Por Ricardo Emílio Pereira Salviano
O Governo Federal pretende realizar algumas alterações na Lei de Ação Civil Pública para incluir o conceito de responsabilidade educacional e permitir a fiscalização dos responsáveis pela gestão da educação no âmbito da União, Estados e Municípios .
Recentemente, em 21/12/2010, foi enviado pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, o Projeto de Lei 8.039/2010, elaborado em conjunto com os Ministros da Educação e da Justiça e aprovado pelo Advogado-Geral da União, que visa alterar a Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, para disciplinar a ação civil pública de responsabilidade educacional, nos seguintes termos :
Art. 3o-A. Caberá ação civil pública de responsabilidade educacional para cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, sempre que ação ou omissão da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios comprometa ou ameace comprometer a plena efetivação do direito à educação básica publica.
§ 1o A ação civil pública de responsabilidade educacional tem como objeto o cumprimento das obrigações constitucionais e legais relativas à educação básica pública, bem como a execução de convênios, ajustes, termos de cooperação e instrumentos congêneres celebrados entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, observado o disposto no art. 211 da Constituição.
§ 2o O objeto da ação civil pública de responsabilidade educacional destinasse ao cumprimento das obrigações mencionadas no § 1o, não abrangendo o alcance de metas de qualidade aferidas por institutos oficiais de avaliação educacionais.
Em seguida, apresenta-se a fundamentação jurídica para alterar o artigo 3º da Lei 7.347/85, a saber:
Todo esse movimento representou um ganho inegável, ao fazer com que gestores de todo o país e em todas as esferas de Governo aderissem à luta pela melhoria da educação e assumissem publicamente compromissos neste campo.
Faltam, todavia, no nosso ordenamento jurídico, mecanismos efetivos e eficientes para garantia de que tais compromissos serão levados a cabo, ou ainda instrumentos de responsabilização por eventual falta de empenho dos gestores na sua concretização. Com efeito, contentar-se com sanções administrativas, limitadas à interrupção de repasses ou eventual instauração de tomadas de contas e restituição das verbas já repassadas, significa penalizar ainda mais aquele município ou estado já prejudicado pela omissão ou má gestão. É preciso que a má atuação do Poder Público na área de educação seja objeto de medidas capazes de reverter esse quadro e colocar as coisas no rumo certo.
Necessário, pois, a criação de mecanismos que possam exigir o efetivo cumprimento das obrigações constitucionais, legais ou a execução de medidas administrativas voluntariamente assumidas na área da educação.
A alteração da Lei da ação civil pública tem por objeto permitir a utilização deste instrumento de grande força para assegurar o direito à educação de qualidade para todos. Com efeito, a ACP transformou-se, hoje, em importante ferramenta de atuação – especialmente do Ministério Público e da Defensoria Pública – em favor dos chamados direitos coletivos e difusos.
Apesar da Constituição tratar o acesso ao ensino obrigatório e gratuito como direito público subjetivo (art 208, § 1º), a educação, como direito de todos (art. 205), deve ser entendida enquanto direito coletivo. A efetivação do direito à educação – que carece hoje de instrumentos adequados – deve receber guarida na Lei da Ação Civil Pública, a fim de contar com a sempre vigilante e atuante ação do Ministério Público.
A proposta de criação de um novo artigo 3-A visa delimitar o campo da ação de responsabilidade educacional, vincular a hipótese ao cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, desvinculando o direito à educação do caráter patrimonial previsto no art. 1º da Lei.
O projeto de Lei ora proposto prevê, assim, a utilização da ação civil pública para cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, sempre que ação ou omissão da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios comprometa ou ameace comprometer a plena efetivação do direito à educação básica publica. A obrigação de fazer ou não fazer objeto da ação deve estar vinculada às obrigações constitucionais e legais relativas à educação básica pública, bem como a execução de convênios, ajustes, termos de cooperação e instrumentos congêneres celebrados entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, observado o disposto no art. 211 da Constituição.
A pretendida delimitação do âmbito de abrangência da responsabilidade educacional em sede de ação civil pública significa criar obstáculo ao próprio acesso à justiça. Necessário se faz reconhecer que a simples ajuizamento de uma demanda não esgota o acesso à ordem jurídica justa, que deve ser compreendida como a possibilidade de se obter uma resposta adequada, célere e efetiva do Poder Judiciário.
