A advocacia pública, entendida como corpo de profissionais do Direito responsáveis pela defesa dos interesses do Erário, tradicionalmente é vista pelos cidadãos como verdadeiro Cérbero, cuja missão consistiria tão-somente na vigília lorpa e irracional dos interesses do Estado-Leviatã.
Não haveria figura mais antipática que a do advogado público, encarnando a um só tempo as mazelas da profissão, vista pelos olhos desconfiados do indivíduo comum, e as do Estado — não aquele Estado provedor, paternalista, mas o Estado confiscador das liberdades e das poupanças populares.
Uma mudança sem precedentes, contudo, já pode ser sentida na postura da advocacia pública, com reflexos patentes nos resultados obtidos. O advogado público, outrora defensor cego do príncipe, volta-se à sua verdadeira vocação: a defesa do interesse público, coincida ou não com os egoísticos interesses dos governantes.
E não é por acaso uma tal mudança: a Constituição de 1988, ao erigir a advocacia pública ao patamar de instrumento indispensável à Justiça, possibilitou, mesmo que de modo tímido, a criação do gérmen de uma ainda quimérica independência funcional, sem prejuízo da intransigência na defesa dos elevados interesses a que se encontra sotoposta.
O advogado público abebera na advocacia privada o apego e a fidelidade a seu cliente mor, qual seja a comunhão de interesses a que se convencionou chamar interesse público primário, diverso ontologicamente do da entidade estatal a que se subordina funcionalmente, e que muita vez não se mostram coincidentes.
Tal mudança de perspectiva, a seu turno, instila no espírito desses profissionais ânimo novo, ou não tão novo, mas que se encontrava sepultado no recôndito dos autos e pareceres. A defesa da sociedade merece uma atuação ousada, transparente, destemida, incompatível com a paz das trincheiras dos computadores, processos e papéis.
O Cérbero de antanho transformou-se no atento vigilante da legalidade, sabedor de seu papel de instrumento da justiça, pois, afinal, cada centavo que deixa de sair ou que ingressa nos cofres públicos redundará em proveito para todos. Não vale à pena deixar as trincheiras para a defesa desse ideal?
Dirão alguns: se tais recursos a miúdo são desviados de seus reais destinatários, será que, ainda assim, vale à pena o sacrifício individual? Claro que sim. Eventual tredestinação de recursos contará com os desvelos dos órgãos do Ministério Público e dos próprios advogados, cônscios de suas prerrogativas constitucionais.
O abandono da postura burocrática e o apego à legalidade contribui, a outro tanto, para a diminuição de processos baseados em defesa manifestamente infundadas e para uma atuação mais ética e destemida, sem que isso importe em qualquer agravo aos elevados interesses defendidos.
Não se quer cobrar de quem não deve, não se quer deixar de pagar o que é devido. O advogado público não é obstáculo, é instrumento, é servo da justiça e do interesse público. Sua atuação encontra razão de ser e ao mesmo tempo limite na defesa do interesse público, ainda que tal atuar possa causar dissabores a alguns.
A atuação da advocacia pública, portanto, reveste-se de inegável matiz social, razão pela qual deve ser acoroçoada e prestigiada.
Pedro C. Raposo Lopes é procurador regional da Fazenda Nacional da 1ª Região e diretor da Escola Superior da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.