o prazo é regulado pelo máximo da pena privativa de liberdade. Como é inferior a um ano(seis meses) decorre em dois anos(CPB, art. 109, VI).

Em relação à prescrição da pretensão executória(prescrição da pena, da condenação), se imposta pena pecuniária, de incidir o art. 114 do CPB: a prescrição decorre em dois anos, pouco importando o seu montante. Se imposta detenção na sentença, de incidir o disposto no art. 110 do CPB, variando o prazo prescricional de acordo com a quantidade de pena aplicada. Como a pena detentiva é inferior a um ano, o prazo prescricional da pretensão executória é de dois anos(CPB, arts. 110 e 109, VI). Se imposta pena funcional(perda do cargo e inabilitação funcional), ocorre também a prescrição da pretensão executória. O prazo prescricional é de dois anos. Como as disposições especiais não cuidam da prescrição, de incidir o menor prazo do art. 109 do CPB(n. VI).

Ressalte-se finalmente, que a Lei No. 4.898/65, tem por objetivo punir delitos menos graves cometidos com abuso de poder, sem prejuízo da repressão a crimes mais graves capitulados na lei penal ordinária, cometidos pela autoridade pública ou por seus agentes, como crimes subsidiários do próprio abuso.

Referências Bibliográficas:

Constituição da República Federativa do Brasil: Promulgada em 5 de outubro de 1988 – 17. Ed. Atual. E ampl. – São Paulo : Saraiva;

Leis Penais Especiais e sua Interpretação Jurisprudencial- Alberto Silva Franco/José Silva Júnior/Luiz Carlos Betanho/Mathias Coltro/Rui Stoco/Sebastião Oscar Feltrin e Wilson Ninno.

Editora Revista dos Tribunais Ltda-Edição: 1995 São Paulo;

Mirabete, Júlio Fabrini, 1935-Código Penal Interpretado-São Paulo: Atlas, 1999.

Garcindo Filho, Alfredo de-Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça-2ª ed. Ver. Ampl. Curitiba-Ed. Do Autor, 1995.

( * ) O autor é Promotor de Justiça titular da 6ª Promotoria do Juizado Especial Cível e Criminal de Fortaleza-CE. sirio@mcanet.com.br

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