Advogados podem, e devem, gravar atos oficiais e públicos

Autor: Marcelo Feller (*)

 

Os fatos que contarei aqui são verídicos. E tenho, em meu poder, as gravações como provas. Não são fatos que ocorreram comigo, não tenho autorização para divulgar os áudios e, de qualquer modo, preservarei os nomes das partes envolvidas, porque o intuito deste relato é apenas mostrar o quanto é importante se permitir a gravação de atos por parte do advogado, ainda que sem prévia autorização judicial.

Em todos eles, as autoridades envolvidas não foram previamente cientificadas de que estavam sendo gravadas. Se soubessem, infiro, ou teriam agido diferente, ou não teriam permitido a gravação. De qualquer forma, nenhum dos casos tramita ou tramitava sob segredo de justiça

Após a leitura dos relatos, cada um que tire suas próprias conclusões.

Fato 1
Instrução criminal em caso de roubo. Vítima que havia reconhecido o réu na polícia, sem sombra de dúvidas. Muito embora as audiências, em si, fossem gravadas, o ato do reconhecimento em juízo era feito em sala separada, sem gravação. Juiz, vítima, promotor de Justiça e advogado dirigem-se à sala, com o réu separado por um vidro, e dá-se o seguinte diálogo:

Juiz: — Você reconhece o acusado?

Vítima: — Olha doutor, deixa eu ver… acho que não é esse aí não.

Juiz: — Olha direito, o senhor não precisa ter pressa.

Vítima: — É… acho que não foi ele não.

Juiz — Mas na delegacia o senhor disse que foi ele, e que não tinha nenhuma dúvida. Olha com bastante calma. Já faz um tempão dos fatos e o réu pode ter mudado um pouquinho.

Vítima: — Olha, pode até ser, mas eu acho que não foi esse aí não.

Juiz: — Meu amigo, deixa eu explicar uma coisa para o senhor. Mentir para um juiz ou para um delegado é crime de falso testemunho. Na delegacia o senhor disse que era ele. Aqui o senhor está dizendo que não foi. O senhor mentiu na delegacia ou está mentindo aqui?

Advogado: — Doutor, o senhor não pode…

Juiz: — O senhor não me interrompa. Não estamos ainda em audiência e Vossa Excelência não está com a palavra.

Advogado: — Doutor, Vossa Excelência…

Juiz: — Doutor, se o senhor não se calar vou determinar que saia da sala. [para a vítima] É ele ou não é? Pense bem e responda para voltarmos à sala.

Vítima: — É, acho que é ele sim.

Juiz: — O senhor tem alguma dúvida?

Vítima: — É, olhando com atenção, acho que foi ele sim.

Juiz: — Mas tem alguma dúvida?

Vítima: — Não.

Juiz: — Perfeito, vamos.

Todos voltam à sala de audiências, a vítima senta-se para ser inquirida, e inicia-se a gravação oficial. Diante da câmera, o juiz pergunta à vítima:

Juiz: — Nós fomos até uma sala aqui ao lado para que você efetuasse o reconhecimento do acusado, correto?

Vítima: — aham

Juiz: — O senhor reconheceu ele como o autor do crime?

Vítima: — Sim.

Advogado: — Doutor, tem que constar exatamente o que aconteceu lá!

Juiz: — O senhor está me irritando, doutor. Quando eu lhe abrir a palavra, você pergunta o que bem entender. [para a vítima] O senhor inicialmente ficou com dúvida, em razão do tempo que se passou entre os fatos e hoje, mas depois ficou convencido que era ele, correto?

Vítima: — Sim.

Juiz: — Tem alguma dúvida?

Vítima: — Não.

Após juiz e promotor de Justiça fazerem suas perguntas, o magistrado abre a palavra para o advogado:

Advogado: — Obrigado Excelência. Antes de mais nada, eu gostaria que o senhor [para a vítima] esclarecesse exatamente o que se deu na sala do reconhecimento.

