Por Bruno Espiñeira Lemos
Em recente entrevista tratando de uma conversa do ex-presidente Lula com o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, em um escritório de advocacia de Brasília, o ministro Marco Aurélio se referiu aos “tempos estranhos” em que temos vivido.
Essa expressão tão bem cunhada e repetida por todos aqueles que se espantam ou se chocam com alguma situação determinada ou mesmo perene, remete-me aos “Raros Tiempos” lembrados pela poeta, compositora, jornalista e professora chilena Isabel Liphtay, exilada na Alemanha desde 1983, que, na primeira estrofe da sua bela poesia cujo título me refiro diz, em tradução livre, “nestes tempos estranhos de aniversários e guerras, de revoluções perdidas e vencedores violentos que arrasam tudo, não sei onde pousar meus olhos nestes tempos estranhos, em que vazio colocar a ternura de minhas mãos para construir uma história que ainda seja comum”.
Não pretendo me deter agora no encontro fatídico do primeiro parágrafo. Passo a tratar de outro “imbróglio” que me traz a percepção indelével de que efetivamente vivemos tempos estranhos no Brasil.
Enquanto a percepção do senso comum se dirigia intensa e avidamente contra o ex-ministro da Justiça e advogado criminalista Márcio Thomaz Bastos, ganhando ares de histeria, quanto à sua aceitação do caso e exaurindo-se quando se tratava dos seus honorários como advogado de Carlos “Cachoeira”, eu pensava com meus botões que havia e há nesse cenário grande confusão até certo ponto compreensível (pois, como afirmei, partia a reação de um “senso comum” protagonizado por uma sociedade cada vez mais “participativa”), portanto, até esse limite que seguia com reverberações midiáticas, igualmente legítimas em tempos de democracia, poder-se-ia tentar entender essa distorção do leigo diante do papel do Advogado de Defesa (maiúsculas intencionais) e sua relação com o acusado, muitas vezes confundindo os sujeitos e os predicados, o direito e as técnicas de defesa com a prática dos eventuais delitos defendidos.
O que me fez sair dos botões e lembrar-me dos “raros tempos” da poeta chilena (ou poetisa como prefiram), foi precisamente uma notícia lida na ConJur de que, não bastando o equívoco abissal de um procurador da República que imaginei se tratar de um ato isolado de quem busca 15 minutos de fama, vem em seguida a sua associação de classe e assume sua “DEFESA”, defendendo, data vênia, aqui sim, o indefensável.
Não se trata de “brigas” corporativas como se pode imaginar diante das notas de apoio ao Advogado, seja da OAB, seja de outras instituições congêneres. Estamos aqui diante de uma tentativa de subverter-se a Constituição de 1988, sua gênese intrínseca da máxima proteção dos direitos fundamentais e da proibição de excesso em matéria de Direito Penal.
Em primeiro lugar porque deveria o “acusador” saber de plano que, felizmente, ainda não vivemos, embora muitos imaginem o contrário, em um cenário (espero que jamais o vivamos) no qual se adota o Direito Penal do Inimigo, de Gϋnther Jakobs, no qual o “outro”, o infrator da norma penal é visto como objeto e não sujeito de direito, verdadeira “besta”, cujo trato e tratamento justificariam até mesmo a “tortura”.
Em seguida, esse mesmo “acusador” deveria devotar um pouco mais de respeito com a conquista mais importante da civilização ocidental que é o sagrado direito de defesa, em um processo devido e legal. Mais adiante, deveria recordar-se que não se pode trabalhar com presunções de culpabilidade, ou seja, imaginar, deduzir, sonhar, enfim meras ilações sem qualquer substrato fático, de que o advogado quiçá poderia estar a se mancomunar com o seu constituinte para “purificar” eventual dinheiro de origem ilícita, confundindo circunstâncias e personagens. Isso, em se tratando de qualquer advogado de defesa, e o que se dizer da falta de cuidado para nada mais duro se mencionar, diante de um jurista ilibado e que honra a história da advocacia brasileira, tratado como se fora potencial coautor ou partícipe do que qualquer quimera amargurada que uma mente pouco saudável democraticamente pudesse vislumbrar.
Como se não bastasse, a postura eivada de “inconstitucionalidade” de deduzir a prática de ilícito e o que é mais grave, pretender uma inversão do ônus da prova, ou seja, da parte, no caso o Advogado, ter que se “justificar previamente acerca da origem lícita de sua renda” (lembra-me a tentativa de se criminalizar o “enriquecimento ilícito” e o princípio da não culpabilidade), soando como a mais vil das tentativas de inversão do ônus da prova em processo penal e a consagração evidente de um sonho prussiano de se ver implantado um Direito Penal do Inimigo a qualquer custo, importando-se modelos inapropriados e inaplicáveis ao Brasil, repita-se, sem que haja qualquer elemento concreto, a não ser meras presunções abstratas e o uso da mídia para provocar dúvidas não razoáveis e desafinadas com um construto de Estado Democrático de Direito, que desse modo e pelo visto dificilmente se consolidará.
Ao contrário do que se afirmou em uma nota divulgada, data vênia, nos moldes de espetáculo com o qual se tem tratado o tema, longe de se tratar de fato nunca antes questionado e mesmo de pretendo progresso no cumprimento da ordem jurídica, se está diante de grave retrocesso que mina os alicerces de dura construção e eterna reconstrução do Estado Democrático de Direito diante de potentes abalos como este aqui tratado.
Bruno Espiñeira Lemos é advogado, procurador do estado da Bahia, ex-procurador federal e membro da Comissão Nacional de Acesso à Justiça do Conselho Federal da OAB.