Embora nossa Constituição Federal não permita o casamento entre pessoas do mesmo sexo, os relacionamentos homossexuais são uma realidade em nossa sociedade, assim como o são em praticamente todo o mundo.
Ainda que haja certa relutância em reconhecer a legitimidade desse tipo de relação, mesmo assim, esta não poderia deixar de ser amparada pelo Estado através do Poder Judiciário, pois, uma vez existente tal relação, dela decorrem direitos e deveres aos seus integrantes.
Nosso ordenamento jurídico define tanto o casamento como a união estável quanto o vínculo entre homem e mulher, unidos espiritual e materialmente, por livre vontade própria com o objetivo de comunhão para a vida toda e constituição de família. Daí se observa que, tendo o legislador expressamente consignado se tratar de relacionamento “entre homem e mulher”, deixou de fora as hipóteses de união entre pessoas de mesmo sexo, ficando assim tais sociedades afetivas carentes de definição legal.
Recentes decisões emanadas de nossos tribunais vêm corrigindo tal omissão, declarando o status ora de união estável, ora de sociedade de fato destes relacionamentos, reconhecendo direitos patrimoniais e sucessórios e até concedendo benefícios previdenciários.
A doutrina vem reconhecendo que a união constituída por homem e mulher através do casamento civil e religioso não pode ser mais a única definição de família. De fato, nas últimas décadas ocorreram mudanças no comportamento das pessoas no mundo todo no sentido de terem uma maior liberação sexual, da busca pelo prazer da companhia de outrem, afastada da intenção de vínculo eterno.
A mulher tornou-se independente e com direitos semelhantes aos dos homens; proliferaram as famílias monoparentais, em parte por decorrência da instituição do divórcio; as pessoas se casam uma, duas, várias vezes, conforme os relacionamentos florescem, se desenvolvem, perecem e terminam. As uniões entre pessoas do mesmo sexo ganharam notoriedade, não mais sendo concebível esconder a opção sexual por medo de preconceitos.
Decisões surgiram recentemente concedendo a casais formados por pessoas do mesmo sexo o direito de adoção, o que representa significativo avanço social, embora ainda visto com algum preconceito, no mais das vezes decorrente da falta de informação.
Muitos questionam se haverá influência do comportamento dos pais na opção sexual da criança adotada, se a criança será prejudicada psicologicamente pela falta de referência de pais de sexos diferentes, se virá a sofrer qualquer tipo de discriminação de colegas etc. Tais questões já foram devidamente estudadas através de diversos trabalhos no campo da psicologia, que demonstram que não há indícios de prejuízo à criança adotada por casais homoafetivos.
De fato, a Resolução 01/99, do Conselho Federal de Psicologia, reconhece que “a homossexualidade não constitui doença, distúrbio nem perversão” e que, portanto, não pode impedir a adoção.
Igualmente, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) nada menciona quanto à sexualidade dos adotantes, ou mesmo a impedimentos eventualmente decorrentes da opção sexual do casal, dispondo estarem aptos a adotar quaisquer pessoas acima dos 21 anos de idade. O estatuto estabelece, quanto à adoção, que deve ser buscado o bem-estar e a proteção do melhor interesse do menor, dispondo expressamente que “a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos” (artigo 43).
O único obste legal nesses casos se encontra no artigo 1.622 do Código Civil, o qual dispõe que “ninguém poderá ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher, ou se viverem em união estável”.
Como o casamento entre pessoas de mesmo sexo é vedado e o reconhecimento de que o tal relacionamento constitui união estável ainda não é unânime (pois o conceito de união estável assim não permite), persiste tal barreira. Esse impedimento tem sido afastado pelos julgadores, diante do reconhecimento da legalidade de tais sociedades de fato.
Além do mais, o próprio Código Civil permite a adoção por pessoa homossexual desde que individualmente, o que se revela verdadeiro contra-senso, pois dá condições para que um casal homoafetivo adote uma criança somente em nome de um dos integrantes do relacionamento, mas proíbe a adoção em nome de ambos.
Pior, a prática de eventuais “manobras” nesse sentido, omitindo a relação para facilitar a adoção por somente um dos integrantes do casal, somente prejudica a própria criança adotada. Isto porque, sendo reconhecida como filha de somente um dos integrantes da relação, não poderá ser titular de direitos decorrentes do parentesco perante o outro integrante, caso o relacionamento termine (patrimoniais, de pensão alimentícia, por exemplo) ou em caso de morte do mesmo (sucessórios).
É preciso, antes de criticar, lembrar que muitas pessoas que vivem relacionamentos homoafetivos são extremamente bem-sucedidas, educadas, cultas e com situação econômica confortável, se revelando pais ideais para a tarefa árdua de educar uma criança, para que ela se torne um adulto preparado, culto e com valores realmente importantes como honestidade e integridade.
Nada mais justo do que conceder àqueles que possuem tais condições o direito de serem pais e de realizarem o projeto familiar que escolheram, independentemente de opção sexual; nada mais justo para com os pais e para com as crianças, que precisam de uma família também.
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Rafael Nogueira da Gama é formado em direito pela PUC-RS, especializado em direito processual civil e direito do seguro, membro do Instituto Brasileiro do Direito de Família e atua em Curitiba no escritório Geraldo Nogueira da Gama Advocacia e Consultoria