Juiz: — Doutor, a pergunta já foi por mim formulada e respondida. Ele inicialmente teve dúvida mas depois teve certeza. Por isso, indefiro a pergunta.

Advogado: — Doutor, assim não dá pra trabalhar. Quero então que conste o indeferimento e que me abra a ata para me manifestar.

Juiz: — Ao final da audiência o senhor se manifesta. Não preciso constar nada porque o ato está sendo gravado.

O advogado, com medo de represálias, não juntou a gravação aos autos. O réu foi condenado com base nas palavras da vítima, “harmoniosas com as demais provas carreadas aos autos”.

Fato 2
O advogado prepara-se para sustentar oralmente um Habeas Corpus requerendo a liberdade de um cliente que se encontrava preventivamente preso pelo crime de roubo. A Câmara é das mais duras e o advogado opta por gravar o ato.

Após a sustentação, o desembargador relator não lê o voto. Diz apenas aos colegas que se trata de caso de roubo e que de acordo com a jurisprudência da Câmara, acusados de roubo têm, necessariamente, que responderem aos processos custodiados. Por isso, estava denegando a ordem. Sem qualquer discussão, o segundo e terceiro desembargadores apenas acompanham o voto. O advogado agradece e se retira.

Ao ter acesso ao voto, o advogado surpreende-se: o que foi dito oralmente foi suprimido do voto, que dava a aparência de a ordem ter sido denegada por motivos concretos.

O advogado transcreveu o ocorrido e impetrou novo Habeas Corpus perante o STJ, que ainda não foi julgado. A única forma que o advogado teve para comprovar que a decisão tinha sido aquela exclusivamente por se tratar de acusação de roubo, e que o réu estava preso cautelarmente em razão da gravidade abstrata do crime, foi a gravação.

Fato 3
Enquanto aguardava sua audiência começar, um advogado teve um desentendimento respeitoso com um funcionário da vara onde se daria o ato.

Ao entrar na sala de audiências, e dar boa tarde a todos, o juiz presente pergunta ao advogado se seria ele quem teria desrespeitado o funcionário dele. O Aavogado começa a, respeitosamente e em tom de voz normal, explicar o ocorrido. O juiz interrompe-o, dizendo-se “senta lá e fica quietinho que preciso instalar a audiência”. O advogado rebate, pedindo respeito: “Vossa Excelência não tem o direito de falar assim comigo. Respeite-me porque eu estou lhe respeitando”. O juiz chama o advogado de mal educado, e diz que está tendo sua autoridade desrespeitada. O advogado responde que não pretende, de nenhuma maneira, desrespeitar a autoridade de Sua Excelência, mas que não admitirá ser desrespeitado. O juiz levanta-se, bastante irritado, e sai da sala. Minutos depois, um funcionário vem avisar que a audiência seria adiada.

O juiz coloca o acontecido sucintamente na ata. Posteriormente, declara-se suspeito e faz afirmações mentirosas em sua decisão. Determina a instauração de inquérito contra o advogado. Outra funcionária que acompanhava a audiência é ouvida e confirma que o magistrado foi desacatado. O promotor de Justiça que oficiava na vara também é ouvido no inquérito, e confirma o desacato, dizendo que o advogado já entrou na sala desrespeitando o magistrado. O advogado é ouvido, oportunidade em que entrega a gravação, devidamente transcrita e em mídia. Diante da degravação, outro promotor de Justiça requer o arquivamento do inquérito e outro magistrado assim determina.

Nem o magistrado é investigado por denunciação caluniosa, tampouco a funcionária e o promotor de Justiça que testemunharam o ocorrido foram investigados por falso testemunho.

O advogado, se não tivesse gravado o ocorrido, certamente estaria condenado processado e condenado.

