Luiz Otavio de O Amaral [2]
Queremos aqui analisar rapidamente a atuação das agências regulatórias em nosso ambiente, sobretudo à luz do Direito do consumidor e da moralidade administrativa, tudo a partir do caso-lider da “tarifa telefônica” que é bem emblemático.
Em Direito e na melhor técnica jurídica temos dois verbos distintos que teimam em provocar confusões e impropriedades técnicas: regular e regulamentar.
Regular (do Latim regulare, relativo às regras, norma) é estabelecer o regime legal de uma situação jurídica, é legislar. Regular é normatizar, regrar por meio de lei. E lei é regra de ordem geral emanada do Poder Legislativo, na forma indicada pela Constituição. O Decreto nº 3.191 de 7/1/1899, que reorganizou o Ministério da Justiça, definiu lei como sendo “resoluções do Congresso Nacional que contiverem normas gerais e dispositivo de natureza orgânica ou que tenham por fim criar direito novo”. Em sentido amplo e atécnico lei pode significar direito, justiça, contrato, direito escrito, direito consuetudinário, direito legislado, cláusula contratual, direito objetivo, direito positivo…
Como se vê o povo não distingue justiça, direito, lei, decreto, regulamento… Mas em Direito não se confunde a lei, a regulação com o regulamento, com a regulamentação. Cabe ao poder executivo a expedição de normas para a boa aplicação das leis ou fiel execução das leis. O legislador não pode prever as minúcias que se apresentarão nos casos concretos em que a lei será invocada, as circunstâncias de fato que serão enquadradas dentro da lei, cabendo ao governo como administrador em sentido amplo, a tarefa de facilitar a solução das situações imprevisíveis da vida prática. Essa a função do regulamento que entre nós é baixado, veiculado por meio de decreto. Nem toda lei precisa de regulamentação, podendo ser executada desde logo, o que todavia não impede o executivo de usar da sua faculdade-dever de regulamentá-la. Mas, por outro lado, se o legislador determinou ao poder executivo que faça a regulamentação, a lei só será exeqüível depois de publicado o regulamento. Esse tem de obedecer estritamente aos dizeres da lei, não podendo ampliar o seu alcance. Assim é que não se admite possa um regulamento estabelecer penas, criar cargos públicos, majorar tributos, aumentar vencimentos, perdoar dívidas ativas, conceder isenções tributárias, autorizar alienações de bens públicos, alterar o estado das pessoas, restringir direitos e liberdades, criar enfim obrigações que não constam da lei.
Assim, é de boa técnica que se diga que a lei regula e decreto regulamenta. O regular é ato autônomo de quem tem competência constitucional para legislar: o Congresso Nacional; só ele assim pode restringir a liberdade, os direitos do indivíduo, porque delegamos isso a ele. O regulamento, ao contrário, é ato derivado da lei e que só tem força normativa (impositiva) se e quando circunscrito à lei respectiva. O Poder Executivo (o governo, a Administração) pode baixar regulamento autônomo, sem lei respectiva, mas apenas para fins internos, para a organização de seus serviços públicos, isso é ato inerente a sua função governativa; tudo segundo a tábua de atribuições legais de cada poder e de cada autoridade previstas no Ordenamento Jurídico (Constituição, leis…). A rigor, o regulamento, o decreto, só interfere na situação jurídica dos próprios serviços e servidores públicos. È findo o tempo em que qualquer decreto, portaria e circulares, usurpavam as funções do Congresso Nacional.
As agências ditas reguladoras, são, de fato e na melhor técnica, apenas regulamentadoras. Com efeito, elas não criam direito, não impõem obrigações, não interferem na situação jurídica de terceiros (que não sejam seus servidores) salvo quando na estrita derivação da lei regente. É claro, que há uma margem de bom senso em que as agências devem e precisam atuar no vácuo legislativo. Contudo essa prerrogativa excepcional, discricionária, com muito mais e exigente razão há de estar lastreada no interesse público, na melhor moralidade administrativa. È preciso, ao tratar-se do tema agências governamentais, ter-se bem presente que a força e o poder (certa autonomia, jamais soberania) que elas detêm pressupõe uma sólida e bem incorporada cultura do interesse público, em que não haja possibilidades de hesitação e conflitos em torno do que consulta ao bem comum e ao interesse privados de poucos (ainda que do próprio governo ou de poderosa empresas). Num ambiente em que tal cultura esteja ausente a autonomia das agências será tão danosa quanto a entrega da gerência do banco de sangue ao vampiro.
No Brasil já temos essa cultura sólida? Aqui é raro vermos autoridades públicas flagradas na odiosa inversão do bem público pelo bem particular. A condução do interesse privado nos bastidores e corredores estatais por autoridades estatais não é fato corriqueiro entre nós? E quando aparecem são imediatamente tolhidos e punidos. Por outro lado, nossos legisladores não padecem da preguiça mental que impede uma boa e aprofundada análise das matérias legislativas. As leis que em vinte e quatro hora de vigência já se mostram absurdas e inviáveis, ou pior favorecentes de interesses não-públicos, são exceções no Brasil. A “indústria de leis prefabricadas” nos escritórios dos interessados, não viceja por aqui. Nem temos fortes veículos de imprensa que também dissimulam razões jurídicas e políticas para aviar interesses outros que não o público, ou será que esse interesse não coincide com o do país.
O Brasil é campeão em inverter e subverter boas idéias e bons projetos. Ora, tivemos escola superior antes de escola primária; tivemos Banco do Brasil antes de termos economia; tivemos escola de belas artes antes de termos artes ou belas… E transplantamos uma arvore frondosa e secular (as tradicionais agências americanas) dos EUA para nosso solo, sem qualquer preparação, abrupta e estouvadamente; sequer percebermos as diferenças de solo e ambiente em geral, ou seja, de pressupostos lógicos da boa recepção de modelos.
