Hércules Fajoses*
O Banco Central e a Comissão de Valores Mobiliários, através de atos normativos (Circular BACEN 3.086, alterada pela Circular BACEN 3.096 e Instrução CVM 365 ) modificaram sensivelmente os critérios para o registro e avaliação contábil nos fundos de investimentos no dia 29 de maio. Dentre eles, se destacam os fundos de investimentos em renda fixa.
A principal mudança foi a implementação da “marcação a mercado”, que consiste no registro dos títulos e demais valores mobiliários que compõem a carteira dos fundos, pelo valor efetivamente pago pelos administradores dos fundos, conforme prescreve o artigo 1º da Circular BACEN 3.086 de 15 de fevereiro de 2002 :
Estabelecer que os títulos e valores mobiliários integrantes das carteiras dos fundos de investimento financeiro, fundos de aplicação em quotas de fundos de investimento, fundos de aposentadoria programada individual e fundos de investimento no exterior devem ser registrados pelo valor efetivamente pago, inclusive corretagem e emolumentos…
Anteriormente, a prática dos Bancos administradores de fundos de investimento em renda fixa era de registrar e avaliar os títulos e valores mobiliários, utilizando a chamada “ curva do papel”, ou seja, os ativos de renda fixa eram contabilizados pelo preço de aquisição atualizado pela curva de rentabilidade nominal do papel, não refletindo a real posição das cotas no mercado.
A Circular BACEN 3.086, em seu artigo 12, estabelecia como termo inicial de vigência para as novas regras, a data de 30 de junho de 2002, prazo este que foi elastecido pela Circular BACEN 3.096, empurrando o termo inicial de efetivação das regras de contabilidade para a data de 30 de setembro de 2002, para uma maior adequação aos administradores de fundos de investimento.
No entanto, em 29 de maio a CVM publica no Diário Oficial a Instrução CVM nº 365, determinando que as instituições financeiras e administradores de fundos de investimento em renda fixa observassem a “marcação a mercado” a partir de 31 de maio de 2002, inclusive, o que gerou perdas na ordem de até 5% para os investidores dos fundos de renda fixa, conforme informações veiculadas em vários jornais de todo o país.
Os investidores reclamam aos administradores as perdas que sofreram nos últimos dias, que por sua vez, alegam que foram obrigados pelo BACEN a mudar as regras “da noite para o dia”, bem como, os fundos de investimentos em renda fixa sempre ofereceram uma certa dose de risco e que, portanto, não há que se falar em culpa das instituições financeiras e sim, do BACEN que “mudou as regras do jogo” de forma abrupta e ilegal.
O Banco Central, se defende alegando que a antecipação na vigência das novas normas de contabilidade se deram para proteger o pequeno investidor, pois ocorria uma disparidade entre fundos de investimentos em renda fixa semelhantes que já haviam se adequado às novas regras ( já demonstrando perdas) e outros que ainda não estavam cumprindo as determinações do BACEN, o que poderia causar ao pequeno investidor uma falsa percepção da realidade. O fato é que os investidores perderam dinheiro e, agora, se sentem lesados pela falta de informações sobre os riscos de investir em fundos de renda fixa e modificação repentina nos critérios de contabilidade aplicados aos fundos de investimento.
A constituição, administração, funcionamento e a divulgação de informações dos fundos de investimentos em títulos e valores mobiliários – dentre estes, os fundos de investimento em renda fixa – estão regulamentados pela Instrução CVM Nº 302 de 05 de maio de 1999, com as alterações introduzidas pela Instrução CVM Nº 326 de 11 de setembro de 2000. Tal ato normativo prescreve os direitos e garantias dos investidores de maneira bastante clara e objetiva.
No entanto, a prática diária das instituições financeiras, tratando os fundos de investimento em renda fixa como se fossem aplicações similares à caderneta de poupança, com melhores retornos e sem a devida informação sobre os riscos, vulneram direitos e garantias básicas dos investidores, como por exemplo, o artigo 19 da Instrução CVM Nº 326, prescrevendo que todo cotista, ao ingressar no fundo, deve atestar, por meio de termo de adesão, que recebeu o prospecto e o regulamento, que tomou ciência da política de investimento, da possibilidade de ocorrência de patrimônio negativo e de sua responsabilidade por aportes adicionais de recursos.
Em verdade, o investidor, na grande maioria das vezes, não recebeu nem mesmo o prospecto e tampouco o regulamento do fundo de investimentos que “escolheu” junto com o gerente do Banco, mas assina tão-somente o termo de adesão. Ainda com relação ao prospecto do fundo de investimento em renda fixa, o mesmo deverá conter todas as informações relevantes para o investidor relativas à política de investimento o fundo e dos riscos envolvidos, bem como, dos principais direitos e responsabilidades dos cotistas e administradores ( art. 34, In. CVM 326 ). Tal entrega é obrigatória , devendo o administrador do fundo de investimentos manter em sua guarda o comprovante de entrega do prospecto ao investidor.
Ademais, o investidor nada mais é do que um consumidor que está aplicando seu dinheiro num condomínio e para tanto, celebra contrato com o administrador do fundo de investimento em renda fixa. Assim sendo, a relação contratual estabelecida entre investidor e Banco administrador de fundos é, sem dúvida alguma, uma relação de consumo e está subsumida à Lei 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor e, portanto, a supressão de informações necessárias à que o investidor possa exercer sem dúvidas e de forma transparente a sua livre escolha por tal ou qual aplicação financeira , vulnera todo o sistema de garantia e defesa do consumidor, especialmente o artigo 6º, inciso III do Código de Defesa do Consumidor , que traz como direito básico do consumidor a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem.
Por outro lado, as alegações das instituições financeiras de que estariam apenas cumprindo as determinações do BACEN, modificando as regras de registro e contabilidade dos ativos dos fundos de investimento em renda fixa, estatuídos pela Circular nº 3.086 de forma abrupta e repentina, deve ser tomada com bastante cuidado, vez que, desde 1996 a chamada “curva do papel” como critério de registro e avaliação contábil de ativos de renda fixa é vedada, conforme estabelecia a Circular BACEN 2.654 de janeiro de 1996 onde, em seu artigo 2º prescreve que os ativos integrantes das carteiras dos fundos de investimento em renda fixa – dentre outros – devem ser registrados pelo valor efetivamente pago e ajustados, diariamente, ao valor de mercado, reconhecendo-se contabilmente a valorização ou desvalorização verificada.
Cumpre salientar ainda, por oportuno, que a Circular BACEN 2.654 somente foi revogada, de forma expressa, pela Circular BACEN 3.086 de 15 de fevereiro de 2002, estando plenamente em vigor até a data de 31 de maio de 2002. No entanto, não se pode negar também, que o BACEN agiu realmente de forma abrupta, violando o princípio da segurança jurídica.
Desta forma, se verifica um verdadeiro dano patrimonial ao investidor/consumidor, na medida em que não teve acesso à informações que poderiam ter levado à outra escolha na aplicação de seu dinheiro, o que, certamente, dá ensejo à propositura de ações judiciais contra as instituições financeiras e que garantam a reposição das perdas decorrentes da mudança nos critérios contábeis já apontados, bem como, a indenização por eventuais danos de ordem extra patrimoniais que porventura tenham nexo de causalidade com as perdas ocorridas.
Hércules Fajoses é advogado associado da Baitello e Associados Advocacia e Consultoria