Advogado é importante no inquérito policial, mas não obrigatório

Autores: Henrique Hoffmann Monteiro de Castro e Adriano Sousa Costa (*)

 

Causou alvoroço o advento da Lei 13.245/16, que alterou o artigo 7º do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8.906/94) para estabelecer balizas sobre a atuação do causídico na defesa do cliente investigado pela prática de ilícitos. Isso porque alguns enxergaram a possibilidade de o dispositivo funcionar como a pedra fundamental de um sistema policial remodelado, finalmente de contornos acusatórios. Por mais que acreditemos que o inquérito policial como instrumento de garantias fundamentais seja uma inexorável tendência, não parece que tenha perdido seu caráter inquisitório do dia para a noite.

Como já salientamos anteriormente[1], o inquérito policial consiste em importante ferramenta inquisitorial de produção de elementos informativos e probatórios[2], sem descurar de sua missão de resguardo dos direitos básicos dos envolvidos, inclusive do investigado.

A justificativa da natureza inquisitorial é de fácil entendimento. Afinal, caso os atos investigatórios dependessem de prévia comunicação à defesa, restaria frustrada a localização de fontes de prova e comprometida a eficácia da Polícia Judiciária, em grande parte calcada no elemento surpresa.

Isso não significa que não haja incidência dos princípios do contraditório e da ampla defesa, que são perfeitamente aplicáveis durante a fase pré-processual, ainda que de forma mais tênue do que na fase processual. Nada obstante a afirmação reducionista de parte da doutrina e das próprias cortes superiores[3] no sentido de que os postulados não se aproveitariam na investigação preliminar, o próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu a incidência flexibilizada das normas siamesas ao editar a famigerada Súmula Vinculante 14, que estabelece que é direito do defensor ter acesso amplo aos elementos de prova, desde que já documentados e no interesse do representado para o exercício do direito de defesa.

Isso posto, passemos à análise da Lei 13.245/16.

Estabelece o novel inciso XXI do artigo 7º do EOAB que é direito do advogado “assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração: a) apresentar razões e quesitos”.

Nota-se que a participação do advogado no inquérito policial continua não sendo obrigatória, mas o procurador do investigado tem o direito de participar da inquirição do cliente. Trata-se mais de prerrogativa do advogado constituído do que um direito do suspeito, cujo exercício da ampla defesa, conquanto seja mitigado na fase pré-processual, será pleno apenas na etapa processual. Afinal, o artigo 6º, V do CPP admite o emprego das regras do interrogatório judicial à fase policial apenas no que for aplicável, em respeito justamente à natureza inquisitiva do inquérito policial.

O causídico atuará imperativamente a partir da produção da “prova” oral relativa a seu cliente, ou seja, desde sua oitiva como indiciado (“interrogatório”) ou como mera testemunha (“depoimento”). É dizer, o advogado tem direito a assistir o seu cliente no curso do procedimento apuratório, mas não necessariamente desde o seu início formal. Até porque na maioria das investigações inexiste a priori um rol de investigados. À medida que as várias linhas investigativas vão submergindo e imergindo no arenoso terreno da apuração é que os envolvidos passam a se inserir verdadeiramente no contexto apuratório policial, quando são intimados a prestar seus esclarecimentos no bojo do procedimento apuratório, sejam como vítimas, testemunhas ou suspeitos. É nesse ponto que passa a ser necessário que a legislação dê garantias ao advogado para que ele possa acompanhar o seu cliente na oitiva (independentemente de já o ser considerado suspeito), sob pena de ele acabar produzindo, inadvertidamente, elementos em seu desfavor.

Caso outra seja a interpretação tomada, pareceria absolutamente desnecessária a opção do legislador em fixar – como marco inicial de eventuais nulidades – os atos de interrogatório e de depoimento. De fato, caso o legislador almejasse dar maior amplitude à atuação do advogado na investigação (ou seja, tendo ele que estar presente do começo ao final dela), deveria ter mencionado a necessária nulidade absoluta de todos os atos realizados, e não só da oitiva em diante. Ora, se o legislador optou por utilizar a oitiva do cidadão como marco de nulidade (bem como o ponto de partida de todas as outras nódoas por derivação) é porque esses atos (“interrogatório”, “depoimento” ou declaração) são os que foram verdadeiramente focalizados no dispositivo em debate. Não se pode olvidar, todavia, que a não exigência de intimação do advogado para os atos policias anteriores em nada afeta o direito do defensor de acesso aos elementos investigativos produzidos antes desse marco temporal.[4]

