Autor: Paulo Álvares Babilônia (*)
O Advogado-Geral da União, Luis Inácio Adans, colocou, corajosamente, em debate, um dos temas mais importantes e sensíveis relativos à Advocacia-Geral da União, qual seja, a unificação das inúmeras carreiras que compõem a AGU (Advogado da União, Procurador da Fazenda Nacional, Procurador Federal e Procurador do Banco Central do Brasil) em uma só carreira, que seria denominada, em princípio, de Procurador da União ou Procurador Federal.
É mesmo de causar espécie – mormente ao público leigo -, essa gama de carreiras e nomenclaturas, que, ao final e ao cabo, estão a serviço do mesmo cliente, a União Federal; fato que se explica, tão-somente, após uma verdadeira aula de história da AGU, onde se corre o risco de se conseguir, tão-somente, deixar as coisas ainda mais complicadas e sem sentido, aos olhos do cidadão.
Assim, é bom que remontemos, rapidamente, à época da criação da AGU, no âmbito da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988, para que verifiquemos o que lá se passou e que deu ensejo ao texto, ora vigente, que rege a Advocacia Pública Federal, erigida a uma das funções essenciais à Justiça, ao lado do Ministério Público e da Defensoria Pública.
Pode-se dizer, em breve resumo, que uma das principais razões que levaram o constituinte originário a criar a AGU foi o interesse de se criar uma instituição à altura das necessidades do Estado brasileiro, que – com a retomada do regime democrático, e com o fortalecimento do Ministério Público e do Poder Judiciário -, não podia mais deixar a defesa da União como sendo apenas uma segunda (e menos importante) função do Ministério Público da União, num cenário em que as causas contra a União, administração direta e indireta, se tornavam cada vez mais numerosas e complexas.
Por outro lado, no plano consultivo e contencioso, era enorme o interesse de Saulo Ramos em centralizar todos os serviços jurídicos em um único órgão, como forma, inclusive, de facilitar e tornar natural a comunicação entre os órgãos consultivos entre si e entre estes e a área do contencioso judicial, uma vez que, no dia a dia, estes precisam, mesmo, se comunicarem e interagirem. Nesse sentido, a ideia de concentração é ínsita à própria concepção da AGU; já que o que se queria combater era a fragmentação, as dissonâncias e ineficiências dos serviços jurídicos federais.
Vale observar que, por pouco, não se conseguiu, no âmbito da própria Assembleia Nacional Constituinte, um texto final referente à AGU, que não somente assegurava a isonomia institucional com o Ministério Público, como também, traçava um modelo de uma instituição mais una. Por meio de tal proposta, se previa, expressamente, uma única carreira (Procurador da União) para representar a União Federal, administração direta e indireta, conforme constava do “Projeto de Constituição”, da Comissão de Sistematização, remetido à fase de Plenário Final, após longo trâmite por todas as fases do processo legislativo constituinte. Veja-se:
“CAPÍTULO V
[…]
SUBSEÇÃO II
DAS PROCURADORIAS-GERAIS DA UNIÃO, DOS ESTADOS E DO DISTRITO FEDERAL
Art. 153. A Procuradoria-Geral da União é o órgão que a representa, judicial e extrajudicialmente, e exerce as funções de Consultoria Jurídica do Poder Executivo e da Administração em geral.
§ 1º A Procuradoria-Geral da União tem por chefe o Procurador-Geral da União, de livre nomeação pelo Presidente da República, dentre cidadãos maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada.
§ 2º – Os Procuradores da União ingressarão nos cargos iniciais da carreira mediante concurso público de provas e títulos, sendo-lhes assegurado o mesmo regime jurídico do Ministério Público, quando em dedicação exclusiva.
§ 3º – Lei Complementar, de iniciativa do Presidente da República, estabelecerá e organizará a Procuradoria-Geral da União.
§ 4º – Nas Comarcas do interior, a defesa da União poderá ser confiada aos Procuradores dos Estados ou dos Municípios ou a advogados devidamente credenciados.
Art. 154 – A representação judicial e a consultoria jurídica dos Estados e do Distrito Federal competem a seus procuradores, organizados em carreira, observado o § 2º do artigo anterior.”
No entanto, sabe-se que, diante de fortes resistências advindas de alguns setores da Administração, mormente da PGFN, que, à época, através de seus lideres – principalmente de Cid Heráclito de Queirós (Procurador-Geral da Fazenda Nacional), se opôs à ideia de a PGFN ser “absorvida” pela AGU, e do Ministério Público Federal, que também tinha o interesse de se manter como representante judicial da União – o texto, finalmente aprovado, sofreu acentuada modificação, como se sabe.
