Por Otavio Luiz Rodrigues Junior
O “breve século XX”, como o denominou Eric Hobsbawm, foi responsável por grandes transformações sociais, que se refletiram profundamente no Direito. A 1ª Guerra Mundial, a Revolução Russa de 1917 e a Quebra da Bolsa de 1929 ocupam uma posição de centralidade nesse processo, especialmente na abertura para os chamados direitos sociais, ao tempo em que a 2ª Guerra, o Holocausto e a Contracultura dos anos 1960 tiveram maior influência na redefinição do constitucionalismo, dos costumes e da moralidade social.
É necessário, porém, não incorrer no pecado da vulgarização, que tem sido muito comum na dogmática nacional, especialmente a civilista, quando trata de correlacionar esses acontecimentos históricos com suas consequências jurídicas. Um desses problemas está na transposição do debate sobre o “liberalismo” para a realidade brasileira, quando se sabe que, em diversos momentos, o Estado deteve a primazia no processo econômico, ante a debilidade dos agentes privados. Outro ponto que também mereceria ser melhor examinado é o efetivo papel dos ideais do liberalismo na formação do Código Civil de 1916, o que vem sendo estudado de modo pioneiro na tradicional Escola de Direito do Recife pelo professor titular de Direito Civil Torquato Castro Júnior e seus discípulos.
Um dos pontos privilegiados para se estudar essa transformação do Direito Civil no século XX e relacioná-la com esses acontecimentos históricos está no chamado “regime das locações”. Mantendo a velha tradição romana, o Código de 1916 colocou debaixo da rubrica “Da locação” (Capítulo IV do Título V — Das Várias Espécies de Contratos) as seções “Da locação de coisas”, “Da locação de serviços” e “Da Empreitada”. Eram os correspondentes históricos à locatio-conductio rerum (locação de coisas), locatio-conductio operarum (locação de mão de obra) e locactio-conductio operis (locação de obra). A empreitada foi a única que perdeu essa referência onomástica com a locação, embora o codificador não a tenha retirado do capítulo das locações.[1] As duas primeiras locações, de coisas e de serviços, foram as mais afetadas pelos câmbios econômico-sociais do século XX.
A locação de prédios, subespécie da locação de coisas, foi a primeira a ser decalcada do regime codificado, com a edição do Decreto 4.403, de 1922, do presidente Arthur Bernardes, que suspendeu as ações de despejo, em meio a uma grave crise habitacional do primeiro pós-guerra. O Código Civil recuperou plena vigência nessa seção quando a norma de 1922 foi revogada pelo Decreto no 5.617, de 1924. Em 20 de abril de 1934, o Decreto 24.150, do presidente Getúlio Vargas, passou a regular “as condições e processo de renovamento dos contratos de locação de imóveis destinados a fins comerciais ou industriais”, tendo por mote, em seus consideranda, a necessidade de se impor “restrições à maneira de usar esse direito [de propriedade] em benefício de interesses ou conveniências gerais”, bem assim a “necessidade de regular as relações entre proprietários e inquilinos, por princípios uniformes e de equidade, se fez sentir universalmente, impondo como impôs aos povos da mais elevada educação jurídica a instituição de leis especializadas”.[2] Seguiram-se, desde então, a Lei 1.300/50, a Lei 4.494/64, a Lei 5.444/67, a Lei 6.649/79, que foi revogada pela atual Lei 8.245/91, com sucessivas alterações supervenientes. A dogmática atribui a cada uma dessas leis um perfil de natureza pendular, ora intervencionista, ora liberalizante.[3] Não é de se desconsiderar os momentos histórico-econômicos de cada uma dessas normas. A questão do inquilinato é extremamente sensível às oscilações do cenário econômico. Basta observar o que ocorre hoje na Europa e as medidas tomadas por alguns governos para suspender as ações de despejo.
