por Luis Eduardo Franco Bouéres
O novo Código Civil Brasileiro retrata, sem sombra de dúvida, uma mudança substancial nas regras das relações de cunho privado em nosso país. Há uma efetiva modificação no enfoque do Direito Civil, que deixa para trás o cunho individualista das suas regras, trazendo à baila, conceitos outrora ignorados nas relações interindividuais. Mais do que isso houve, por certo, uma significativa mudança de forma na exposição das disciplinas do Direito Civil, passando, da ultrapassada técnica das situações-tipo, para o modelo das cláusulas gerais.
Tais modificações estão presentes, de início, na Parte Geral da referida codificação, que disciplina genericamente a Parte Especial do mesmo. Destarte, como não poderia ser diferente, a disciplina de Direito das Obrigações, bem como todo restante de Parte Especial do código, sofrem influência destas mutações recentes.
Em que pese o fato de o Direito Obrigacional ser o ramo do Direito Civil menos suscetível a mutações sociais (1), há que se considerar que da reforma civilista, surgiram novos parâmetros interpretativos das relações obrigacionais.
Primeiramente, a adoção de novos princípios norteadores, como o da Socialidade, que traz consigo a determinação de que as relações não devam mais ser vistas como de interesse apenas interpessoal dos indivíduos vinculados à obrigação, mas de toda a sociedade, em virtude de valores de bem comum, fazendo com que, o princípio da autonomia da vontade seja relativizado, como por exemplo, nas relações contratuais, onde, hodiernamente, há marcante intervencionismo estatal.
Por este prisma, é também da reforma, a adoção do princípio da eticidade, que traz consigo a idéia da essencialidade da boa-fé objetiva das relações, sem a qual o negócio jurídico padece de irregularidade.
Há também, como disciplina da nova civilística, o princípio da operabilidade, buscando trazer uma maior efetividade das regras do Código Civil.
Tais modificações, relacionadas aos princípios mencionados, são melhores compreendidas se examinados pontualmente, alguns de seus exemplos.
Inicialmente, no que tange à socialização, preliminarmente especulou-se que havia surgido uma espécie de crise dos contratos, haja vista que a autonomia da vontade plena, perde espaço para a relação contratual voltada à realidade social dos envolvidos na relação negocial.
Por certo, não há uma crise em si, mas apenas uma modificação do prisma fundamental da relação obrigacional-contratual, qual seja, a vontade. Não há mais vontade livre e irrestrita das partes para contratarem da forma que entenderem.
Há um marcante intervencionismo estatal, por vezes com a edição de leis específicas, provocando a tendência do que se vem a chamar de “Império dos Contratos Standard”, ou seja, fórmulas contratuais preestabelecidas para adesão ou não dos interessados.(2)
Nunca é bastante lembrar que, conforme disposição do artigo 104, do Código Civil, a validade do negócio jurídico requer, além de agente capaz e objeto lícito, a forma prescrita ou não defesa em lei. Isto significa que as relações contratuais ficam adstritas aos limites impostos pelo legislador, que produz, cada vez mais, regras de cunho social, como por exemplo, o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor.(3)
No que tange ao princípio da eticidade, o novo código reserva importância fundamental à boa fé, conforme já mencionado anteriormente. Vê-se exemplo disso, em vários dispositivos concernentes à parte geral e ao direito obrigacional da referida codificação, como no artigo 113, onde há previsão de que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé; e ainda, por exemplo, no artigo 311, que dispõe que é autorizado a receber o pagamento o portador da quitação, por haver aí a presunção da boa-fé dos agentes.
Por fim, acerca da operabilidade, há que se mencionar que por certo é a vertente mais modificadora da sistemática do novo código. Tanto é assim, que muda a própria disposição da parte do Direito das Obrigações como primeiro Livro da Parte Especial, diversamente do que ocorria no Código de 1916 (Livro III da Parte Especial), por ser de melhor aceitação lógica, pois os diversos ramos do Direito Civil dependem de prévio conhecimento de conceitos da teoria do Direito Obrigacional, bem como, de sua ordenação legislativa.(4)
Por outro lado, a operabilidade também se faz presente na adoção inovadora de dispositivos tendentes à auto-tutela, quais sejam, por exemplo, os artigos 249, parágrafo único, e 251, parágrafo único. Tais artigos visam a uma proteção de urgência contra o perecimento de direitos, trazendo eficácia das determinações legais, de forma imediata.(5)
Por fim, a mudança que se demonstra mais acentuada na legislação civil, é a adoção das cláusulas gerais.