Não se pretende, vale ressaltar, apontar esse ou aquele responsável, uma vez que tudo representou um processo histórico, onde não há culpados – já que cada um estava a defender, democraticamente, o seu ponto de vista -, mas, esclarecer uma situação para, talvez, inspirar novos rumos.
Mas, se por um lado, o texto final aprovado não representou, de pronto, um desenho institucional mais firme e consagrado, por outro, primou pela abertura – como aliás, deve primar um bom texto constitucional – não fechando as possibilidades de o legislador infraconstitucional preencher as lacunas que deixou propositadamente, diante de um tema que culminou por suscitar grandes conflitos.
Assim, se o texto final aprovado prevê a existência institucional da PGFN, atribuindo-lhe a cobrança da dívida ativa da União, bem como a possibilidade de existência de órgãos vinculados, por outro, não adentrou nos aspectos miúdos, como o relativo às carreiras da AGU, deixando ao legislador infraconstitucional a tarefa de disciplinar a respeito do assunto.
E se no art. 131 não se indicou, especificamente, os órgãos que comporiam a nova instituição, o art. 29 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, deixou bem claro que dentre tais órgãos encontravam-se a “Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, as Consultorias Jurídicas dos Ministérios, as Procuradorias e Departamentos Jurídicos de Autarquias Federais”. Pela leitura detida do referido dispositivo constitucional, deduz-se que o legislador infraconstitucional, teria, ainda, a liberdade para estabelecer nova forma de funcionamento dos serviços exercidos por tais órgãos.
Resta, pois, evidente, que a matéria relativa à unificação de carreiras é, inequivocamente, de índole legal, por se tratar de matéria relativa à criação ou extinção de cargos, ou sobre seu regime jurídico, como reconhece a firme jurisprudência do eg. Supremo Tribunal Federal – STF, que, abaixo, se transcreve, ad exemplum:
“É da iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo, lei de criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração, bem como que disponha sobre regime jurídico e provimento de cargos dos servidores públicos. Afronta, na espécie, ao disposto no art. 61, § 1º, II, a e c, da Constituição de 1988, o qual se aplica aos Estados-membros, em razão do princípio da simetria.” (ADI 2.192, rel. min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 4-6-2008, Plenário, DJE de 20-6-2008.)”.
Some-se a isso, o fato de que o eg. STF, em inúmeros julgados, já ter reconhecida a constitucionalidade de unificação, no âmbito dos Estados, das carreiras de Procurador do Estado e de Procurador de Autarquias; e, no âmbito da União, foi julgada constitucional a conhecida fusão das carreiras de Assistente Jurídico da AGU e de Advogado da União, levada a efeito pelo art. 11 da Medida Provisória nº 43, de 25 de junho de 2002, convertida na Lei nº 10.549, de 13 de novembro de 2002 (ADI nº 2.713-1/2002; Rel.: Min. Hélen Gracie).
Estamos, pois, em um momento crucial para a Advocacia-Geral da União. Lembremos que o primeiro grande momento da AGU foi, sem dúvida, o de sua criação pela CF/88. O segundo momento, se nos apresenta como sendo a aprovação da LC 73/93, onde, apesar de ter havido tentativas de maior avanço institucional sobre o tema, não foi possível, também em razão de grandes divergências, conforme observa Maria Lúcia Américo dos Reis[1], suprir, a contento, várias lacunas constitucionais, fazendo resultar uma lei complementar bem aquém das expectativas.
Conforme anota a Dra. Maria Jovita W. Valente, em que pese vitórias conquistadas, a AGU continua em construção; e que o “o ideal a ser atingido – e todas as ações realizadas caminharam nessa direção – é o de ter a AGU carreira única (…), racionalmente organizada, de modo que a estrutura do órgão central esteja refletida em todas as unidades da instituição, em busca da excelência dos trabalhos que realiza”[2].
Destarte, nesta terceira chance, por assim dizer, que nos é, democraticamente oferecida pela própria instituição, devemos estar imbuídos dos melhores sentimentos – de uma visão mais ampla e institucional -, não deixando que argumentos voltados à manutenção do status quo possam ilegitimamente prevalecerem, em detrimento do interesse público e institucional.
Que tenhamos um bom debate!
[1] REIS, Maria Lúcia Américo dos. Quem defende a União? Reforma Constitucional ao alcance de todos. Ed. Forense, 1995, p. 25.
[2] VALENTE, Maria Jovita Wolney. In: GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de (Coord.). Advocacia de Estado: questões institucionais para a construção de um Estado de Justiça: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto e José Antônio Dias Toffoli. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 363-394.
Autor: Paulo Álvares Babilônia é advogado da União, mestrando em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa, e presidente da Comissão da Advocacia Pública Federal da OAB-DF.