Autora: Aline Ferreira de Carvalho da Silva (*)
O ano de 2017 mal começou e já apresenta um grande desafio para o Governo: fazer funcionar o Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado (SISGen) e a repartição de benefícios correspondentes. Fazer funcionar tal sistema é de extrema necessidade não só para a pesquisa e a inovação locais, como também para que o Brasil finalmente consiga explorar de forma sustentável uma das suas maiores riquezas: a sua biodiversidade.
A ideia de repartir os benefícios da exploração da biodiversidade com as populações locais não é nova: trata-se de obrigação assumida pelo Brasil na assinatura da Convenção da Biodiversidade durante a ECO-92. Este tratado representou uma mudança no approach com a conservação ambiental: ao invés de estabelecer que ecossistemas ricos e complexos como a Amazônia pertencem à humanidade, reafirmou-se a soberania dos Estados nacionais para definir políticas ambientais e estabeleceu-se um sistema de repartição de benefícios para estimular a população local a conservar os recursos naturais. Por esse sistema, o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado deveria passar por um controle estatal, sendo repartidos os benefícios auferidos com a utilização desses recursos.
Assim, se alguma indústria de cosméticos, por exemplo, quiser utilizar o cupuaçu brasileiro na composição dos seus produtos, deverá se submeter à supervisão estatal e repartir os benefícios auferidos com a comunidade local. Por meio destas regras, a comunidade internacional tencionava combater a biopirataria e estimular a exploração racional dos recursos naturais.
Embora as intenções da comunidade internacional tenham sido as melhores, a verdade é que a implementação das obrigações instituídas pela Convenção da Biodiversidade tem sido errática. Essa dificuldade pode ser em parte explicada pelo fato de muitos países megabiodiversos serem subdesenvolvidos, como a Indonésia e as Filipinas. Dentro deste panorama, o Brasil, curiosamente, é um dos países que mais avançou na implementação de regras para o acesso ao patrimônio genético e a repartição de benefícios.
Tal desenvolvimento não se deu sem percalços: Apesar de o Brasil ter ratificado a Convenção da Biodiversidade em 1994 e de tal tratado ter sido internalizado em nosso ordenamento pelo Decreto 2.519, de 16 de março de 1998, as primeiras regras a respeito do acesso ao patrimônio e à repartição de benefícios surgiram apenas em 2000 via Medida Provisória. Reeditada sucessivas vezes e renumerada como Medida Provisória 2.186-16 de 23 de agosto de 2001, permaneceu vigente até 2015, quando foi editada a Lei 13.123/2015.
Ademais da verdadeira jabuticaba de termos uma Medida Provisória em vigor por mais de 14 anos, a Medida Provisória 2.186-16 de 23 de agosto de 2001 padecia de diversos defeitos, como uso de conceitos demasiadamente abertos e procedimentos extremamente burocráticos para acesso ao patrimônio genético ainda que para fins de pesquisa. Por exemplo, na vigência da Medida Provisória 2.186-16 de 23 de agosto de 2001, era necessário obter do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) uma autorização prévia, que muitas vezes demorava anos para analisar os casos. Como se não bastasse, tendo em vista a falta de regras claras a respeito do tema, muitas vezes exigia-se autorização prévia para o acesso a recursos genéticos preservados em coleções ex situ antes mesmo da entrada em vigor da Medida Provisória.
Tendo em vista o verdadeiro clima de insegurança jurídica criado pela Medida Provisória 2.186-16, a Lei 13.123/2015 veio com a promessa de diminuir a burocracia ao substituir a autorização prévia por um simples cadastro para a maioria dos tipos de acesso. Contudo, a redução da insegurança jurídica continua apenas na promessa, pois o SISGen ainda não está operacional e não há previsão para que comece a funcionar.
Tal estado de coisas em nada contribui para o ecossistema brasileiro de pesquisa, desenvolvimento e inovação, pois a demonstração de realização do cadastro é condição necessária para o depósito de patentes em que tenha ocorrido acesso ao patrimônio genético. Como se não bastasse, é preciso que o sistema esteja operando para que instituições brasileiras possam realizar pesquisas utilizando patrimônio genético brasileiro em conjunto com instituições estrangeiras. A inércia do Governo brasileiro pode vir a impactar negativamente pesquisas importantes, como aquelas relacionadas ao combate ao zika.
Assim, além de colocar a economia de volta aos trilhos, o Governo brasileiro tem outro desafio em 2017: dar cumprimento efetivo às obrigações assumidas na ECO-92 e dotar o Brasil de um sistema de acesso a patrimônio genético e repartição de benefícios efetivo.
Autora: Aline Ferreira de Carvalho da Silva é advogada integrante do Kasznar Leonardos Advogados. Especialista em Direito da Propriedade Intelectual pela PUC-Rio, cursou LL.M em Direito da Propriedade Intelectual na University of Cambridge como bolsista da Chevening, oferecida pelo Foreign and Commonwealth Office do Reino Unido).
Revista Consultor Jurídico, 20 de janeiro de 2017, 6h31