Por Rodrigo Garcia Schwarz
Há um inequívoco consenso, no país, sobre a necessidade de modernizar-se a legislação que regulamenta as relações de trabalho no Brasil. Trata-se, naturalmente, de uma legislação que, para demonstrar-se eficaz, deve guardar correspondência com os avanços da sociedade brasileira no desenvolvimento econômico, social e cultural, com os novos paradigmas impostos pelas inovações tecnológicas e pelo processo de globalização e com o estágio atual da onipresente luta de classes e as suas consequentes possibilidades de diálogo social. Juristas, economistas, sociólogos, agentes governamentais, lideranças sindicais de trabalhadores e empresários concordam que a legislação trabalhista nacional, ancorada fundamentalmente na sistematização correspondente à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943, com pequenas alterações, nem sempre permanece adequada às (novas) realidades dos mundos do trabalho: a legislação trabalhista nacional requer modernização.
O dissenso exsurge, contudo, quando esses diferentes atores desvelam o sentido peculiar que dão à ideia de modernização da legislação trabalhista nacional. De um lado, distingue-se uma ideologia que é concomitantemente conservadora e progressista, que preceitua que, em prol do homem, para conservar-se o sentido mais genuíno dessa legislação, que não pode ser outro que não a proteção do trabalhador, fomentando-se a promoção do trabalho decente e uma repartição social mais justa dos resultados econômicos do trabalho, é necessário modernizar os mecanismos de regulamentação e de tutela do trabalho. Essa modernização é concomitantemente progressista e conservadora, pois, sendo conservadora no sentido de preservar os mecanismos jurídicos de proteção do trabalho, atualizando-os frente às inovações fáticas, é progressista no sentido de que, mais do que meramente preservar os direitos adquiridos pelos trabalhadores, demanda avançar concretamente nesses mecanismos de proteção, expandindo-os.
O termo conservadora, assim empregado, não possui conotação pejorativa, nem é incompatível com uma ideologia progressista: é conservadora a ideologia que propõe uma recapitulação coerente de valores coerentes, que resultaram de uma grande expansão legislativa, fruto de inúmeras conquistas históricas dos trabalhadores, dedicada à promoção progressiva dos mais altos padrões de dignidade, de humanidade e de justiça social. Uma ideologia que não se coloca como obstáculo concreto ao desenvolvimento econômico, mas que, posicionando-se contra todas as formas de retrocesso social, reivindica a conciliação possível entre o desenvolvimento econômico, o desenvolvimento social e a melhoria das condições de vida dos trabalhadores.
De outro lado, distingue-se uma ideologia retrógrada, em prol dos capitais inumanos, fundada na ideia de precarização dos direitos mais elementares dos trabalhadores: paradoxalmente, muitos processos atuais de elaboração ideológica da modernização da legislação trabalhista prescrevem simplesmente o regresso à caverna. Trata-se de uma esdrúxula modernização às avessas que prescreve o retrocesso social sob o signo da promoção da competitividade dos empreendimentos econômicos e a precarização das condições de vida dos trabalhadores como panaceia diante de crises econômicas para cujo desencadeamento não concorreram os trabalhadores, nem as suas condições de vida, mas os próprios empresários e a ordem econômica por eles delineada e sustentada. Trata-se de prescrever, perversamente, o trabalho flexível em uma sociedade rigidamente hierarquizada, desigual e excludente, numa luta de classes de cima para baixo que objetiva impor a consolidação dos privilégios de uma casta construída a nível global, assessorada por alguns juristas, economistas e sociólogos cuidadosamente aliciados, à custa de renovados sacrifícios impostos para a classe dos trabalhadores e da perda da memória histórica das conquistas sociais destes.
A par das falácias retrógradas amplamente disseminadas no país, travestidas de discursos de modernização a serviço de uma ordem econômica manifestamente oligárquica, ímproba, incontinente e antropofágica, a verdade é que a legislação que regulamenta as relações de trabalho no Brasil, sendo já muito flexível (bastando recordar, nesse sentido, que a “Constituição Cidadã” de 1988 permite a redução salarial, a flexibilização dos limites da jornada de trabalho e o despedimento arbitrário), tem-se demonstrado historicamente insuficientemente para garantir condições concretas de trabalho minimamente decentes no país, que convive com uma abundante economia submergida, com abismais desigualdades econômicas e sociais e com um número escandaloso de trabalhadores submetidos a condições indignas de trabalho ou reduzidos a condição análoga à de escravos, e que a negociação coletiva, em um país em que grande parte dos empresários não cumpre a lei, tampouco o negociado, não tem aprimorado os meios legais existentes de tutela dos direitos dos trabalhadores.
