Adolescente em conflito com lei é monstro que a imprensa inventou

por Karyna Sposato e Thiago Monteiro Pereira

Muitas questões sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente têm sido abordadas de modo inadequado, principalmente quando referentes à prática de atos infracionais e à correspondente sanção aplicada pelo Estado. Nesse sentido, o caso envolvendo um adolescente pode muitas vezes tomar a proporção que ele de fato não tem. Exemplo recente disso é a repercussão do ato infracional envolvendo Champinha, adolescente de 17 anos de idade, que participou em companhia de cinco adultos do assassinato de outros dois jovens.

Esse caso foi amplamente divulgado nos meios de comunicação e serviu de argumento para novas defesas da redução da maioridade penal e de mudanças nos dispositivos do ECA. Contudo, não fossem esses excepcionais episódios violentos, é muito provável que os defensores do rebaixamento da imputabilidade penal não teriam o que usar para fundamentarem seu posicionamento. Afinal, os discursos baseiam-se, exclusivamente, na atribuição de violência aos delitos praticados por jovens.

Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo nos primeiros três trimestres de 2004 foram apreendidos, respectivamente, 4.459, 5.443 e 4.856 adolescentes. No mesmo período, as prisões de maiores de dezoito anos foram, respectivamente, 23.049, 23.307 e 21.413. Comparando-se os números obtidos dos adolescentes apreendidos com os de presos com maiores dezoito anos, chegamos à conclusão de que a apreensão de adolescentes corresponde a uma pequena parcela do total de prisões pela polícia no período mencionado. A mesma percepção pode ser obtida em anos anteriores. Isso demonstra que os atos infracionais não são tão expressivos como alguns querem provar, ainda mais se considerarmos que muitos dos menores de dezoito anos apreendidos são inocentados ao final do processo na Justiça da Infância e da Juventude.

Outra análise fundamental para avaliar a participação de adolescentes em atos infracionais é a comparação entre a população total de adolescentes com a de jovens submetidos a alguma medida sócio-educativa. Em 2000, São Paulo tinha cerca de 4.969.260 adolescentes, segundo dados do IBGE. Conforme levantamento de janeiro de 2004, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, São Paulo tinha 19.747 jovens inseridos em medida sócio-educativas. Calculando-se a proporção entre estes e a população total de adolescentes, no ano de 2000, temos que apenas 0,4% desse contingente populacional está inserido em alguma medida sócio-educativa. Não há, portanto, motivos para opiniões extremadas nem conclusões precipitadas baseadas em casos excepcionais.

O clamor por maior rigor na sanção do adolescente autor de ato infracional certamente está relacionado com a cobertura jornalística que é feita sobre o tema. O ILANUD (Instituto Latino-americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente), em 2001, realizou uma pesquisa com 2.100 adolescentes acusados da autoria de ato infracional, na qual se constatou que apenas 1,4% destes havia cometido ato infracional contra a vida. Em outra pesquisa, o instituto analisando a programação de 27 telejornais exibidos por sete emissoras de canal aberto do Brasil verificou, por exemplo, que os homicídios ocuparam 59% do noticiário e sua ocorrência foi de apenas 1,7%, no mesmo período em que se acompanhou os telejornais. É notória a inflação de determinados delitos pela mídia em geral. Disso resulta uma sensação de insegurança não proporcional à quantidade de crimes violentos que realmente ocorrem na sociedade.

Essas afirmações ganham força com os resultados obtidos pelo IPEA em estudo de 2003. Este instituto, em pesquisa com adolescentes privados de liberdade no Brasil, apurou que, em São Paulo, de um total de 3.120 delitos, 159 correspondia a latrocínio, 287 homicídio e 85 estupro. Nesse mesmo levantamento, verificou-se que a maior incidência era do ato infracional equiparado ao crime de roubo, perfazendo um total de 1.851 casos.

Cabe acrescentar, por fim, que o Estatuto da Criança e do Adolescente é tido como uma das leis mais avançadas do mundo e serviu de modelo para que outros países definissem suas leis aplicáveis aos adolescentes que praticaram ato infracional. Ademais, essa inovação legislativa brasileira, além de compatível com a Constituição Federal de 1988, está inserida em uma discussão mundial que culminou na elaboração da Convenção Internacional dos Direitos da Criança em 1989. Isso indica que estamos em conformidade com a evolução do tratamento legal de crianças e adolescentes, bem como, que nossas leis têm sido suficientes para manter baixo o número de crimes praticados por menores de dezoito anos.

Não podemos, assim, sucumbir aos reclamos daqueles que, tocados pela emoção, pedem o endurecimento da sanção contra adolescentes. Se o correto fosse que os sentimentos e as emoções norteassem a elaboração das leis e as ações do Estado não restariam outras coisas senão a barbárie e os castigos imoderados, há tempos rechaçados pela humanidade.

Revista Consultor Jurídico, 10 de Novembro de 2004

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