Por Ricardo Silva
Atualmente, vem se tornando comum, em vários pontos do país, a recomendação, e às vezes a exigência, dos órgãos estatais no sentido de que as organizações religiosas, para receberem recursos públicos que serão destinados às suas atividades de promoção e assistência social, devem criar outra instituição não-religiosa para o desempenho das atividades de assistência social ou reformar seu estatuto, retirando a qualificação de organização religiosa, vale dizer, alterando a natureza jurídica da instituição.
Esse comportamento de alguns agentes públicos, noticiado pelas organizações religiosas espalhadas no Brasil, é inteiramente descabido e não encontra amparo em nosso ordenamento jurídico, como passaremos a demonstrar.
Inicialmente, é imprescindível buscar o fundamento de validade das organizações religiosas, podendo-se destacar do art. 5º da Constituição Federal os seguintes incisos que se referem à liberdade de crença e de associação: inciso VI (é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias); inciso XVII (é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar); e inciso XVIII (a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento).
Além desses dispositivos, convém ressaltar o inciso I do art. 19 da Carta Maior (art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público). Ante o exposto, conclui-se que as organizações religiosas ou templos de qualquer culto têm na Constituição Federal seu fundamento de validade, não havendo necessidade de lei federal para autorizar-lhes a existência.
Contudo, o Congresso Nacional achou por bem editar a lei n. 10.825/03 para alterar o Código Civil de 2002 e incluir no inciso IV do art. 44 deste diploma legal as organizações religiosas como pessoa jurídica de Direito Privado, assegurando, ainda, em seu § 1º, que “são livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos necessários ao seu funcionamento.”
Depreende-se, portanto, que as organizações religiosas têm ampla liberdade de criação e funcionamento, não existindo na Constituição Federal ou nas leis federais restrição quanto ao desempenho de atividades de assistência e promoção social por essas instituições.
Além disso, é impossível desconhecer o relevante papel que as religiões desenvolvem, desde os tempos mais remotos, na assistência e promoção da população mais carente. Acrescente-se, ainda, a certeza de que o Poder Público sozinho não tem condições de assistir a todos os cidadãos em situação de risco social, motivo pelo qual adquire cada vez mais relevância o trabalho desenvolvido pelas instituições que objetivam a melhoria da qualidade de vida do ser humano, instituições estas que compõem o denominado Terceiro Setor, do qual fazem parte as organizações religiosas.
Assim, não pode o Estado, que busca o apoio de toda a sociedade para a consecução de seus fins, prescindir das atividades de assistência e promoção social desenvolvidas pelas organizações religiosas, negando-lhes a qualificação de instituição de assistência social que historicamente sempre lhes foi outorgada.
É de bom alvitre destacar que os recursos públicos recebidos pelos templos de qualquer culto devem ser utilizados, obrigatoriamente, em programas de assistência e promoção social, descabendo a aplicação dos subsídios governamentais em atividades relacionadas à propagação de qualquer doutrina, sob pena de violação ao inciso I do art. 19 da Constituição Federal, anteriormente mencionado, que preconiza o caráter laico de nosso País.
A Carta Magna de 1988 trata da assistência social em apenas dois artigos, sendo pertinente a transcrição do dispositivo que versa sobre os objetivos de tal atividade:
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
II – o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III – a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV – a habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;
V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.”
Já o art. 204 da Constituição Federal traça as diretrizes que devem ser observadas nas ações governamentais na área de assistência social.
Da leitura dos dispositivos constitucionais acima citados não se pode inferir qualquer restrição às organizações religiosas na prática das atividades de assistência e promoção social que historicamente realizam.
Em 7 de dezembro de 1993 veio à lume a Lei 8.742, que dispõe sobre a organização da Assistência Social. Em seu capítulo I, composto por quatro artigos, o mencionado diploma legal versa sobre as definições e objetivos desse instituto.
O art. 3º dispõe especificamente sobre o conceito de entidades e organizações de assistência social:
Art. 3º. Consideram-se entidades e organizações de assistência social aquelas que prestam, sem fins lucrativos, atendimento e assessoramento aos beneficiários abrangidos por esta lei, bem como as que atuam na defesa e garantia de seus direitos.
Da leitura do dispositivo transcrito pode-se extrair duas conclusões. A primeira é que, diante da redação formulada pelo legislador, ao regulamentar o art. 203 da Constituição Federal, a denominação de entidade ou organização de assistência é uma qualificação, um título conferido pelo Poder Público às pessoas jurídicas de Direito Público ou de Direito Privado, que prestem, sem finalidade de lucro, atendimento e assessoramento aos beneficiários indicados na própria lei.
A segunda é que em nenhum passo o diploma legal em análise indicou quais pessoas jurídicas podem ser consideradas instituições de assistência social, o que não autoriza ao operador do direito, por conseqüência, uma interpretação restritiva que ofenderia vários dispositivos constitucionais, principalmente os incisos XVII e XVIII do art. 5º e o inciso I do art. 19 da Carta Magna.
Ao final, é importante ressaltar que o trabalho das organizações religiosas, voltado também para a assistência e promoção do ser humano, inclusive no seu aspecto social, é procedimento secular que apresenta resultados altamente positivos, razão pela qual deve ser apoiado e fortalecido, como estímulo a outros segmentos sociais.
A Constituição da República Federativa do Brasil, compreendendo que não é de interesse do Estado prescindir do concurso voluntário nas ações de interesse social, sabiamente garantiu a liberdade de ação no serviço de assistência e promoção social a todas as associações livremente constituídas, voltadas aos nobres objetivos de atender às necessidades gerais do ser humano, sejam materiais, espirituais, morais, intelectuais ou culturais, entre as quais se encontram as organizações religiosas, cuja contribuição nesse sentido é inequívoca.
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Ricardo Silva
Servidor no Superior Tribunal de Justiça