O uso das cláusulas gerais se dá, sobretudo, em face de uma nova abordagem interpretativa das disposições novas da legislação, bem como das já existentes no ordenamento. Não é somente a produção de preceitos genéricos, mas também o uso da interpretação sistemática dos artigos já existentes, como cláusula geral, dando ao intérprete, a liberdade maior de adequação da norma ao caso concreto.
Essa mudança de enfoque, também é tendência anterior ao Código Civil de 2002, tendência esta que relega ao passado a regulamentação casuística, através de dispositivos de situação-tipo, onde o legislador tentava, como se possível fosse, regular todas as situações possíveis da realidade social.
A notável lição de TEPEDINO(6) demonstra a adoção das cláusulas gerais, como modelo anterior à nova codificação civil, sendo uma tendência da nova civilística, como segue:
“… ainda no que tange à técnica interpretativa, não pode o operador manter-se apegado à necessidade de regulamentação casuística, já que o legislador vem alterando a sua forma de legislar, preferindo justamente as cláusulas gerais, como ocorre repetidas vezes na Constituição, no Código de Defesa do Consumidor, no Estatuto da Criança e do Adolescente, e mesmo no Código Civil de 2002. Acostumado ao estilo linear e elegante do Código Civil de 1916, no qual todas as situações-tipo eram previstas pormenorizada e detalhadamente, corre-se o risco de relegar à ineficácia as cláusulas gerais — não só aquelas introduzidas na Constituição, mas as inúmeras normas com a mesma técnica de que se valem os estatutos.”
Ante ao exposto, verifica-se que, mesmo sendo a parte obrigacional do Código de 2002, a que menos alterações legislativas sofreu, deve ser a mesma, interpretada sistematicamente com relação à Parte Geral, bem como a todo restante do Código, sobretudo pelo fato de que o direito obrigacional é, em verdade, uma espécie de “Parte Geral do Direito Contratual”, composta de preceitos genéricos com relação à atividade negocial. Daí a importância das cláusulas gerais, em prol da operabilidade do Código, mais sensível às realidades de cada caso.
Explicados alguns pontos das modificações introduzidas na Parte Geral do Código Civil de 2002, bem como seus reflexos na Parte Obrigacional do mesmo Código, ainda longe de ter exaurido o tema, mesmo porque este não foi o fito deste texto, resta aguardar o posicionamento jurisprudencial e doutrinário, ainda escassos, acerca da influência dos três princípios apontados supra, na nova sistemática do Direito Civil.
Notas de rodapé
1- AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria Geral das Obrigações: Responsabilidade Civil / Álvaro Villaça de Azevedo.-10. ed. — São Paulo: Atlas, 2004. — (Curso de Direito Civil), pág. 26.
2- TARTUCE, Flávio. Novo Direito Civil: Obrigações / Flávio Tartuce; instrucional designer: Daniela Erani Monteiro Will — Palhoça: UNISULVirtual, 2004, p. 303.
3- O Código do Consumidor (Lei nº 8.078/90), por ser logicamente anterior ao novo Código Civil, demonstra a existência anterior da tendência legislativa de socialização das regras de interesse privado. Em verdade, o ápice desta tendência, se dá com a promulgação de Constituição Federal de 1988, o que levou grande parte da doutrina, a falar em constitucionalização do Direito Civil.
4- GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo Curso de Direito Civil. / Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho. — São Paulo: Saraiva, 2003, p 13 e 14.
5- A auto-tutela prevista em tais artigos, não é concessão estatal absoluta aos particulares para que os mesmos ajam da maneira que entenderem. Há, por certo, a necessidade de presença de urgência, e caso fique comprovada existência de abuso de direito, o agente responderá por tal abuso.
6- TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil / Gustavo Tepedino. 3ª edição atualizada. — Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 18 e 19.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria Geral das Obrigações: Responsabilidade Civil / Álvaro Villaça de Azevedo.-10. ed. — São Paulo: Atlas, 2004. — (Curso de Direito Civil).
BRASIL, Novo Código Civil. — Exposição de Motivos e Texto Sancionado. Brasília: Editora do Senado Federal, 2004.
GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo Curso de Direito Civil. / Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho. — São Paulo: Saraiva, 2003.
TARTUCE, Flávio. Novo Direito Civil: Obrigações / Flávio Tartuce; instrucional designer: Daniela Erani Monteiro Will — Palhoça: UNISULVirtual, 2004.
TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil / Gustavo Tepedino. 3ª edição atualizada. — Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
Revista Consultor Jurídico, 31 de Março de 2005