O contrato de locação de serviços foi substituído como instrumento jurídico ordenador dos vínculos entre tomadores e prestadores de mão de obra pelo contrato de trabalho. A inaptidão do modelo romano-pandectista da locatio-conductio operarum para as exigências de uma nova classe obreira foi das mais eloquentes, de modo especial se comparada com a caducidade de outras figuras jurídicas no período. Os apelos do primeiro-ministro britânico David Lloyd George (posteriormente, conde Lloyd-George of Dwyfor) a uma guerra total contra o Império Alemão em 1917 dirigiu-se precipuamente aos operários, com a promessa de reformas na legislação trabalhista como uma recompensa pelo esforço bélico. No Código Civil de 2002, a locação de serviços é hoje a “prestação de serviços”. Em seu artigo 593, explicita-se o caráter residual da incidência das normas do código: “A prestação de serviço, que não estiver sujeita às leis trabalhistas ou a lei especial, reger-se-á pelas disposições deste capítulo”. Em uma dessas ironias da vida, no início do século XXI, assiste-se ao renascimento da velha “locação de mão de obra” como um contrato útil e usual para vínculos profissionais especializados, ao exemplo de atores, jornalistas, analistas de sistemas, além dos clássicos casos de advogados, contadores e consultores técnicos.
Nesses dois campos, nos quais o Código Civil perdeu, de modo ostensivo, seu caráter de norma primária — assiste-se a uma espécie de retomada de espaço dos princípios paritéticos. Na prestação de serviços, da qual se não cuidará nesta coluna, assinalou-se em que consiste esse novo cenário. Mas, na locação predial, é interessante limitar o exame a uma figura jurídica, o contrato na modalidade built to suit, introduzido pela Lei no 12.744, de 19 de dezembro 2012, que alterou o artigo 4o e acresceu o artigo 54-A à Lei 8.245/91 (Lei do Inquilinato).
A expressão inglesa built to suit pode ser traduzida por “construído para servir”, embora no Direito norte-americano ela seja referida por “build to suit” (“construir para servir”).[4] Mas, o que ela significa juridicamente?
Uma determina empresa do ramo de varejo (um supermercado, por exemplo) deseja instalar-se em uma nova cidade, mas não quer imobilizar seu capital com a aquisição de um prédio. Essa empresa contrata uma construtora (ou incorporadora) para: a) localizar uma área que atenda às necessidades de logística (acesso fácil a rodovias para a entrada dos produtos) e de mercado (adequação às carências dos consumidores de um certo perfil socioeconômico); b) adquirir, se já não for da empresa contratada, esse terreno e nele edificar, conforme as especificações previamente feitas pela contratante, a fim de que ali funcione um supermercado; c) uma vez construído o edifício, o prédio será alugado à empresa contratante, por um prazo mais longo, com hipóteses mais restritas de resilição.[5] Essa configuração do contrato poderia ser mais ou menos complexa.
Um exemplo de contratação mais simples: uma pessoa jurídica (pública ou privada) pode singelamente identificar um edifício, um andar, uma sala ou uma casa e propor ao titular do domínio que faça, diretamente ou por terceiros, adaptações na construção a fim de que o imóvel possa servir à atividade econômica pretendida (uma repartição pública, um escritório de advogados ou uma escola). A “construção” será apenas uma reforma e não a edificação total em um prédio nu. Por outro lado, é possível que se associe a modalidade built to suit aos negócios fiduciários da Lei 9.514/1997: o contratante (futuro locatário) encomenda a construção ao contratado (futuro locador), que será por isso remunerada. Os créditos do contratado podem ser transferidos a uma companhia securitizadora, a qual emitirá um Certificado de Recebíveis Imobiliários, como esclarece Luiz Antonio Scavone Junior. Ainda segundo esse autor, “esses créditos poderão assumir o regime fiduciário da Lei 9.514/1997 em benefício dos adquirentes dos títulos lastreados nos recebíveis decorrentes do contrato ‘built-to-suit’, permitindo, assim, que a companhia securitizadora coloque os títulos no mercado”.[6]
Compreendida a contratação e a que ela se destina, antes de ingressar no exame das novas regras legais, é importante referir que sua introdução na Lei do Inquilinato, ainda que de maneira imperfeita, não mais permite qualificar os contratos de locação na modalidade built to suit como espécies atípicas, o que era (acertadamente) defendido pela doutrina anterior à Lei 12.744/2012. A lei qualificou esse contrato como uma espécie do gênero locação predial urbana não residencial, ainda que se identifiquem elementos da locação e de empreitada, como também aludiam os autores para realçar sua atipicidade.[7]
Concluída a exposição dessas questões prévias, surge uma pergunta: qual a relação do estudo dessa nova espécie contratual com a introdução da coluna?