No Brasil, a taxa de sindicalização dos trabalhadores é extremamente baixa, a representatividade concreta de muitos sindicatos é altamente questionável, parte expressiva do contingente de trabalhadores não têm o contrato registrado na sua carteira profissional, os trabalhadores negros recebem salários muito inferiores aos dos brancos e as mulheres recebem salários muito inferiores aos dos homens, verificando-se que a violação de direitos trabalhistas atinge prioritariamente os segmentos mais vulnerabilizados da classe trabalhadora, não sindicalizados, e fomenta, assim, viciosamente, a discriminação e a pobreza. Somente no ano de 2010, ingressaram na Justiça do Trabalho 3,3 milhões de novos processos, na sua maioria veiculando reclamações concernentes ao descumprimento das mais elementares obrigações trabalhistas, como o registro do contrato de trabalho em carteira profissional ou o pagamento de verbas rescisórias.
Nesse contexto, aquela máxima apontada na Exposição de Motivos da CLT, de 1943, da prevalência de uma ordem trabalhista fundada na precedência das normas de tutela sobre os contratos (item 28 da Exposição), ou seja, da precedência do legislado sobre o negociado, continua extremamente atual: a ratio legis do sistema normativo mínimo, infenso à renúncia e à negociação, necessário à manutenção de relações de trabalho minimamente decentes no Brasil, continua presente: deve haver, no Direito do Trabalho, um núcleo duro irrenunciável em prol do homem, infenso, portanto, à negociação. Núcleo duro que não se esgota nos direitos reconhecidos constitucionalmente, mas que também abrange, além de direitos relacionados à saúde e à segurança do trabalhador, direitos econômicos. Não se trata, ao defender-se que o legislado prevaleça sobre o negociado, de ser apenas conservador (numa boa acepção, com orgulho): trata-se de ser progressista, lutando – contra o retrocesso social – pelos valores econômicos e sociais do trabalho.
Ser moderno implica reconhecer que o trabalho não é uma mercadoria e que o trabalhador, ser humano, não pode abdicar da sua dignidade. Que o intervalo para repouso e alimentação do trabalhador não pode ser reduzido pela via da negociação coletiva, porque quando o intervalo é reduzido a saúde do trabalhador é colocada em risco. Que os períodos de férias devidos ao trabalhador não podem ser fracionados ao bel-prazer do empresário, garantindo-se para o trabalhador um número mínimo de dias contínuos de férias. Que o prazo de licença-paternidade deve ser ampliado, propiciando um maior compartilhamento da difícil tarefa de conciliação entre a família e o trabalho entre homens e mulheres, com a melhoria das condições sociais destas. Que os contratos temporários e a tempo parcial são formas de precarização do trabalho. Que para o trabalhador doméstico devem ser garantidos os mesmos direitos reconhecidos aos trabalhadores urbanos e rurais. Que a dispensa coletiva deve ser necessariamente precedida de justificação. Que a participação de representantes dos trabalhadores na gestão da empresa, prevista na Constituição de 1988, deve ser regulamentada, concretizando-se. Que o uso de meios telemáticos e informatizados no trabalho impede ao empresário alegar a impossibilidade de controle sobre a jornada de trabalho do empregado, obrigando-o a remunerar as horas extraordinárias trabalhadas. Que já é hora de reduzir-se a jornada de trabalho de 44 para 40 horas semanais no país, redistribuindo-se os amplos ganhos de produtividade das últimas décadas que foram apropriados, na sua totalidade, pelos empresários.
Por isso, antigas propostas de precarização, travestidas de discursos de modernização, devem ser duramente refutadas. O nefasto anteprojeto de lei de instituição de “acordo coletivo de trabalho com propósito específico”, com a reapresentação, com roupagem nova, da velha proposta, já rejeitada pela sociedade brasileira, de afastamento dos parâmetros legais de tutela do trabalho pela via do negociado, é uma dessas falácias retrógradas e inescrupulosas que servem apenas aos interesses dos donos do poder com vistas a maximizar seus privilégios excludentes pelo recurso à imposição “negociada” de renovados sacrifícios para a classe dos trabalhadores. Pouco importa que a negociação prevista no anteprojeto, para arredar a incidência da lei, seja “voluntária” (quem, premido pelas vicissitudes da vida, sobretudo pela necessidade de manter-se empregado, não sentaria à mesa de “negociação”?): não se pode admitir que sejam afastados os parâmetros legais de tutela do trabalho pela via do negociado – o que implica retrocesso histórico. Defender que o negociado prevaleça sobre o legislado não é ser moderno, nem progressista; é, muito ao contrário, ser retrógrado. É posicionar-se, contra o homem, a favor de uma ordem econômica oligárquica, ímproba, incontinente e antropofágica, a serviço desta. É predicar que a classe trabalhadora, traída pelos seus órgãos de classe, enverede-se, tal como o aprendiz de feiticeiro de Goethe, desidiosamente, em uma desventura que se sabe apenas como começa, e cujo desfecho é imprevisível; afinal, como diz um ditado popular, “em porteira que passa