Consoante ensina o insigne processualista Cândigo Rangel Dinamarco, parece-nos irrefutável o entendimento de que o direito ao acesso à justiça não se limita em conferir ao jurisdicionado o simples ingresso em juízo, mas engloba também a possibilidade que lhe é dada de participar de um processo justo. Confira-se :
Acesso à justiça não equivale a mero ingresso em juízo. A própria garantia constitucional da ação seria algo inoperante e muito pobre se se resumisse a assegurar que as pretensões das pessoas cheguem ao processo, sem garantir-lhes também um tratamento adequado. É preciso que as pretensões apresentadas aos juízes cheguem efetivamente ao julgamento de fundo, sem a exacerbação de fatores capazes de truncar o prosseguimento do processo, mas também o próprio sistema processual seria estéril e inoperante enquanto se resolvesse numa técnica de atendimento ao direito de ação, sem as preocupações com os resultados exteriores. Na preparação do exame substancial da pretensão, é indispensável que as partes sejam tratadas com igualdade e admitidas a participar, não se omitindo da participação também o próprio juiz, de quem é a responsabilidade principal pela condução do processo e correto julgamento da causa. Só tem acesso à ordem jurídica justa quem recebe justiça. E receber justiça significa ser admitido em juízo, poder participar, contar com a participação adequada do juiz e, ao fim, receber um provimento jurisdicional consentâneo com os valores da sociedade. Tais são os contornos do processo justo, ou processo équo, que é composto pela efetividade de um mínimo de garantias de meios e de resultados.
No caso de aprovação do projeto de lei em questão, certamente não passará no crivo de constitucionalidade do Poder Judiciário por restringir o acesso à justiça, uma vez que tal medida visa impedir a condenação do Ente Federativo na restituição das verbas já repassadas e não aplicadas, em decorrência da omissão ou má gestão dos gestores públicos. É inegável a inconstitucionalidade da norma, em razão da limitação da utilização da ação civil pública estritamente para cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, sempre que ação ou omissão da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios comprometa ou ameace comprometer a plena efetivação das obrigações constitucionais e legais relativas à educação básica pública, bem como a execução de convênios, ajustes, termos de cooperação e instrumentos congêneres celebrados entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
O que se vislumbra com o ingresso da medida judicial é assegurar a providência buscada por aquele que se socorre do Judiciário, por essa razão não se pode impor uma restrição, na Lei da Ação Civil Pública, à responsabilização dos Entes Federativos, que devem assumir o compromisso de fielmente executar as políticas públicas e cumprir as obrigações constitucionais e legais na área educacional.
Ora, se o artigo 60, inciso V, do ADCT, c/c artigo 4º da Lei 11.494/07 estabelece que a União Federal complementará os recursos do Fundeb sempre que, no Distrito Federal e em cada Estado, o valor por aluno não alcançar o mínimo definido nacionalmente, tais recursos federais disponibilizados devem ser utilizados nas ações e serviços voltados para a educação, sob pena de ressarcimento .
A condenação do Ente Federativo pela violação da referida norma em simples obrigação de fazer não terá efeito sancionador, se o descumprimento reverter em aplicação de novos recursos na área educacional, e muito menos efeito reparador, pois todos os alunos que deixaram de ser atendidos pelas políticas públicas já foram prejudicados. A punição é necessária para reprimir os abusos e responsabilizar aqueles que descumprem a legislação. Importante mencionar ainda que tanto no cumprimento da obrigação de fazer quanto no caso do ressarcimento, será destinada parcela do orçamento para sanar as irregularidades e certamente outra área social ficará desprovida de recursos públicos, por isso sempre haverá alguma conseqüência nefasta aos cidadãos.
Argumenta-se que, na obrigação de ressarcir os cofres da União Federal, os recursos destinados para tal finalidade não serão aplicados em políticas públicas voltadas para o ensino, sendo que a população do ente federativo já prejudicado pela omissão ou ineficiência do gestor público sofrerá ainda mais com as conseqüências da má gestão. Ocorre que há outras formas de a União Federal recompor, a médio prazo, os prejuízos ocasionados à população, desde que tenham sido sanadas as irregularidades, com a destinação de novos recursos federais, nos termos do artigo 211, parágrafo 1º, da Constituição Federal .
O que se espera em tais casos, os quais se presume serem excepcionais, é que os Estados e Municípios possam ser responsabilizados pela má gestão dos recursos públicos, assim como os agentes públicos possam ser punidos nas esferas administrativa, civil e penal.
