Autor: Daniel Hilário (*)
Racismo, por definição, é um conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre raças ou etnias. Ou seja, com base em preconcepções, reputa-se que um grupo de pessoas é superior a outro, de acordo, principalmente, com suas características fenotípicas, como tom de pele, formato do nariz, ou até a conformação de seu rosto.
Durante mais de dois terços de nossa breve história como nação, legitimou-se a dominação de uma raça sobre outra, o que resultou na escravização dos nativos e, logo após, na do negro africano. Tal dominação era legitimada por nosso Direito legislado, à época, e só se tornou prática indevida, no campo normativo ao menos, após a publicação da Lei Imperial 3.353, de 13 de maio de 1888, denominada Lei Áurea.
Claro está que a proibição da escravização de nativos e negros não acabou com o racismo no Brasil. Pelo contrário, grande parte da população brasileira continuou — e continua — a ser vista como de “segunda categoria”, devendo ser relegada, tão somente, a certas localidades nas metrópoles, a exemplo de rodoviárias, e não aeroportos.
No atual Direito brasileiro, a prática do racismo é vedada pela Lei 7.716/89, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. No caso específico da administração pública, essa lei prevê que aquele que impede ou obsta o acesso a alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da administração direta ou indireta, bem como às concessionárias de serviços públicos, poderá ser condenado a pena de reclusão de dois a cinco anos. Tal pena também é cominada a quem obstar a promoção funcional por motivo de discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Soma-se a isso outra determinação presente neste mesmo diploma normativo (artigo 16), que é a perda do cargo ou função pública, se o autor do crime for um servidor público. Nesse caso, na forma do artigo 18, essa perda não é automática, devendo ser declarada, motivadamente, em sentença.
Na esfera administrativa, a prática do racismo, por servidor público, contra subordinado ou contra um terceiro qualquer pode atentar contra seus deveres de tratar as pessoas com urbanidade, de lealdade para com a instituição pública a que está vinculado, bem como o de manter conduta compatível com a moralidade administrativa, conforme determinado pela Lei 8.112/90, e reprisado em outros estatutos de servidores públicos estaduais e municipais. Em tese, a violação a tais deveres seria punível com advertência, porém, diante da gravidade da conduta, conforme disposto no artigo 129 da referida lei, pode ser aplicada punição mais grave, caso se justifique.
Além disso, a prática de racismo por servidor público pode, também, ser enquadrada como prática de improbidade administrativa. Isso porque, em tese, haveria violação aos princípios da administração pública e da República Federativa do Brasil, vez que se trata de conduta incompatível com a moralidade administrativa no trato para com terceiros, violando, assim, os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, boa-fé e lealdade para com as instituições, ou seja, a descrição fiel do caput do artigo 11 da Lei 8.429/92.
Em resumo, além da esfera criminal, em que o servidor público que pratica o crime de racismo pode ser condenado à pena de reclusão de dois a cinco anos e sofrer a perda de seu cargo ou função, há também as sanções advindas do enquadramento no Estatuto dos Servidores Públicos e na Lei de Improbidade Administrativa, que são as seguintes: penas de advertência, suspensão, demissão a bem do serviço público ou cassação de aposentadoria, no caso estatutário; ou ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o poder público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos, no que toca à Lei de Improbidade.
Para além da esfera punitiva, há as ações afirmativas, que também visam o combate ao racismo. Dentre elas destacam-se a política das cotas raciais, que reserva vagas para determinadas raças (como negros e índios) em universidades públicas (a partir do ano 2000) e, mais recentemente, por meio da Lei 12.990/14, vagas oferecidas em concursos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.
Veja-se, inclusive, que, no que toca às cotas raciais nas universidades públicas, o Supremo Tribunal Federal já declarou que são constitucionais. Citamos como exemplo o caso do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 186, ajuizada pelo Partido Democratas, que declarou que o sistema de cotas da Universidade Federal de Brasília (UnB), em que uma banca analisa se o candidato é, ou não, negro, seria uma espécie de “tribunal racial”.
Naquele caso, o ministro relator, Ricardo Lewandowski, foi unanimemente seguido pelo Plenário do STF, ao declarar que as cotas da UnB não se mostravam desproporcionais ou irrazoáveis. Indicou, na verdade, que a regra tem o objetivo de superar distorções sociais históricas, empregando meios marcados pela proporcionalidade e razoabilidade.
É importante ressaltar, por fim, as iniciativas que partem de dentro dos próprios órgãos públicos, no sentido da capacitação de seus servidores para lidar com a prática do racismo e combatê-la. Citamos o caso da Prefeitura de Maceió[1], que, no ano de 2013, por meio da integração de suas secretarias e superintendências, realizou um ciclo de atividades para discussão acerca da abordagem e identificação do chamado racismo institucional. O objetivo, conforme dito pela Secretaria Executiva do gabinete do prefeito daquela capital, foi capacitar o servidor que lida diretamente com o público, em especial com a população afrodescendente.
Diante do cenário apresentado, podemos concluir que, na administração pública brasileira há diversas ações direcionadas a coibir a abominável prática de racismo. Pode-se, evidentemente, discutir que essas são tardias, ou ainda, insuficientes, porém, já demonstram um caminho a ser seguido. Caminho esse que precisa ser alargado, para minorar a grande desigualdade entre raças e camadas sociais existente no Brasil.
Autor: Daniel Hilário é advogado na unidade de Belo Horizonte do escritório Cassel Ruzzarin Santos Rodrigues Advogados e especialista em Direito do Servidor.