“Quando transito pela avenida Mato Grosso não me canso de admirar as árvores maravilhosas que a circundam…”
Parece que foi ontem. Minha família chegava de uma longa viagem para fixar residência em Campo Grande. Por uma dessas ironias do destino, nosso pai escolhera a “Cidade Morena” porque ficava no centro do Brasil. Nossa história se parece com a de muitos que hoje habitam essa pequena-grande cidade.
Ela começa na década de 1970, quando nosso pai resolveu “tentar a sorte em outras paragens”, em terras mais distantes, onde tudo estava por fazer. Saímos de Franca, nosso berço de nascença, com dor no coração e a saudade que já doía no peito, pois nos distanciaríamos de nossos avós maternos, primos, tios, uma verdadeira e tradicional família árabe.
O destino? Mato Grosso. Mais precisamente Cuiabá (onde ficou uma parte da família) e Jauru (onde ficou a outra). No início, tudo era novidade. Calor? Era impensável! Do frescor da cidade de Franca, experimentávamos o verdadeiro calor brasileiro.
Nossa mãe chegou a cortar nossos cabelos, lisos e sedosos, para suportarmos melhor os dias abrasivos da fervilhante Cuiabá. Mas, aos poucos, nossa infância e adolescência foram se desenvolvendo naquela nova realidade e o amor por Cuiabá plantou-se em nosso coração. Estávamos adaptados! Mas, para nossa surpresa, os negócios iam mal e nosso pai resolveu tentar outras terras. Novo destino? Rio Branco, no Acre.
Não acreditávamos que depois de termos nos apaixonado por Cuiabá e até esquecido um pouquinho da “terra do calçado” nosso pai nos faria mudar novamente de cidade! Mas, é claro, lá fomos nós! Rio Branco foi uma surpresa em todos os sentidos: desde a paisagem amazônica até a miséria do povo, tudo nos ensinava e nos fazia amadurecer.
Íamos convivendo com a nova realidade, fazendo amigos e plantando raízes, quando nosso pai, novamente (!) resolveu que ali não era o lugar apropriado para seus seis filhos estudarem. Precisava de uma cidade que oferecesse mais escolas e universidades, já que meus irmãos mais velhos estavam terminando o que hoje chamamos de ensino médio e logo teriam que optar por uma profissão. Ele queria um lugar que ficasse entre Franca e Rio Branco, pois, assim, dizia ele, poderíamos visitar os parentes em Franca e visitar a ele próprio, que permaneceria vivendo mais tempo em Rio Branco, cuidando dos negócios. Pensamos que seria a nossa chance de voltar a Cuiabá.
Mas qual o quê! Nosso pai decidiu que seria Campo Grande! “Uma cidade próspera”, afirmava ele, “e que vai crescer muito”! Não entendíamos muito bem os seus argumentos e, no auge de nossa adolescência, até chegamos a viver uma pequena revolta. Mas, aos poucos, tudo foi se transformando. Instalados em nossa nova morada, no início de 1975, começamos a retomar nossa vida.
O engajamento na luta contra a ditadura militar e a participação ativa no movimento estudantil foram fundamentais para a nossa formação. Lutamos pela “anistia ampla, geral e irrestrita”, pelas liberdades democráticas e ajudamos a reorganização da vida partidária brasileira. Na luta ideológica não estávamos no mesmo campo político-partidário, mas como irmãos, nossa união era cada vez mais forte.
Nossa vida era economicamente difícil, trabalhávamos para ajudar a custear os estudos e, nos finais de semana, colaborávamos com a organização de comunidades pobres, nos bairros periféricos de Campo Grande. Vivemos o processo da divisão de Mato Grosso com dor no coração, pois afinal, nossa ligação amorosa com Cuiabá permanecia intacta.
Participamos da instalação do novo estado, que seria “o modelo” para a Nação. Cheguei a trabalhar na Assembléia Legislativa, em sua primeira legislatura e pude acompanhar os debates da constituinte de Mato Grosso do Sul, e foi naquele período que também ajudei a fundar o Partido dos Trabalhadores. Muita coisa se passou desde então; nosso pai faleceu em 1988, quando já éramos apaixonadas por Campo Grande.
Até não nos esquecemos de sua frase: “não disse que Campo Grande ia se transformar numa metrópole?” Nossa vida está marcada pela história de Campo Grande e de Mato Grosso do Sul porque, efetivamente, ajudamos a construí-la. Nosso amor por essa cidade transcende aquele que sentimos por nossa terra natal, porque aqui realmente fizemos a nossa história e plantamos as nossas raízes. Moramos na rua Cândido Mariano, na Pe. João Crippa, na Júlio Baroni, e, atualmente, na rua Dr. Arthur Jorge, todas elas carregadas de significado histórico para Campo Grande.
Quando transito pela Avenida Mato Grosso não me canso de admirar as árvores maravilhosas que a circundam, especialmente aquelas mais próximas da antiga Estação Ferroviária. Quanta saudade da Estação! Do trem! Campo Grande cresceu, transformou-se! Quanta diferença de quando aqui nos instalamos! Nossa mãe que o diga, pois hoje com seus 73 anos de idade não se cansa de dizer “como Campo Grande mudou!” Assim é o nosso e o meu amor por Campo Grande, “morena do nosso e do meu coração”.
Mariluce Bittar
Professora e campo-grandense de coração