Além do “intento arrecadatório”, Brasil negligencia dever de instruir no trânsito

Autor: Luiz Fernando Prudente do Amaral (*)

 

O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) sofreu alterações que passaram a vigorar recentemente. A Lei 13.281/2016, sancionada em maio deste ano pela presidente cassada Dilma Rousseff, modificou alguns dos dispositivos legais previstos no referido diploma. O que mais chamou a atenção da imprensa e dos cidadãos foi a significativa elevação nos valores das multas de trânsito.

De acordo com as manchetes publicadas pelos mais distintos meios de comunicação, o aumento ficou entre 50% e 244%. Se considerarmos a situação econômica vivida pelo país, mesmo a partir da inegável consequência sobre os índices inflacionários, a elevação assusta. Segundo o posicionamento de autoridades consultadas, a medida se justificaria em razão de ter havido uma espécie de “congelamento” dos valores por diversos anos.

Apesar dessa explicação, causam estranheza os percentuais aplicados. Não se pode simplesmente aceitar o argumento da estagnação dos valores. Afinal, a justificativa deve ser interpretada segundo o contexto vivido pelas mais diversas pessoas políticas (União, estados, DF e municípios) que integram a República Federativa do Brasil. A partir desse raciocínio, é inevitável atrelar o aumento nos valores das multas à busca desenfreada por recursos.

Alguns municípios têm sido bastante combatidos com fundamento na chamada “indústria das multas” e nos denominados “radares pegadinha”. De fato, a arrecadação por meio desses mecanismos cresceu consideravelmente. Além disso, há prefeitos sofrendo processos administrativos e judiciais, na medida em que têm conferido destinação irregular aos valores arrecadados por meio das infrações de trânsito. Em vez de investirem as verbas em políticas públicas que garantam melhorias ao sistema de trânsito, acabam utilizando tais recursos para pagamento de folha de pessoal.

Ainda quanto ao argumento do “congelamento” dos valores por diversos anos, é preciso alguma reflexão. A questão que se coloca quanto a esse tema é basicamente a seguinte: é correta a alteração repentina dos valores com base nessa manutenção por longo período, recuperando ajustes que deveriam ter sido feitos de forma paulatina? A resposta é negativa. Elevar o valor das multas em percentual que supera — em determinados casos — 240% implica inegável deslealdade por parte da administração pública. Seria menos desastrosa a justificativa se ela considerasse apenas o aspecto punitivo. Afinal, a elevação, muito mais do que recuperar tais valores, busca apenar “o bolso” dos infratores de forma bastante severa. Em suma, o que não dá para aceitar é a razão oferecida pela administração.

As modificações relativas ao uso de celular também despertaram atenção dos órgãos de imprensa. Além da elevação dos valores, a infração passou a ser gravíssima. A Lei 13.281/2016 incluiu parágrafo único na redação do artigo 252 do CTB. Nele se observa que “segurar ou manusear” aparelho celular enquanto se está ao volante passa a ser conduta que acarreta o máximo de pontuação ao condutor.

O motivo para a majoração da sanção administrativa atrelada ao uso do celular nos parece bastante evidente. Afinal, a universalidade do uso do aparelho, bem como a existência de redes sociais e mecanismos de comunicação instantânea, aumentaram consideravelmente a incidência dessa espécie de infração. É bastante comum nos depararmos com motoristas digitando mensagens enquanto dirigem seus veículos.

Essa conduta pode acarretar acidentes. A atenção dispensada a tais atos retira aquela necessária à condução do automóvel. O manuseio do celular para operar esses aplicativos supera aquele atrelado às ligações telefônicas. Muitos veículos contam com sistema de bluetooth que viabiliza ao motorista manter as conversas de viva voz enquanto o áudio se dá no sistema de som do veículo. Mesmo esse modelo acaba desviando a atenção dos motoristas. Todavia, não pode ser detectado pelos agentes de trânsito com a devida precisão.

Nesse aspecto, questão que parece gerar alguma polêmica diz respeito à conciliação do novo dispositivo legal — “parágrafo único, do art. 252 do CTB” — com o uso dos celulares que contenham aplicativos de GPS. É cada vez mais comum a utilização desses aparelhos pelos motoristas, a fim de evitarem rotas congestionadas. Aplicativos que oferecem caminhos “alternativos e desafogados” encontram ampla adesão.

Não nos parece que, por si só, o uso do celular na modalidade GPS acarretará a infração comentada. Contudo, é preciso contextualizar essa impressão. Afinal, uma situação é a regular utilização do GPS a partir da inclusão do endereço de destino antes de partir com o veículo. Outra situação, bastante distinta, é o manuseio do GPS durante o percurso, isto é, com o automóvel em movimento. Essa é a razão pela qual o próprio programa, antes de ser iniciado, pergunta se o usuário é motorista ou passageiro, vetando a primeira opção caso note movimentação do veículo.

A segunda hipótese deve gerar a aplicação da multa. O manuseio previsto no dispositivo legal não faz qualquer distinção em relação aos objetivos com que se dá. Assim, o uso do GPS, conforme exemplificado no primeiro caso, não deve gerar qualquer consequência, na medida em que o motorista apenas segue as orientações dele provenientes. Já a constante manipulação do aparelho ao longo do percurso deve gerar as consequências citadas.

Outra modificação que merece extrema atenção dos motoristas diz respeito ao prazo mínimo de suspensão do direito de dirigir na hipótese de acúmulo de 20 pontos na CNH no período de 12 meses. Afinal, com a Lei 13.281/2016, o artigo 261 passou a contar com redação que estipula, para essa hipótese específica, período mínimo de seis meses e máximo de 12 meses. A alteração é relevante, já que acarreta restrição ao direito de dirigir por prazo mínimo inegavelmente elevado.

Além dessas mudanças, outra que dará margem para questionamentos judiciais é a inclusão do artigo 165-A no CTB, cuja redação sanciona a recusa ao exame para identificação do uso de álcool ou de outras substâncias psicoativas como infração gravíssima. Ainda que a medida possa ser avaliada como positiva por aqueles que não são operadores do Direito, é inegável que o dispositivo legal acaba por “sancionar um direito”. É cediço no Direito brasileiro que ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo. O artigo legal, entretanto, contraria esse entendimento e, inevitavelmente, será questionado em juízo.

Todos os mecanismos utilizados refletem o modo pelo qual a administração pública se pauta na disciplina do trânsito em nosso país. Para além do “intento arrecadatório”, a principal ferramenta é a punição. Houve uma série de modificações em outros dispositivos que passaram a considerar boa parte das condutas como infrações gravíssimas. A questão que surge desse comportamento não é sancionar ou não sancionar os infratores, mas se apenas a sanção gerará o comportamento desejado. Parece-nos que a educação para o trânsito ainda é o método mais eficiente para atingirmos o patamar almejado. As políticas públicas de conscientização não têm sido implementadas de maneira satisfatória. O Brasil, também em relação ao trânsito, negligencia o dever de instruir.

 

 

 

 

 

Autor: Luiz Fernando Prudente do Amaral  é professor do IDP São Paulo, da Faap e da Unip, além de doutor e mestre em Direito pela PUC-SP e especialista em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura.


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