A locação predial urbana, desde a década de 1920, é um exemplo da subtração de partes expressivas da incidência do Código Civil sobre relações jurídicas privadas, sob o color de que nelas inexistiria o elemento nuclear do paritetismo. A desigualdade entre os sujeitos implica a submissão de seus conflitos a regras diferentes. Ao invés de se seguir o modelo alemão de resolução dessas assimetrias por meio da introdução no Código Civil de regimes duais, especialmente após a Lei de Modernização do Direito das Obrigações de 2002, o Brasil tomou o rumo de criar microssistemas (conceito extremamente difícil, por não haver uniformidade doutrinária a respeito) ou, para ser menos plurívoco, de se criar regimes normativos diferenciados. É o caso do Direito do Consumidor, do Direito do Idoso, do Direito da Infância e da Adolescência ou do Direito do Trabalho, sendo que, em alguns desses exemplos, é até mesmo difícil reconhecer-lhes um estatuto epistemológico autônomo.
A natureza protetiva de diversas normas da locação predial urbana é saliente na Lei do Inquilinato, em suas diferentes versões históricas. São exemplos disso as regras específicas sobre termos contratuais, com hipóteses restritivas da resilição pura e simples, bem assim o complexo sistema de revisão dos aluguéis. Por se reconhecer essa nítida função de equilibrar posições jurídicas desiguais, a própria lei excluiu de sua incidência as locações de imóveis públicos, de vagas autônomas de garagem ou de espaços para estacionamento de veículos, de espaços destinados à publicidade, de apart-hotéis, hotéis-residência ou equiparados, bem como o arrendamento mercantil (artigo 1o, parágrafo único, Lei 8.245, de 18 de outubro de 1991).
Ocorre que os contratos na modalidade built to suit, por sua destinação para agentes econômicos privilegiados, não deveriam ter sido incluídos em uma norma com as características da Lei do Inquilinato. Problemas relativos à interpretação desse novo tipo contratual, nomeadamente os conectados com a conciliação dos princípios de proteção ao inquilino, evidenciar-se-ão nos pontos mais sensíveis para os interessados nessa forma de contratar.
Na próxima coluna, far-se-á o exame analítico dos novos dispositivos legais e sua comparação com o modelo norte-americano.
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[1] A doutrina é praticamente unânime em reconhecer essa recondução das velhas formas romanas para a legislação positiva do século XX. Nesse sentido, por todos: SOUZA, Sylvio Capanema de. A Lei do Inquilinato comentada: Artigo por artigo. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 9.
[2] BRASIL. Decreto n. 24.150, de 20.4.1934. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-24150-20-abril-1934-500231-republicacaoatualizada-35452-pe.html. Acesso em 8.4.2013.
[3] SLAIBI FILHO, Nagib; SÁ, Romar Navarro de. Comentários à Lei do Inquilinato. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 21-22.
[4] Há quem traduza buit to suit por “construir para usar” (NADER, Paulo. Curso de Direito Civil: Contratos. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. v. 3. P. 252).
[5] GASPARETTO, Rodrigo Ruede. Contratos built to suit: um estudo da natureza, conceito e aplicabilidade dos contratos de locação atípicos no direito brasileiro. São Paulo: Scortecci, 2009. p. 31.
[6] SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Direito imobiliário: Teoria e prática. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.970.
[7] FIGUEIREDO, Luiz Gustavo Haddad. Built to suit. Revista de Direito Imobiliário (São Paulo), v. 35, n. 72, p. 161-188, jan./jun. 2012. Itens 3.2.1. e 3.2.2.
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Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).