Agências reguladoras não podem usar parâmetros abstratos para julgar

Autor: Caio Cesar Figueiroa (*)

 

Há uma tendência metafísica dos administrativistas em acreditar no controle tal como uma divindade, capaz de beatificar todos os atos administrativos espúrios, canonizar agentes públicos que sempre cumprem com seus deveres eclesiásticos de submissão, e, de vez em quando (por que não?) realizar alguns milagres no escopo do planejamento estatal, tudo em prol da boa e velha máxima Supremacia do Interesse Público.

É uma visão caricata da realidade brasileira, que se firmou em razão de certos dogmas construídos pela doutrina clássica nacional, criando famosos mantras no direito público, reproduzidos veementemente pelo exército de fiéis cooptados pelo promissor discurso do bem-estar social.

Esse modus operandi de legitimação de crenças não é nenhuma novidade. Blaise Pascal, em pleno séc. XVII, inventou a “aposta pascaliana”, ideia que consistia em provar aos pagãos e ateus que apostar na existência de Deus (leia-se, também, na eficácia do controle) seria a medida mais racional. Isso porque a descrença na divindade teria um preço significativamente alto: o sujeito seria condenado a pagar todos seus pecados após a sua morte. Contudo, acreditar na sua existência, e ser um sujeito “regrado” em vida, levaria a outros dois caminhos.

Confirmada a existência divina, o sujeito seria recompensado com a eternidade próspera regada à leite e mel, bem ao contrário do descrente que foi sentenciado a amargurar na eternidade. Por outro lado, a sua inexistência ensejaria a não concretização da perda, um jogo de soma zero, já que com a morte do sujeito, haveria o fim absoluto, sem com que sua alma jamais tomasse consciência da aposta errada.

Em suma, a aposta de Pascal tentava legitimar a racionalidade da aposta na existência de Deus, já que, em termos de probabilidade, o risco contrário seria significativamente pior. Felizmente, o direito não é uma questão de fé, tampouco de aposta. O excesso da crença no controle, com a quase eliminação da discricionariedade dos agentes públicos – aqui, em especial, os agentes reguladores – tem também seus efeitos perversos sobre a sociedade, e por isso mesmo demanda uma postura mais cética do profissional, seja da iniciativa privada ou do Poder Público, sobretudo em cenários de crise, em que se busca incessantemente alterar os arcabouços institucionais para garantir mais segurança jurídica nos projetos de infraestrutura concedidos à iniciativa privada.

Nesse contexto, a relação controlador-regulador enfrenta um grande trade-off. De um lado, aumenta-se a rigidez no desenho dos contratos de parcerias de investimentos, por meio da imposição de modelagens estanque, a pretexto de tutelar o interesse público. De outro, reduz-se as chances de desenvolver projetos inovadores, e que de alguma maneira possam suprir os problemas e lacunas institucionais que ainda pairam sobre a regulação dos contratos de parcerias, fenômeno que repercute diretamente na estagnação dos agentes legalmente responsáveis pela proposição de novas soluções (analysis paralysis).

Daí a pergunta: que tipos de contribuição os órgãos de controle têm angariado para o desenvolvimento e estabilização dos contratos de parceria? A atuação do controle tem sido eficaz? Nesse caso, seguir a lógica da aposta pascaliana não é a melhor saída. Não é nenhum exagero afirmar que o controle também tem o seu custo. Se desmedido, o excesso de rigor e a falta de flexibilidade, inevitavelmente, tornará o controle mais custoso à sociedade. É dizer, quando o controle se excede, haverá uma reação por parte dos controlados, colocando em risco a própria governabilidade, o planejamento estatal e o incentivo às inovações no âmbito da Administração. Deixar de pecar, no presente contexto, é irracional.

No âmbito federal, são diversos os casos em que se percebe uma postura invasiva do Tribunal de Contas da União sobre matérias típicas atribuídas ao agente regulador. Por exemplo, no recente Acórdão 1.971/2017, o TCU determinou cautelarmente que a AGU e o Poder Executivo não prosseguissem com as negociações para a prorrogação dos contratos celebrados com a CEMIG. O feito foi posteriormente sobrestado pelo STF (MS 35192), uma vez reconhecida a intervenção despropositada do TCU “na discricionariedade das partes judiciais quanto ao interesse em conciliar”.

Em sentido contrário, a atuação mais comedida do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo remete a uma percepção oposta ao cenário das externalidades negativas decorrentes de um controle de alta intensidade, como ocorre no âmbito federal com o Tribunal de Contas da União. A esse respeito, chama atenção a disposição de algumas cláusulas contratuais disruptivas desenvolvidas pela Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados de Transportes do Estado de São Paulo (ARTESP).

Recentemente foi publicado o Edital da Concorrência Internacional 1/2017, cujo objeto é a concessão rodoviária do Rodoanel – Trecho Norte. A modelagem do projeto se assemelha em grande medida com que foi praticado nas licitações anteriores da Rodovia dos Calçados e do Centro-Oeste Paulista, concorrências marcadas por um significativo deságio, em pleno contexto de crise. O projeto, contudo, destaca-se na medida em que introduz dois novos elementos para a concessão, a saber: a Conta Reserva de Outorga e a Recomposição Automática do contrato.

