Aftosa, mancha branca e a contagiosa invigilância sanitária

Celso Antônio Três

TUBARÃO (SC) – Até a eclosão da febre aftosa no Estado do MS (Mato Grosso do Sul), neste 2005, a expectativa era que o Brasil chegasse exportar US$ 8 bilhões de carne. Com a doença, defecção de US$ 1,5 bilhão já está consumado.

Uma vez mais a irresponsabilidade do poder público, subtraindo verbas da defesa sanitária agropecuária em prol do insaciável sorvedouro da dívida pública, juros escorchantes estabelecidos pelo Banco Central, neste 2005, já ultrapassando R$ 100 bilhões, valor equivalente a tudo que o país despendeu com a Previdência Social a mais de 22 milhões de aposentados, pensionistas, etc..

Todavia, a perversidade não é peculiaridade deste governo.

À época que o PT governava o Estado RS e o PSDB, FHC, o Brasil, a aftosa estava presente na fronteira com os países do Prata, sendo óbvia a iminência de contágio do rebanho nacional.

Ridiculamente, movidos por mesquinhas divergências ideológicas, o governo federal e grandes produtores gaúchos opuseram-se à pretensão do governo estadual em vacinar os bovinos.

“À la” avestruz, enfiando a cabeça no chão para ignorar o perigo acreditando assim evitá-lo, alegavam que vacinação seria a admissão da possibilidade da doença, repercutindo negativamente no mercado mundial.

O resultado é sabido. Houve contágio e milhares de animais foram sacrificados, igualmente imolada a pecuária.

O famoso SIF (Serviço de Inspeção Federal) é o exemplo mais acabado da derrocada do poder de polícia do Estado Brasileiro.

Todo produto de origem animal deveria ter a efetiva fiscalização do órgão. Os próprios produtores (frigoríficos, etc.) passaram a auto-fiscalizarem-se (sic), ou seja, eles os inspecionados consignando que os alimentos teriam sido sindicados pela autoridade. Posteriormente, o sistema foi “aperfeiçoado”: antecipadamente, os fabricantes de embalagem passaram a imprimir nos rótulos a inspeção, na prática, inexistente.

Na verdade, se a saúde animal é negligenciada, tomadas providências apenas quando eclodem danos gigantescos à economia, a saúde humana é simplesmente ignorada.

A prioridade da vigilância sanitária animal, como bem enfatiza a Constituição da República, é a “saúde e assistência pública … ” (art. 23, I) das pessoas e não a saúde financeira dos produtores, envidando, a qualquer custo, a comercialização, a exemplo do ocorrido no Estado de SC com a contaminação do camarão.

Reproduzo aqui recomendação do Ministério Público Federal ao Ministério da Agricultura, na pessoal do Secretário de Defesa Agropecuária, Gabriel Alves Maciel, tratando do emblemático episódio do contágio do cultivo de camarão pela, mancha branca.

Honrado em cumprimentá-lo, respeitosamente, considerando a infestação do vírus da mancha branca (“white spot syndrome vírus”) no cultivo do camarão exótico (“vannamei”) neste Estado de SC, ocasionando mortandade em massa, desastre ecológico com a contaminação dos aqüíferos onde despejados os crustáceos doentes e a periclitância da saúde humana, grave lesão aos direitos da cidadania uma vez sonegada a devida informação sobre o alimento por ela consumido, fundamentado nos arts. 23, II, e 129, VI, da Constituição da República c/c art. 6º, XX, da Lei Complementar nº 75/93, aduzo a presente RECOMENDAÇÃO no sentido dessa Secretaria de Defesa Agropecuária exercer sua competência na defesa coletiva, inspecionando os cultivos, interditando os contaminados, bem assim embargando o comércio dos camarões infectados ou, no mínimo, impondo aos fornecedores que informem os consumidores, embalando e rotulando o camarão, acerca da doença.

A matança em massa do camarão exótico cultivado em cativeiro pelo vírus da mancha branca é mais um desastre ecológico, entre vários outros prejuízos ao meio ambiente e o direito da coletividade (pescadores, veranistas, nativos, etc.) em usufruir dos bens públicos (água, lagoas, praias lagunares, etc.), cuja responsabilidade é dos criadores e dos órgãos públicos que licenciaram a atividade, quais sejam, FATMA (Fundação do Meio Ambiente do Estado de SC), EPAGRI (Empresa de Pesquisa Agropecuária de SC) e UFSC (Universidade Federal de SC).

Reproduz-se aqui o assassínio ecológico já ocorrido em diversos países, a exemplo da China, Tailândia, Bangladesh, Equador, Malásia, Índia, Honduras, etc., cujas trágicas experiências foram ignoradas pelas autoridades no Brasil. A atenção desses órgãos esteve presa apenas a maior lucratividade. A ecologia foi ignorada. Não houve, conforme determina a Constituição da República (art. 225, §1º, IV), o idôneo Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EPIA – EIA/RIMA), o qual diagnosticaria a suportabilidade da carcinicultura pelo ecossistema, avaliando seus impactos naturais e sociais, prevenindo situações como a mortandade presente.

