Agravo de instrumento é o recurso cabível na primeira fase da ação de exigir contas

Autores: Gabriel Nascimento Rodrigues de Freitas e Rodrigo Ustárroz Cantali (*)

 

A apelação era o recurso cabível diante da sentença que encerrava a primeira fase da ação de prestação de contas, disciplinada nos artigos 914 a 919 do CPC/1973.

Com o advento da denominada ação de exigir contas, disciplinada nos artigos 550 a 553 do CPC/2015, não há consenso na jurisprudência concernente ao recurso cabível diante da decisão judicial que põe fim à sua primeira fase, o que tem causado insegurança e dores de cabeça aos advogados de contencioso.

A discussão está centrada em definir se o recurso cabível permanece a apelação, como na vigência do código revogado, que tratava da ação de prestação de contas, ou se passou a ser o agravo de instrumento, por força da redação dos novos dispositivos a respeito da ação de exigir contas.

Em outras palavras: a decisão que estabelece a existência ou não do dever de prestar contas é interlocutória de mérito ou é sentença?

Encontramos divergência na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a respeito do recurso cabível, se agravo ou apelação, na vigência do CPC/2015, inclusive com referência a “erro grosseiro” em uma e outra hipótese. Nesse sentido, fazemos referência às ementas abaixo, em recentes acórdãos das 17ª e 20ª câmaras cíveis do TJ-RS:

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. PRIMEIRA FASE. RECONHECIMENTO DO DEVER DE PRESTAR CONTAS. DECISÃO PARCIAL DE MÉRITO. RECURSO CABÍVEL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ERRO GROSSEIRO QUE DESAUTORIZA A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. De acordo com às disposições do NCPC, o decisum que julga procedente o pedido para condenar o réu a prestar contas (primeira fase) tem natureza de decisão interlocutória de mérito, e, portanto, agravável, à luz do art. 1.015, inciso II, do CPC. Exegese dos art. 550, §5º, e 552, ambos do NCPC. Inaplicabilidade do princípio da fungibilidade por se tratar de erro grosseiro. APELAÇÃO NÃO CONHECIDA (Apelação Cível 70070010988, 17ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator: Marta Borges Ortiz, julgado em 24/11/2016).

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AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. Julgamento da primeira fase da ação de prestação de contas. Recurso cabível apelação. Interposição de agravo de instrumento. Erro grosseiro. AGRAVO DE INSTRUMENTO NÃO CONHECIDO. UNÂNIME.

(Agravo de Instrumento 70069592673, 20ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator: Glênio José Wasserstein Hekman, julgado em 26/10/2016).

Como se nota facilmente, a discussão é tão relevante que se chegou ao ponto de um órgão fracionário chamar a interpretação de outro órgão fracionário, dentro do mesmo tribunal, de “erro grosseiro”, o que evidentemente não traz benefícios a ninguém: nem aos procuradores, nem aos jurisdicionados e, muito menos, ao Poder Judiciário.

E a divergência não está limitada ao Rio Grande do Sul, mas foi verificada, também, em pesquisas de jurisprudência recente de outros tribunais. No Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, foi constatada a mesma divergência quanto ao recurso cabível, em acórdãos das 14ª e 20ª câmaras de Direito Privado do TJ-SP:

Agravo interno – Agravo de instrumento não conhecido por decisão monocrática do Relator, pois interposto contra sentença que julgou procedente a primeira fase da ação de prestação de contas – Sentença que põe fim à primeira fase da ação – Recurso cabível é apelação – Ausência de justificativa a autorizar a aplicação do princípio da fungibilidade recursal – Agravo interno desprovido (Agravo Regimental 2232338-53.2016.8.26.0000/50000, relator(a): Maurício Pessoa; Comarca: São José do Rio Preto; Órgão julgador: 14ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 16/12/2016; Data de registro: 16/12/2016).

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RECURSO – Rejeitada a preliminar de não conhecimento do agravo de instrumento por inadequação da via recursal adotada – Como o ato judicial, que julga procedente a primeira fase da ação prestação de contas, apresenta a natureza jurídica de decisão interlocutória de mérito, uma que não põe fim ao processo, nem a uma de suas fases, e, consequentemente, o recurso cabível para sua reforma é o agravo de instrumento, a teor dos arts. 203, §§ 1º e 2º, 550, § 5º, e 1.015, II, do CPC/2015 (…) (Agravo de Instrumento 2155799-46.2016.8.26.0000, relator(a): Rebello Pinho; Comarca: Ipauçu; Órgão julgador: 20ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 28/11/2016; Data de registro: 29/11/2016).

