por Adriana Villarino Dantas Motta
A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade de votos, decidiu, no último dia 23 de agosto de 2005, ser possível a alteração do regime de bens de casamentos celebrados antes da vigência do Código Civil de 2002. O acórdão foi proferido no julgamento do Recurso Especial 730.546/MG, em que foi relator o ministro Jorge Scartezzini.
Com efeito, os regimes matrimoniais de bens em nosso País até pouco tempo eram marcados pela característica da imutabilidade, consagrada no artigo 230 do Código Civil de 1916, segundo a qual, uma vez celebrado o casamento sob a égide de determinado regime de bens, impossível seria sua posterior alteração, mesmo que por vontade comum dos cônjuges.
O Novo Código Civil, Lei 10.406/2002, no parágrafo 2º do artigo 1.639, afastou expressamente a regra vigente no diploma anterior e passou a admitir a mutabilidade do regime de bens, a saber:
Art. 1.639
§2º – “É admissível a alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros”.
A alteração do regime de bens, no entanto, não é irrestrita e incondicional, devendo estar presentes alguns requisitos, quais sejam, a) que a alteração do regime de bens seja concedida por um Juiz; b) que haja razões relevantes e fundamentadas para o pedido; c) que a alteração seja vontade de ambos os cônjuges e d) que sejam protegidos os direitos de terceiros, como, por exemplo, eventuais credores do casal.
A controvérsia existente na doutrina e na jurisprudência diz respeito à aplicação ou não do artigo 1.639, parágrafo 2º, do Novo Código Civil aos casamentos celebrados antes da entrada em vigor do Novo Código Civil.
Aqueles que defendem a impossibilidade de alteração do regime de bens de casamentos celebrados antes da vigência do Novo Código Civil sustentam que o artigo 2.039 do Código Civil de 2002 explicitamente afirmaria que os regimes de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior seria o por ele estabelecido.
Sustentam, ainda, que a cogitada alteração feriria o ato jurídico perfeito e o princípio constitucional da irretroatividade de leis, estabelecidos nos artigos 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal e 6º da Lei de Introdução do Código Civil.
Por sua vez, aqueles que defendem a possibilidade da alteração do regime de bens dos casamentos posteriores ao Código Civil de 2002 sustentam que o Novo Código buscou preservar a ampla autonomia da vontade das partes contratantes, de modo que impedir a alteração dos casamentos anteriores à lei seria uma restrição de direitos injustificada, além de violar os princípios da liberdade, isonomia e proteção à família.
Defendem, ainda, que a alteração de regime de bens, a teor do que dispõe o artigo 1.639, parágrafo 2,º só poderá ser deferida mediante autorização judicial, resguardados os direitos de terceiros e mediante a vontade comum de ambos os cônjuges, de modo que não há de se falar em prejuízos para quem que seja.
O ministro Jorge Scartezzini, relator do recurso especial julgado recentemente pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em seu voto, ressaltou que, quando o artigo 2.039 do Novo Código Civil dispõe que o regime de bens quanto aos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916 “é o por ele estabelecido”, estaria determinando a incidência da legislação civil anterior exclusivamente no tocante às regras específicas a cada um dos regimes matrimoniais. Como a permissão de alteração de regime é norma geral relativa aos direitos patrimoniais dos cônjuges, o artigo 1.629, parágrafo 2º, incidiria, no entendimento do ministro, seguido unanimemente pela 4ª Turma, inclusive aos casamentos realizados sob a vigência do Código Civil de 1916.
Tal entendimento seria reforçado pelo disposto em outro artigo do Novo Código, o artigo 2035, que trata dos efeitos futuros de contratos de bens em vigência quando de sua entrada em vigor, por ser norma geral de efeito imediato: “A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no artigo 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução”.
Um dos primeiros casos de alteração de regime de bens de casamentos com fundamento no artigo 1.639, parágrafo 2º julgados em nosso país foi apreciado pela 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Goiás (apelação cível 200402376204, j. 23.06.2005), que decidiu pela procedência do pedido formulado pelos cônjuges, autorizando a alteração do regime de comunhão universal de bens de um casal para o regime da separação de bens, resguardando eventuais direitos de terceiros.
Para o relator do recurso, desembargador Rogério Arédio Ferreira, “não se pode admitir que, com a entrada em vigor do Estatuto Civil, passe a existir distinção entre pessoas que vivam sob o mesmo instituto – o casamento – sob pena de se infringir o princípio da isonomia, consagrado constitucionalmente”.