Na referida hipótese de complementação da União Federal na composição do FUNDEB para atingir a aplicação na educação do valor mínimo definido por aluno, cabe ao Tribunal de Contas da União, nos termos do artigo 26, inciso III, da Lei 11.494/2007, fiscalizar o cumprimento do disposto no artigo 212 da Constituição Federal, que dispõe sobre a aplicação dos recursos públicos no sistema de ensino no país .
Pois bem, o não cumprimento das disposições constitucionais e legais relativas ao Fundeb pode gerar penalidades aos Estados e Municípios e sanções administrativas, civis e penais aos Prefeitos e Governadores, na hipótese de a aplicação dos recursos públicos contrariar os casos autorizados ou permitidos por lei.
No que se refere aos Estados e Municípios, há previsão normativa das seguintes penalidades:
1) rejeição das contas pelo Poder Legislativo, mediante parecer prévio do Tribunal de Contas, artigo 71, inciso I, e artigo 49, inciso IX, c/c artigo 75, todos da Constituição Federal;
2) impossibilidade de celebrar convênios com a Administração Pública estadual e federal, quando exigida a apresentação de Certidão Negativa do respectivo Tribunal de Contas;
3) impossibilidade de realizar operações de crédito junto a instituições financeiras;
4) perda da assistência financeira da União, nos termos do artigo 76 e artigo 87, parágrafo 6º, ambos da Lei 9.394/96;
5) suspensão do recebimento de transferências voluntárias, excetuadas as relativas à educação, saúde e assistência social, de acordo com o disposto no artigo25, parágrafo 1º, IV, alínea “b”, da Lei Complementar 101/00;
6) intervenção da União no Estado e do Estado no Município, conforme a previsão contida, respectivamente, no artigo 34, inciso VII, e no artigo 35, inciso III, ambos da Constituição Federal.
Já os Governadores e Prefeitos podem ficar sujeitos às seguintes sanções:
1) Governadores e Prefeitos – podem responder pelo crime previsto no artigo 315, do Código Penal, caso seja comprovada aplicação dos recursos em desacordo com o previsto em lei, com pena prevista de um a três meses de detenção e multa;
2) Governadores e Prefeitos – inelegibilidade por oito anos, os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do artigo 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição; nos termos do artigo 1º, alínea “g”, da Lei Complementar 64/1990, com a redação dada pela Lei Complementar 135/2010 , popularmente conhecida como Lei da Ficha Limpa, c/c artigo 71, inciso II, c/c artigo 75 da Constituição Federal;
3) Prefeitos – responder por crime de responsabilidade, por aplicar indevidamente verbas públicas, conforme previsão contida no artigo 1º, inciso III, ou por negar execução à lei federal, de acordo com o artigo 1º, inciso XIV, ambos do Decreto-Lei 201/67. Nestes casos, a pena prevista é de três meses a três anos de detenção. A condenação definitiva por tais crimes de responsabilidade pode ocasionar a perda do cargo, a inabilitação para exercício de cargo ou função pública, eletivos ou de nomeação, pelo prazo de cinco anos, é o que dispõe o art. 1º, parágrafo 2º, Decreto-Lei nº 201/67 ;
4) Prefeitos e Governadores – responder por crime de responsabilidade, desde que seja caracterizada a negligência no oferecimento do ensino obrigatório, conforme previsão contida no artigo 5º, parágrafo 4º, da Lei 9.394/96 ;
5) Governadores – responder por crime de responsabilidade, podendo ser condenado à perda de cargo e à inabilitação de até cinco anos para o exercício de função pública, conforme tipificado nos artigo 11 c/c artigo 74, todos da Lei 1.079, de 10 de abril de 1950 ;
6) Prefeitos e Governadores – poderão ser condenados a ressarcir o dano, perda da função, suspensão dos direitos políticos e multa, no caso de ser comprovada a improbidade administrativa, nos termos do artigo 12 Lei 8.429/92 .
Referências bibliográficas
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=16170;
http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=490172;
Dinamarco, Cândido Rangel. Instituições de Processo Civil, vol. I, Editora Malheiros, 3. ed, 2003, pág. 115
Ricardo Emílio Pereira Salviano é defensor público federal, titular do Ofício de Direitos Humanos e Tutela Coletiva no Distrito Federal.