Ora, sempre foi uma luta dos advogados ter voz ativa no contexto de apurações inquisitoriais, principalmente quando da realização de oitivas. Frequentemente, os advogados queriam expor razões ao presidente das investigações, bem como fazer questionamentos circunstanciados a seus clientes, e acabavam sendo silenciados, sob o argumento de que não deveriam interferir no curso da oitiva. Certamente, esse parece ser um dos motes de tal dispositivo, o qual permite ao defensor apresentar razões e quesitos nesse contexto, ou seja, garante ao causídico, além de poder assistir o seu cliente quando de sua oitiva, também justificar fatos e formular perguntas que auxiliem na apuração dos fatos. Evidentemente, a participação do defensor no interrogatório policial não deve se convolar em protagonismo na direção da colheita de elementos. A condução do ato deve ser feita pela autoridade policial, que ao final pode admitir perguntas pertinentes e relevantes (artigo 188 do CPP).

Essa atuação poderá também consistir na apresentação de razões, procurando apontar elementos a justificar um desindiciamento, levando o delegado de polícia a externar juízo de valor no relatório do inquérito policial por meio de análise técnico-jurídica[5]. Ou mesmo na formulação de quesitos relativos a eventual perícia.[6]

O impedimento do acesso do advogado ao interrogatório do cliente gera nulidade absoluta[7] do respectivo ato, bem como dos elementos (investigatórios ou probatórios) decorrentes.[8] Nota-se que a nulidade decorre de prerrogativa de advogado, e não da ausência de defesa técnica a todo e qualquer investigado.

Embora ainda haja vozes sustentando que os vícios do inquérito policial constituem “meras irregularidades” sem o condão de acarretar nulidade no processo penal, há fartos exemplos em sentido contrário na jurisprudência das cortes superiores[9] e na doutrina[10]. Nada mais correto, tendo em vista que a investigação policial tem força suficiente para embasar restrições à liberdade e ao patrimônio do cidadão.

A alínea “b” do dispositivo, que permitia ao advogado requisitar diligências, foi vetada. Como explicado nas razões do veto, da forma como redigido, o dispositivo poderia levar à interpretação equivocada de que se trataria de ordem[11]. Persiste, todavia, o direito do advogado a requerer diligências, que serão ou não realizadas a juízo discricionário do delegado de polícia (artigo 14 do CPP), presidente do inquérito policial. A inexistência de poder requisitório do advogado na investigação preliminar fortalece o que estamos a defender: a manutenção da característica inquisitorial do inquérito policial, mesmo após tal alteração legislativa.

Já segundo o artigo 7º, XIV do EOAB, que sofreu singelas e importantes modificações, o advogado tem o direito de “examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital”.

A substituição do termo “inquérito policial” por “investigações de qualquer natureza” indica, em primeiro lugar, que a atuação do advogado na defesa do cliente pode se dar tanto no inquérito policial quanto no termo circunstanciado de ocorrência ou boletim de ocorrência circunstanciado. Além disso, não se restringe à esfera criminal, inclusive porque não raras vezes os ilícitos penais reverberam na seara administrativa.

O legislador, ao trocar a expressão “qualquer repartição policial” por “qualquer instituição responsável por conduzir investigação“, deixou claro que o causídico pode acessar autos de investigações em todos os órgãos estatais.[12] Não apenas o inquérito policial na Polícia Civil ou Federal, mas também o procedimento investigatório criminal produzido pelo Ministério Público[13] e os procedimentos que tramitam no Cade e no Coaf, por exemplo.

O direito a “copiar peças e tomar apontamentos” teve seu alcance ampliado, podendo ser feito “em meio físico ou digital”, significando que a cópia de peças, que ocorre na maioria das vezes por fotocópia, também pode ser feita por CD ou pen drive, por exemplo.

Quanto aos demais elementos do inciso XIV, permanece a leitura anterior, a saber.