Um grande jornal de um grande Estado, um “estadão”, há dias em editorial pouco afinado com a melhor orientação ético-jurídico de nosso país veio profligar as razões de quem se pôs contra o aumento astronômico, para a situação atual do povo brasileiro, das tarifas telefônicas, aprovadas in pectoris pela agência regulatória ANATEL. Ora, até o Ministro coordenador político da área ficou ao lado do interesse econômico, não das empresas, mas sim do povo, da população consumidora de serviço público tão essencial. Fato esse raro, senão inédito na história recente do país. E o que traz o editorial do “jornalão”? Traz somente indisfarçável dissimulação e deturpação de conceitos jurídicos. Assim, ali fala-se em “atos jurídicos perfeitos, baseados em leis legítimas e cumpridos por um órgão federal plenamente habilitado para tal, são alvo da fúria de um ministro de Estado cujo preparo para o cargo varia na razão inversa de suas ambições eleitorais e postos em xeque por alguns juizes cuja prontidão para conceder liminares indiscriminadas parece também inversamente proporcional à sua familiaridade com a matéria em questão.” Nem tão jurídico, nem tão prefeito o ato da Anatel, aliás enquanto ato administrativo é antes injurídico e imperfeito já por diversos ângulos. Primeiro porque cabe ao Estado a defesa do consumidor entre nós, na forma da lei e essa é o CDC cujas normas têm caráter de ordem pública e interesse social, inderrogáveis por ato de agências, por decretos… Ademais, é princípio (princípios são normas das normas) constitucional norteador da ordem econômica no Brasil, a defesa do consumidor. Com efeito, o interesse empresarial há de estar harmonizado com tal imperativo. Há ainda outro imperante princípio, aqui e alhures, que é o da modicidade no preço público de todos os serviços públicos.
Por que as concessionárias são induzidas a um comportamento contrário à concorrência que deveria (e deve) haver entre as operadoras? E a Lei de Defesa da Concorrência? É mais outra injuridicidade do ato, desorientado sistemicamente, da Anatel. O poder concedente deve resolver com as concessionárias as trapalhadas contratuais que há entre eles mesmos e não trazer os consumidores para o sacrifício econômico, ele que sequer pode influir nesse relacionamento contratual. São dois relacionamentos jurídicos diversos. Há a relação jurídica de consumo entre os consumidores e a concessionária e há a relação jurídico-contratual de Direito Administrativo entre Poder concedente e a concessionária.
Normas internacionais (Resolução nº39/248/1985/ONU, item “F”) também orientam a questão, assim os governos devem garantir oportunidade para as organizações de consumidores participarem/apresentarem seus enfoques no processo decisório a elas referentes. Ao que se sabe Anatel jamais contou com a participação de entidades de consumidores. Tendo em vista quiçá a maior defasagem salarial da história do país, qualquer aumento de tarifas devem trazer a preocupação da justiça social, devem ser mais módicas que noutros contextos. Qualquer aumento tarifário muito acima do razoável diante da situação do população consumidora não consulta aos interesse público, senão apenas ao privado/particular das empresas concessionárias – que ao se instalarem aqui deviam saber de nossos imperativos jurídicos e de nossa fragilidade econômico-social. Um aumento do porte do que foi aprovado pela agência regulatória, rasca todas essas normas jurídicas, sobretudo descumpre a norma constitucional da moralidade administrativa. Uma agência, ente estatal, Administração pública por excelência, tem por função essencial garantir ao máximo possível o interesse público na sua função regulatória. È o interesse da população consumidora o norte dessas agências que no país de onde foram importadas são consideradas a linha de frente da proteção do consumidor. As agências, assim, são um anteparo às sempre fortes e bem urdidas estratégias de lucros crescentes do capitalismo que anima as empresas e seus acionistas, capitalismo esse tanto mais selvagem quanto mais omissa naquele propósito forem as agências.
Como se vê não há insegurança jurídica, nem nossos juizes merecem a crítica plantada pelo Jornal. Pode-se ainda arrematar que os contratos de concessão como quaisquer outros contratos são instrumentos jurídicos a serviço de sua própria função social assim como as empresas aqui estabelecidas. E os juizes por serem a viva vox iuris, os intermediários entre a vida e norma, já não são mais simples servidores inertes – nunca o foram – da vontade das partes contratuais, mas sim servidores do interesse geral da sociedade. A lei das concessões, por certo, não autoriza aumentos abusivos, contrários aos interesses sociais ainda que eventualmente defensáveis do ponto de vista empresarial das concessionarias.
As agências, suas leis e a autonomia (quase soberania) autodefendidas carecem de revisão e maior grau de acuidade macro-jurídica dos legisladores, um projeto de lei analisado de modo solto, isoladamente do sistema jurídico, pode parecer menos danoso ao interesse que deve predominar, do que se analisada inserida num contexto de harmonia sistêmica (e microsistêmica, o CDC, p. ex.) que vai para além da Carta Magna. Isso exige até mesmo uma boa formação dos assessores jurídicos que são os que podem prevenir tais desvios. O Direito e tudo que há nele são meios de promoção do bem comum, jamais de exploração de quem quer que seja até do governo.
Autor: Luiz Otavio de O Amaral
Advogado militante e professor da Fac. Direito /UCB
(Primeiro Executivo federal do Direito do Consumidor,Inclusive quando da elaboração do CDC e representante brasileiro nas rodadas de discussão nas Nações Unidas. Autor de livros/monografias na área do Direito do Consumidor, publicados no Brasil e no exterior.)