No Rio de Janeiro, parece haver um indício de consenso no Tribunal de Justiça pelo reconhecimento do agravo de instrumento como o recurso cabível, a exemplo das ementas da 24ª e 25ª câmaras (Cível e Consumidor) do TJ-RJ:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RELAÇÃO DE CONSUMO. AÇÃO DE EXIGIR CONTAS. CONTRATO DE CARTÃO DE CRÉDITO. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE INFORMAÇÃO AO CONSUMIDOR QUANTO AOS JUROS E ENCARGOS APLICADOS PELO ATRASO NO PAGAMENTO DAS FATURAS. IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE ENCERRAMENTO DA PRIMEIRA FASE DO PROCESSO, QUE DETERMINOU A PRESTAÇÃO DE CONTAS. O §5º DO ARTIGO 550 DO CPC/2015 CLASSIFICA COMO DECISÃO O ATO PROCESSUAL RECORRIDO. A INSATISFAÇÃO COM O JULGADO ENSEJA A INTERPOSIÇÃO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO, E NÃO DE APELAÇÃO (…) (0058139- 81.2016.8.19.0000 – AGRAVO DE INSTRUMENTO – Des (a). LUIZ ROLDAO DE FREITAS GOMES FILHO – Julgamento: 14/12/2016 – VIGÉSIMA QUARTA CÂMARA CÍVEL CONSUMIDOR).

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AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. AUTORA QUE OBJETIVA A PRESTAÇÃO DE CONTAS QUANTO A ENCARGOS DE MORA LANÇADOS EM FATURAS DE CARTÃO DE CRÉDITO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. AGRAVO DE INSTRUMENTO DO RÉU ALEGANDO FALTA DE INTERESSE DE AGIR COM A CONSEQUENTE NECESSIDADE DE EXTINÇÃO DO FEITO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO. 1. O Novo Código de Processo Civil, em seu artigo 550, §5º, dispõe que a procedência do pedido na primeira fase deste procedimento especial será determinada por decisão, não mais fazendo menção ao termo sentença, como ocorria no artigo 915 do CPC/73, tendo a doutrina atual concluído tratar-se de provimento atacável por meio de agravo de instrumento, em atenção a hipótese trazida no art. 1.015, II do CPC/15. Aplicação do Enunciado nº 177 do FPPC: “(arts. 550, § 5º e 1.015, inc. II) A decisão interlocutória que julga procedente o pedido para condenar o réu a prestar contas, por ser de mérito, é recorrível por agravo de instrumento”. (…) (Processo n 0035819-37.2016.8.19.0000, Des(a). MARIANNA FUX – Julgamento: 25/01/2017 – VIGÉSIMA QUINTA CÂMARA CÍVEL CONSUMIDOR)

Por sua vez, a 14ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná já reconheceu a possibilidade de fungibilidade recursal por inexistência de erro grosseiro:

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS 1ª FASE – SENTENÇA QUE JULGA PROCEDENTE O PEDIDO E CONDENA O BANCO A APRESENTAR AS CONTAS E DOCUMENTOS SOLICITADOS – RECURSO DO BANCO REQUERIDO. FUNGIBILIDADE RECURSAL – SENTENÇA QUE NÃO EXTINGUE O PROCESSO, MAS APENAS A PRIMEIRA FASE DO PROCEDIMENTO – AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL DA ESPÉCIE RECURSAL CABÍVEL – NATUREZA DE DECISÃO INTERLOCUTÓRIA – TODAVIA, A JURISPRUDÊNCIA DESTE TJPR CONTINUA RECEBENDO A APELAÇÃO COMO RECURSO CABÍVEL NESTAS HIPÓTESES – INEXISTÊNCIA DE ERRO GROSSEIRO OU PREJUÍZO À DEFESA DAS PARTES – RECURSOS DE APELAÇÃO E DE AGRAVO DE INSTRUMENTO QUE NA ATUAL SISTEMÁTICA PROCESSUAL POSSUEM O MESMO PRAZO DE INTERPOSIÇÃO – PRINCÍPIOS DA INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS, DA EFETIVIDADE E DA ECONOMIA PROCESSUAL – APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE – RECEBIMENTO DA APELAÇÃO. (…) (TJPR – 14ª C.Cível – AC – 1577991-6 –  Rel.: Fernando Antonio Prazeres – Unânime – J. 05.10.2016).

Na doutrina, o assunto também não está pacificado.

Enquanto doutrinadores como Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery afirmam que “contra sentença proferida em qualquer fase da ação de prestação de contas cabe apelação”, o Fórum Permanente de Processualistas Civis, por meio do Enunciado 177, dispôs que:

“177. (arts. 550, § 5º e 1.015, inc. II) A decisão interlocutória que julga procedente o pedido para condenar o réu a prestar contas, por ser de mérito, é recorrível por agravo de instrumento (Grupo: Procedimentos Especiais)”.