A Conta Reserva de Outorga, como o próprio nome indica, consiste em conta bancária que será exclusivamente destinada ao depósito dos valores de Outorga Fixa e Variável, administrada pelo Banco Depositário, cujos custos de prestação de serviços serão arcados integralmente pela nova concessionária. Trata-se de mecanismo com liquidez suficiente para reequilibrar o contrato caso alguns riscos com consequências significativas se materializem ao longo da execução (principalmente no início).

O saldo da conta sofrerá resgates parciais pelo Poder Concedente, nos marcos temporais disciplinados pelo contrato. O primeiro resgate, corresponderá a 28% da Outorga Fixa mínima, acrescida da integralidade do ágio da proposta vencedora, na data de assinatura do Termo de Transferência Inicial do Contrato. Trata-se de disposição favorável, pois cria um incentivo econômico para que o Poder Concedente priorize a conclusão da transição entre a futura concessionária e o DER-SP.

Haverá também o resgate da Outorga Variável, sendo que cada parcela mensal corresponderá ao montante do mês equivalente do ano anterior, acrescidos dos respectivos rendimentos. É dizer, não haverá resgate de Outorga Variável pelo Concedente no primeiro ano da concessão, montante significativo se considerado o percentual mensal de 15% (quinze por cento) sobre a receita bruta da nova concessionária, utilizado como base de cálculo da Outorga Variável.

Para além das hipóteses de resgate organizado pelo Poder Concedente, a Conta de Reserva cumpre com outra relevante finalidade do contrato. É que havendo o atraso superior a 180 (cento e oitenta) dias na assinatura do Termo de Transferência do Sistema Existente, a concessionária poderá reconhecer que uma das condições de eficácia do contrato não foi satisfeita, e o ajuste, portanto, deixa de ser válido, tendo direito ao reembolso limitado ao saldo da Conta Reserva de Outorga.

A segunda inovação, e que tem relação direta com a Conta Reserva, consiste na Recomposição Automática do equilíbrio econômico-financeiro do contrato. O acionamento do gatilho desta recomposição ocorrerá dentro das hipóteses taxativamente fixadas no contrato, as quais podem ser resumidas nas situações que impactem sobremaneira o contrato, ligadas à entrega com desconformidades ou atraso do Rodoanel – obras atualmente sob responsabilidade da DERSA – ou mudança/não implementação da restrição de caminhões nas marginais.

Para estes casos, a Recomposição Automática se valerá de uma ordem de prioridade na escolha dos mecanismos de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro, admitindo (i) a possibilidade de desconto da Outorga Variável, por período de até 12 (doze) anos, a partir da data da Recomposição Automática; (ii) o ressarcimento ou indenização no limite da disponibilidade da Conta Reserva de Outorga; e, em último caso, (iii) a aplicação dos mecanismos tradicionais (prorrogação e redução de prazo, revisão tarifária, indenização, alteração dos encargos contratuais, etc.).

Dessa forma, pela primeira vez o Poder Concedente se valerá da Outorga do projeto como um mecanismo de garantia ao longo da vigência contratual, de modo a assegurar que a futura concessionária também possa ser reequilibrada pelo aporte direto do montante que compõe a Outorga, concentradas em uma conta própria para essa finalidade. Em complemento, as hipóteses de Recomposição Automática representam outra importante inovação, de modo a reduzir os custos de transação decorrentes dos processos de negociação de reequilíbrio, sendo por essa razão mais atrativo aos possíveis investidores.

Por falta de espaço e também por fugir do escopo deste breve texto, não foi possível entrar em outros importantes detalhes e inovações construídas neste novo projeto da Artesp, o qual recomenda-se sua leitura. De todo modo, uma coisa é certa, a breve exposição dos institutos da Conta de Reserva assim como da Recomposição Automática, em outros contextos – ou sob a onipresença de outras esferas de controle – por certo suscitariam ataques e sermões quanto ao suposto conflito dos institutos com a Indisponibilidade do Interesse Público dentre outros jargões similares.

Decidir, todavia, por parâmetros abstratos, apenas julgando o valor como um fim em si mesmo é ignorar a realidade, caminho perigoso e que sempre poderá abrir margem para um cenário caótico, de alta instabilidade e insegurança e de grande probabilidade de insucesso, pois – como bem pontuou Eduardo Jordão – “assim como os controladores podem corrigir erros, eles também podem desfazer acertos”. Por fim, a relação institucional entre controlador e regulador não pode ser pautada em uma aposta pela divindade e onisciência do controlador em detrimento do “livre arbítrio” do controlado, aqui representados pela discricionariedade técnica, autonomia e independência, que foram consagrados às Agências Reguladoras.

 

 

 

Autor: Caio Cesar Figueiroa é pós-graduado em Direito Administrativo pela FGV Direito SP (GV Law).

 


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