ADI pode inviabilizar titulações de territórios quilombolas

Autora: Juliana de Paula Batista (*)

 

O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) reconheceu, pela primeira vez na história da legislação brasileira, direitos formais aos quilombolas. Assim, de acordo com o ADCT, “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

Com a finalidade de colmatar a legislação, o governo federal editou o Decreto 4887/2003, que regulamenta o “procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos”. No entanto, em 2004, o Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas, propôs no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.239, com o objetivo de impugnar o decreto.

O julgamento da ADI já foi iniciado e deverá ter continuidade no dia 8 de fevereiro. Até o momento, três ministros já votaram. O ministro aposentado Cezar Peluso votou pela inconstitucionalidade do decreto, a ministra Rosa Weber pela constitucionalidade e o ministro Dias Toffoli julgou a ação parcialmente procedente, para conferir interpretação conforme a Constituição ao artigo 2º, § 2º do decreto, no sentido de estabelecer que somente devem ser tituladas as áreas que estavam efetivamente ocupadas pelos quilombolas no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.

A exigência da presença física das comunidades quilombolas na citada data é conhecida como “teoria do marco temporal de ocupação” e sua aplicação é extremamente problemática, pois, em razão da ausência formal de direitos até 1988, comunidades foram expulsas de seus territórios e desenvolveram diversas estratégias de ocupação territorial para garantir a sobrevivência e manutenção do grupo étnico.

Segundo o voto do ministro Dias Toffoli, o marco temporal não se aplicaria nos casos de “comprovação, por todos os meios de prova juridicamente admitidos, da suspensão ou perda da posse em decorrência de atos ilícitos praticados por terceiros”. O parâmetro utilizado pelo ministro, entretanto, contraria a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que, em casos de remoção e expulsões forçadas, definiu que o critério para aferição dos direitos territoriais das comunidades é o de verificação da existência de relações reais ou simbólicas com o território reivindicado.

No paradigmático caso Comunidad Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguay, a CIDH assentou: “O Tribunal leva em conta a base espiritual e material de identidade dos povos indígenas, a qual é baseada principalmente em sua relação única com suas terras tradicionais. Enquanto existir esta relação, o direito de as reclamar permanecerá em vigor, caso contrário, será extinto”. Anote-se que, embora a decisão trate de comunidades indígenas, em razão de índios, quilombolas e comunidades tradicionais serem sujeitos de direitos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a CIDH adota os mesmos critérios de decisão para os grupos étnicos.

As comunidades quilombolas que hoje reivindicam a titulação de seus territórios existiam antes da Constituição Federal de 1988 e continuaram existindo após a sua promulgação, por isso constituem grupo étnico-racial com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida pela escravidão, nos exatos termos do artigo 2º, do Decreto 4.887.

Aplicar marcos temporais e exigir comprovação da expulsão do território para admitir a existência dos direitos territoriais destas comunidades é simplesmente desconsiderar o principal ponto que funda o direito previsto no ADCT: a existência do próprio grupo étnico minoritário, portador de identidade específica, que, sem garantias territoriais, estará submetido a processos de integração e assimilação forçada.

Não se pode transmudar o sentido do reconhecimento constitucional, a malferir os direitos culturais, a dignidade da pessoa humana e as garantias insculpidas na Convenção 169 da OIT. Tampouco é admissível que se desnature a reparação devida às muitas gerações de negros degredados e escravizados, que dormiram e acordaram por mais de trezentos e cinquenta anos com as instituições brasileiras brancas a lhes negar liberdade, cidadania, condição humana.

Espera-se que o STF considere os parâmetros estabelecidos na jurisprudência da CIDH e confira ao artigo 68 do ADCT exegese que não retire a densidade normativa dos direitos fundamentais das comunidades quilombolas. Com isso, as políticas públicas voltadas à efetivação dos direitos dos quilombolas poderão prosseguir e selar o inacabado processo de abolição da escravatura no Brasil.

 

 

 

Autora: Juliana de Paula Batista   é mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e advogada do Instituto Socioambiental (ISA).


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