Fato 4
Réu acusado de tráfico de drogas porque teria sido surpreendido por policiais militares enquanto trocava mensagens com João (nome fictício), falando de uma maconha de ótima qualidade que estava em seu poder. As mensagens nunca foram periciadas, havendo nos autos apenas o testemunho indireto dos policiais militares, porque o celular chegou ao Instituto de Criminalística sem bateria, e o Instituto não tinha o carregador específico para carregar o aparelho. O advogado, por meio de petição, oferece um carregador daquele celular para o Juízo remeter ao IC. O pedido é indeferido, porque o réu estava preso e o Juízo tinha que zelar pelo rápido término da instrução.

A audiência, por opção da magistrada presidente, não é gravada. Em sua vara, ela dita os depoimentos, porque “fica mais fácil depois para fazer a sentença e para o tribunal”. Não houve protesto da defesa quanto a isso.

João é ouvido, como testemunha da acusação, oportunidade em que esclarece que não iria comprar drogas do réu. Que na verdade eram amigos de infância e que sempre fumavam maconha juntos. Que o réu, nas mensagens, o estava convidado para juntos consumirem a droga. Durante a inquirição da testemunha pelo promotor de Justiça, dá-se o seguinte diálogo:

Promotor: — Essa prática era comum entre vocês, de dividirem droga que o outro comprou?

Testemunha: — Sim doutor, desde os 16 anos que a gente fuma maconha junto.

Promotor: — E você já comprou maconha e forneceu para o réu?

Advogado: — Doutora [dirigindo-se à juíza], eu gostaria que a testemunha fosse advertida que não tem a obrigação de dizer a verdade sobre fatos que a possam incriminar.

Promotor: [para o advogado] — O senhor está defendendo quem? O réu ou a testemunha?

Advogado: — Estou defendendo o réu, doutor, mas a testemunha tem o direito de ser advertida.

Promotor: — Não estou entendendo a sua postura de defensor da testemunha, doutor. Por acaso o senhor combinou com ela que teria que dizer isso?

A partir daí, os ânimos se exaltaram e tanto o advogado quanto o promotor elevaram suas vozes. A juíza, rigorosamente, determinou que ambos se calassem, que não permitiria que a audiência virasse uma bagunça e, após os ânimos se acalmarem, devolveu a palavra ao promotor, sem advertir a testemunha de que ela não precisava se auto incriminar:

Promotor: — Continuando, vocês dois já fumaram maconha que tinha sido comprada por você, e que você ofereceu para o réu?

Advogado: — Doutor, desculpe interrompê-lo de novo, mas a testemunha necessariamente tem que ser advertida.

Promotor: — De qual crime o senhor está falando, doutor? De tráfico de drogas? Que tráfico de drogas eu poderia imputar a ele se eu não apreendi droga nenhuma? Como falaria de tráfico de drogas sem materialidade, apenas com a confissão da testemunha? Confissão isolada não serve pra condenar ninguém, doutor.

Advogado: — Se esse é o entendimento de Vossa Excelência, e o de Vossa Excelência [para a magistrada], sem problemas.

Juíza: [para a testemunha] — Pode responder.

Testemunha: — Qual era a pergunta mesmo?

Promotor:  — Se o senhor já usou drogas com o réu que o senhor tinha comprado, e ofereceu a ele.

Testemunha: — Sim, isso é normal. Às vezes eu compro, às vezes ele compra, e sempre que dá fumamos juntos.

Em memoriais escritos, o promotor de Justiça requer a condenação do réu. E a extração de cópias para instauração de inquérito para apuração do crime de tráfico de drogas pela testemunha.

A juíza (a mesma que participou da audiência, pasmem), condena o réu pelo tráfico, e determina a extração de cópias para aquilo que o Ministério Público entender de direito.

Independente da condenação do réu, se justa ou injusta, a testemunha somente poderá atacar a validade da prova colhida com o seu depoimento em razão da gravação feita durante a audiência.

 

 

 

Autor:  é advogado do Feller Pacífico advogados.


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