Os licenciamentos ambientais deferidos pela FATMA não têm qualquer estudo ambiental. São textos padrões, repetidos, alheios a qualquer pesquisa idônea no meio ambiente onde instalado o cultivo. Questões básicas, óbvias, como a hidrologia são ignoradas. Exemplos: a)volume de água disponível, consideradas as variações sazonais do ano, disponível na lagoa onde é extraída ao cultivo sem prejudicar as espécies nativas; b) quanto de água consumido no criatório; qualidade da água restituída pelos cultivos à lagoa, etc. De absoluta falsidade a alegação de que a água devolvida às lagoas é de excelência. Fosse verdadeiro, os criatórios não precisariam renovar a água quotidianamente, bastando recirculá-la pelos diversos tanques.

Grande volume de substâncias poluentes sedimentam-se no fundo dos tanques (rejeitos de ração, comida, defensivos diversos como o cloro, etc), na despesca sendo esgotadas às lagoas, poluindo-as. Toneladas de calcário são empregadas nos tanques, posteriormente desaguando nas lagoas. Sequer tanque de decantação, óbvia medida a preservar os aqüíferos, retendo sedimentos da carcinicultura antes da despesca, existe nos cultivos.

Há comprovado comprometimento de água potável à população pela indiscriminada instalação da carcinicultura. A FATMA licencia sem sequer ouvir a CASAN (Companhia de Saneamento de SC). Ainda em 2002, a CASAN, pelo seu então Diretor-Presidente, Josué Dagoberto Ferreira, já emitira alerta sobre a grave contaminação.

Porque interagem com o mar, a água das lagoas que abastece os cultivos é federal. A FATMA licencia sem outorga da água pela ANA (Agência Nacional de Águas), tampouco da Secretaria de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República.

Expressiva parcela dos tanques dos criatórios localizam-se em área pública, terreno de marinha, cuja fruição deveria ser franqueada a todos (direito de livre acesso à praia: art. 10 da Lei nº 7.661/88). A FATMA também licencia sem outorga de uso pela Secretaria de Patrimônio da União.

Somente nesse Município estão autorizados pela FATMA mais de 1.300 hectares de cultivo (lâmina d’água). A Resolução nº 312 do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente) determina que a partir de 50 hectares necessário o EPIA.

A FATMA licencia individualmente, considerando cada pedido isoladamente, sem considerar o óbvio adensamento (conjunto dos criatórios no mesmo ecossistema), ou seja, que o meio ambiente não se dobra à ficção humana da divisão entre propriedades, empresas distintas de idêntico proprietário, etc.

Agora, o IBAMA acaba de concluir aerofotogrametria, comprovando o aberrante adensamento, instalação da carcinicultura, na quase totalidade, em mangue, área de preservação permanente.

Tendo em vista os desmandos, várias ações foram deduzidas perante a JUSTIÇA FEDERAL.

A ONG Rasga Mar, com apoio desta PROCURADORIA DA REPÚBLICA, obteve decisão determinando EIA/RIMA em todos os cultivos do Município de Laguna. Outras ações semelhantes, relativas aos Municípios de Imaruí e Jaguaruna serão intentadas pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, assim como já foram interditados criatórios, entre outros, a Fazenda Lagamar em Imbituba, além de inúmeros ações penais por crimes ambientais (Lei nº 9.605/98), ora sob inquérito da Polícia Federal.

Natural que essa irresponsabilidade ambiental fosse desastrosa, a exemplo da infestação da mancha branca.

O “Litopenaeus vannamei” é suscetível a mais de 40 espécies de vírus.

Nos licenciamentos ambientais da carcinicultura isso sequer foi lembrado. Tampouco, no correr do cultivo, houve atenção da vigilância sanitária. Tanto é verdade que a mancha branca foi descoberta por um vendedor de ração, técnico da Purina, que observando a mortandade de 90% coletou amostras e enviou à análise.

Foi declarada situação de emergência, interditados 17 cultivos, por um breve lapso embargado o comércio interestadual do camarão de SC.

Todavia, cultivos de outras localidades, fora deste sul do Estado de SC, como Itapoá e Tijucas, também contaminadas, ficaram ao largo da medida.

Todos os dejetos decorrentes (camarões mortos, produtos químicos usados no sacrifício sanitário, etc.) foram despejados nas lagoas.

Comprovadamente, consoante certificou, entre outros, Carlos R. Pantoja, PhD da Universidade do Arizona, EUA, trazido a Laguna(SC) para palestrar sobre a mancha branca, esse vírus atinge as espécies nativas, a exemplo do siri, caranguejo e lagosta, consoante já testemunhados pelos pescadores da região.