Naquele hipótese, os cônjuges alegavam que seriam casados sob o regime de comunhão universal de bens e que constituíram uma sociedade por cotas de responsabilidade limitada, em que cada um dos sócios detém um porcentual de 50% das cotas do capital. Segundo alegavam os cônjuges, o novo Código Civil, no artigo 977, proibiria que os cônjuges contratem sociedade, entre si ou com terceiros, quando o casamento for celebrado sob o regime da comunhão universal de bens, razão pela qual seria indispensável, para a manutenção da sociedade, a alteração do regime de bens para o da separação total de bens.
O juiz de primeiro grau rejeitou o pedido de alteração do regime de bens e o casal recorreu ao Tribunal de Justiça de Goiás. O desembargador Rogério Arédio consignou em seu voto que restou demonstrando nos autos satisfatoriamente que não existe qualquer prejuízo ao casal ou a terceiros com a mudança e que o novo Código Civil não impede a mudança do regime de bens para casamentos celebrados antes da vigência do atual Código de 2002, e sim “preserva, na íntegra, os regimes de bens vigentes quando da edição do novo Código Civil, na medida em que foram introduzidas algumas pequenas alterações ao disciplinar os regimes matrimoniais, não podendo a lei nova ferir direitos já consolidados”.
Por sua vez, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro também decidiu recentemente favoravelmente à possibilidade de alteração do regime de bens em hipótese em que os cônjuges, igualmente, eram únicos cotistas de uma sociedade limitada. O julgamento em questão foi proferido pela 6ª Câmara Cível, sendo relator o desembargador Mário Roberto Manheimer (Apelação Cível 22378/2004, j. 12.07.2005).
Em seu voto, o desembargador relator ressaltou que a regra do parágrafo 2º do artigo 1.639 do Código Civil de 2002 é regra de efeitos meramente patrimoniais e que não interfere no vínculo matrimonial dos cônjuges, não contrariando, portanto, as regras de proteção à família e filiação contemplados na Constituição Federal.
Além disso, ressaltou o desembargador Mário Roberto Manheimer que, diante do artigo 977 do Novo Código Civil, que veda a sociedade entre cônjuges casados pelo regime da comunhão universal de bens, a alteração do regime de bens em alguns casos se tornou medida essencial à preservação de direitos e, em especial, à manutenção de sociedades comerciais entre os cônjuges.
De fato, a partir da vigência do Novo Código Civil, cônjuges casados pelo regime da comunhão universal de bens que contrataram entre si a criação de uma sociedade limitada não mais poderiam permanecer sócios de tal sociedade. E, ainda, por força do artigo 2.031 do Novo Código Civil, teriam o prazo de um ano para adaptar a sociedade às novas regras do Código Civil.
Para solucionar o problema sem se alterar o regime de bens, a primeira possibilidade que se vislumbraria seria a alienação das quotas de um dos cônjuges a um terceiro, o que não seria justo e jurídico, até porque tal solução encontra óbice no caráter intuito personae das sociedades limitadas, bem como no princípio da razoabilidade. Outra possibilidade seria a separação judicial dos cônjuges, o que, igualmente, não se pode admitir como justo, já que tal alternativa feriria o princípio constitucional de proteção à família.
Portanto, a solução mais justa na hipótese apresentada seria se admitir a possibilidade de alteração do regime de bens prevista no artigo 1639, parágrafo 2º, considerando estarem presentes os requisitos estabelecidos naquele dispositivo legal, quais sejam, vontade comum dos cônjuges, razões relevantes (necessidade de adequação da sociedade às novas regras) e proteção dos direitos de terceiros (o próprio artigo 1.639, parágrafo 2º, expressamente resguarda os credores de qualquer alteração no patrimônio dos cônjuges).
Como se vê, a jurisprudência de nossos Tribunais, agora recentemente com o reforço do Superior Tribunal de Justiça, vem se firmando no sentido de admitir a mutabilidade do regime de bens, desde, comprovadamente, estejam presentes os requisitos estabelecidos no artigo 1.639, parágrafo 2º, do Novo Código Civil.
De fato, na atual conjuntura, impedir a possibilidade de alteração do regime de bens para casamentos realizados sob o antigo Código Civil seria uma maneira de, ignorando a necessária interpretação legal teleológica em atenção aos fins sociais e às exigências do bem comum, incentivar a fraude, na medida em que se estimularia o divórcio de casais apenas para poderem mudar o regime de bens a ser contraído por meio de um novo casamento formal.
Revista Consultor Jurídico