No que concerne aos procedimentos que ainda não tenham sido concluídos (“findos ou em andamento”), bem como aqueles “conclusos à autoridade” deve ser feita uma interpretação cum grano salis.

Sabe-se que a sigilosidade das diligências não afasta a possibilidade do defensor ter acesso aos autos do procedimento investigatório. Esse direito exsurge, todavia, a partir de sua finalização e formalização documental. Isso significa, segundo a doutrina e a Corte Constitucional, que:

em se tratando de diligências que ainda não foram realizadas ou que estão em andamento, não há falar em prévia comunicação ao advogado, nem tampouco ao investigado, na medida em que o sigilo é inerente à própria eficácia da medida investigatória. É o que se denomina de sigilo interno, que visa assegurar a eficiência da investigação, que poderia ser seriamente prejudicada com a ciência prévia de determinadas diligências pelo investigado e por seu advogado.[14]

O direito do indiciado, por seu advogado, tem por objeto as informações já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da execução de diligências em curso (…); dispõe, em consequência a autoridade policial de meios legítimos para obviar inconvenientes que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório.[15]

Esse entendimento também está estampado no parágrafo 11, segundo o qual “no caso previsto no inciso XIV, a autoridade competente poderá delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não documentados nos autos, quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências”, cujo conteúdo se assemelha à súmula vinculante 14 do STF.

Não custa lembrar que os requerimentos devem ser escritos (artigo 9º do CPP), e em se tratando de investigação referente a organizações criminosas, uma vez decretado o sigilo da investigação pela autoridade judicial competente, o acesso do advogado aos elementos informativos deve ser precedido de autorização judicial (artigo 23 da Lei  12.850/13).

De mais a mais, é importante grifar que segundo o STF não há direito de vista se o peticionante não for investigado, ou seja, quando não se verificar qualquer ato concreto no inquérito policial.[16]

Em que pese a regra geral de desnecessidade de procuração, o instrumento de mandato é necessário para acesso a autos sigilosos[17], porquanto, segundo o novo §10, “nos autos sujeitos a sigilo, deve o advogado apresentar procuração para o exercício dos direitos de que trata o inciso XIV”. Além do mais, pode ser exigido diante de suspeita de irregularidade ou patrocínio infiel.

Por fim, consigna o §12 que “a inobservância aos direitos estabelecidos no inciso XIV, o fornecimento incompleto de autos ou o fornecimento de autos em que houve a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo implicará responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade do responsável que impedir o acesso do advogado com o intuito de prejudicar o exercício da defesa, sem prejuízo do direito subjetivo do advogado de requerer acesso aos autos ao juiz competente”. A defesa não pode ser prejudicada com a seleção apenas de provas que beneficiem o Ministério Público, como já advertiram os tribunais superiores[18], sob pena de abuso de autoridade.

Deveras, persiste a facultatividade do advogado no inquérito policial, bem como os demais regramentos atinentes à defesa na fase pré-processual, tais como direito do preso se comunicar com o advogado[19] e encaminhamento de cópia do auto de prisão em flagrante para a Defensoria Pública[20]

Com efeito, a nova redação do Estatuto da OAB, muito embora não tenha promovido uma revolução na fase pré-processual, ressaltou que a presença do advogado é extremamente recomendável em toda a persecução penal, até mesmo na fase inquisitorial, atuando como mais uma garantia de credibilidade do procedimento policial.

 

 

 

Autores: Henrique Hoffmann Monteiro de Castro é delegado de Polícia Civil do Paraná, mestrando em Direito pela Uenp, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF e em Segurança Pública pela Uniesp. Também é professor convidado da Escola Nacional de Polícia Judiciária, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná, da Escola da Magistratura do Paraná e da Escola do Ministério Público do Paraná e professor-coordenador do Curso CEI e da pós-graduação em Ciências Criminais da Facnopar.

 Adriano Sousa Costa é delegado de polícia de Goiás, mestrando em Ciências Políticas pela UFG, professor titular da Escola Superior da Polícia Civil do Estado de Goiás, professor convidado do Ministério da Justiça (SENASP) e da rede LFG, professor da Especialização na PUC/GO, da FASAM e da FACNOPAR, professor universitário na UNIP/GO e UniAnhanguera/GO, e membro da Academia Goiana de Direito.


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