Cássio Scarpinella Bueno, na mesma linha, questiona e afirma: “A decisão a que se refere o precitado §5º do art. 550 é irrecorrível? A melhor resposta é a positiva, entendendo-a como decisão interlocutória de mérito e, portanto, agravável de instrumento com fundamento no inciso II do art. 1.015”.

Os processualistas Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero, em análise acurada da matéria, afirmam, dentre outros apontamentos, que o CPC/73 “veemente e expressamente denominava esse ato como ‘sentença’ — que o ato judicial que encerrava a primeira fase do procedimento da prestação de contas devesse ser assim tratado. Destoava, porém, essa ideia do contexto geral do Código, já que por essa “sentença” não se encerrava a fase de conhecimento do processo. Concluía-se apenas uma das etapas em que se desdobrava, neste procedimento, o conhecimento do mérito. Daí o motivo de desconforto criado por essa figura estranha”.

Prosseguem os precitados autores, com relação ao novo CPC:

“O Código de 2015, porém, optou por seguir outro caminho. Expressamente afirma que o ato do juiz que julga a primeira etapa do processo da ação de exigir contas é uma decisão, ou seja, uma decisão interlocutória (art. 550, §5º, do CPC). Parece que a opção legislativa do Código de 2015 é melhor. Em primeiro lugar, esta conclusão harmoniza-se melhor com a ideia de que o Código faz de sentença (vinculando-a ao encerramento de uma das fases, ou de conhecimento ou de satisfação, do processo). Em segundo lugar, caracterizar esse ato como decisão interlocutória faz com que o recurso designado para atacá-lo seja o agravo, que, por subir em instrumento próprio, e por não ser dotado de efeito suspensivo, não impede, por si só, o prosseguimento do processo para a segunda fase. Finalmente o efeito suspensivo ope iudicis do agravo permite dosar com maior prudência a necessidade de paralisar ou não a apresentação das contas enquanto se discute sobre o dever de prestá-las”.

A conclusão dos ora signatários está alinhada ao posicionamento acima descrito e que foi resumida no Enunciado 177 do Fórum Permanente de Processualistas Civis. Aliás, entendimento esse que já foi apontado por um dos ora signatários quando da contribuição para publicação da OAB-RS, em que afirmou:

“O procedimento da prestação de contas é realizado em três fases: na primeira, declara-se a existência ou não do dever de prestá-las, sendo que da decisão cabe agravo de instrumento (art. 1.015, II, CPC/15); na segunda, apura-se eventual saldo a favor de uma das partes, decisão que constituirá sentença condenatória, da qual cabe recurso de apelação (art. 1.009, CPC/15); na terceira, executa-se o saldo, mediante cumprimento de sentença (art. 523, CPC/15)”.

De fato, ao contrário do artigo 915, §2º, do CPC/73, que dispunha que “(…) a sentença, que julgar procedente a ação, condenará o réu a prestar as contas no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, sob pena de não Ihe ser lícito impugnar as que o autor apresentar”, dando a entender que o recurso cabível, à época de sua vigência, era a apelação, a interpretação atual de cabimento do agravo de instrumento é coerente com o fato de o artigo 550, parágrafo 5º, do CPC/2015, dispor que a “decisão que julgar procedente o pedido condenará o réu a prestar as contas no prazo de 15 (quinze) dias, sob pena de não lhe ser lícito impugnar as que o autor apresentar”.

Reforça essa tese a comparação entre o artigo 550, parágrafo 5º, do CPC/15, acima transcrito, e o artigo 552 do CPC/15, que estabelece que “a sentença apurará o saldo e constituirá título executivo judicial”. Constata-se que o legislador optou por distinguir a natureza dos provimentos jurisdicionais de primeira fase (decisão interlocutória) e de segunda fase (sentença).

Espera-se que, em breve, esteja pacificada, na jurisprudência pátria, a interpretação de que o agravo de instrumento é o recurso cabível diante da decisão que encerra a primeira fase da ação de exigir contas, a fim de se promover a segurança jurídica e de se evitar situações em que câmaras e turmas de um mesmo tribunal reportem-se às interpretações umas das outras como “erro grosseiro”, o que, como já mencionado, não traz benefícios a quem quer que seja.

 

 

 

 

 

Autores: Gabriel Nascimento Rodrigues de Freitas é sócio de Souto, Corrêa, Cesa, Lummertz & Amaral Advogados, master of Laws (LL.M.) pela Universidade de Georgetown e especialista em Processo Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

 Rodrigo Ustárroz Cantali é sócio de Souto, Corrêa, Cesa, Lummertz & Amaral Advogados e mestrando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


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