Ao contrário do afirmado pela UFSC, Laboratório de Camarões Marinhos, houve, sim, indicativo de contaminação da Fazenda Experimental Yakult, fornecedora das larvas.

Integrantes da UFSC, EPAGRI, etc., os quais também amealham vantagens financeiras com os extraordinários lucros da carcinicultura, assim como foram coniventes na indevida instalação dos cultivos, ignorando fundamentos da preservação ambiental, agora atuam para sonegar a disseminação da doença.

De imediato, sequer providenciadas as “… medidas higiênico-sanitárias adequadas” (art. 2º, V, da Lei nº 7.889/89), foi levantada a interdição dos cultivos, revogado o embargo ao camarão de SC, alardeando-se que a mancha branca é inofensiva ao ser humano, destinatário do crustáceo.

Esse próprio MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, Serviço de Sanidade Animal, certifica o “status” de gente patogênico exótico, de limitada referência bibliográfica.

O fato não ser zoonose, doença transmissível ao ser humano, não significa estar ressalvado prejuízo à saúde das pessoas. Quem deve atestar a violação ou não da saúde humana devem ser médicos e não médicos veterinários, estes últimos experts em saúde animal.

Além do mais, é óbvio direito do cidadão ser informado, cumprindo à vigilância sanitária animal obrigar a devida publicidade, a respeito de todas as incidências nos alimentos a ele ofertados, certificados como idôneos pelo Serviço de Inspeção Federal (arts. 5º, XIV, 23, II, e 37, “caput”, da Constituição da República; Lei nº 1.283/50 c/c Decreto 30.691/52; arts. 4º, II, ‘d’, IV, 6º, I, 8º, 9º e 31 do Código do Consumidor).

Deve-se lembrar que em passado não tão distante, ante a eclosão da doença da vaca louca na Europa, Inglaterra, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL recomendou à Vigilância Sanitária Animal o embargo da importação de sêmen daquela região. O MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, à época, resistiu argumentando que a moléstia era inofensiva ao ser humano, cuja escancarada inverdade posteriormente restou incontroversa.

A prioridade da vigilância sanitária animal, como bem enfatiza a Constituição da República, é a “saúde e assistência pública … ” (art. 23, I) das pessoas e não a saúde financeira dos produtores de camarão, envidando, a qualquer custo, a comercialização.

Mesmo que preservada a saúde humana, o meio ambiente natural, “… bem de uso comum do povo e essencial à quelidade de vida …”(art. 225 da Constituição da República), também antepõe-se ao interesse econômico da carcinicultura, sendo estúpido, aberrante o lançamento de camarão contaminado nos aqüíferos.

Mercê da exploração de recursos públicos sem qualquer contraprestação (águas das lagoas, terreno de marinha, destruição de mangue, etc.), apenas neste Sul do Estado de SC, os carcinicultores faturam cerca de R$ 50 milhões por ano, ainda aquinhoadas pelas autoridades com total leniência pelas agressões ao meio ambiente e saúde pública.

Suspensas todas as medidas corretivas (interdição, embargo da comercialização, etc.), formou-se comissão de representantes deste Ministério e da Secretaria Estadual da Agricultura, visando “… ações de prevenção, controle e combate à doença da mancha Branca ”.

Até agora, com exceção do vazio sanitário, cessação do cultivo por alguns meses (01/06 a 31/08/2005), nada foi objetivamente feito.

Tanto é verdade que a doença alastrou-se, atingindo vários cultivos, vendida de inopino a produção doente ao consumo humano, omissas as autoridades sanitárias, uma vez mais despejado nos aqüíferos toda a infestação, consoante denunciam os pescadores e a Pastoral da Pesca.

Ante o exposto, RECOMENDO (art. 6º, XX, da Lei Complementar nº 75/93) a imediata tomada de medidas por essa SECRETRIA DE DEFESA AGROPECUÁRIA, entre outras, sujeição de todos os cultivos de camarão a novas análises sobre a doença da mancha branca, interdição dos criatórios contaminados, embargo do comércio interestadual (arts. 4º, ‘a’ e 8º da Lei nº 1.283/50), obrigação de embalagem, rotulagem, da produção destinada ao consumidor, informando da infecção(art. 9º, §1º, ‘m’, da Lei nº 1.283/50 c/c arts. 4º, II, ‘d’, IV, 6º, I, 8º, 9º e 31 do Código do Consumidor), isto na hipótese da autoridade sanitária ainda persistir em liberar a comercialização de camarões contaminados.

Desacatada a presente RECOMENDAÇÃO, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL promoverá, perante a JUSTIÇA FEDERAL, a responsabilização das autoridades omissas (Lei nº 8.429/92, Lei nº 9.605/98, etc.).

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