Áureo Natal de Paula
A lei 10.409/02 inova com uma revogação sutil pela forma, prejudicial pelas conseqüências e elogiável do ponto de vista doutrinário.
Áureo Natal de Paula*
Debruçando-me sobre a miscelânea que se tornou o direito positivo atual, resguardador do bem jurídico saúde pública, no que concerne aos produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica, com a entrada em vigor da Lei n 10.409/02, deparei-me com situação peculiar.
O que é importante salientar é que a lei anterior (6.368/76), assim como o projeto 105/96 do Senado Federal, que foi aprovado e enviado ao Chefe do Poder Executivo para sanção, tratavam num único corpo de um subsistema que continha tanto normas estritamente penais, tipificando delitos e cominando sanções, quanto normas processuais, traçando os caminhos para a aplicação das primeiras.
Em virtude dos vetos recebidos, que não foram poucos, passamos a contar com um panorama totalmente novo e que impõe aos aplicadores do direito intensa e redobrada atenção, com o exercício de verdadeira ginástica hermenêutica para que não venham a cometer injustiças.
Como o veto recaiu sobre todo o capítulo que tratava da parte essencialmente penal do projeto, acabamos ficando com os crimes previstos no ordenamento anterior, já que a Lei n 6.368/76 somente foi revogada naquilo que não foi contrariada pela novel Lei nº 10.409/02, delitos estes que devem ser apurados na forma prevista nesta.
A mais revolucionária mudança que acredito tenha ocorrido é a revogação tácita de um artigo da parte penal da lei, como efeito secundário da sanção e entrada em vigor da parte processual.
Não custa reavivar a memória do leitor para o que prevê a Lei de Introdução do Código Civil, que regula a vigência de todas as leis do Brasil, em seu artigo 2º, parágrafo primeiro:
“A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando com ela seja incompatível ou quando regule inteiramente toda a matéria de que tratava a anterior.”
A lei nova (10.409/02) regulou toda a matéria processual sobre os entorpecentes e drogas afins, tanto que o capítulo que trata do rito procedimental, desde o inquérito policial até a instrução criminal, sofreu poucos vetos, não chegando a comprometê-lo.
De se observar ainda que, em nenhum dos dispositivos sancionados, ou mesmo vetados, se tratou ou se trataria do sigilo, que era obrigatório na fase inquisitória e facultativo na fase judicial na legislação anterior, Lei nº 6.368/76:
“Art. 26. Os registros, documentos ou peças de informação, bem como os autos de prisão em flagrante e o de inquérito policial para apuração dos crimes definidos nesta Lei serão mantidos sob sigilo, ressalvadas, para efeito exclusivo de atuação profissional, as prerrogativas do juiz, do Ministério Público, da autoridade policial e do advogado na forma da legislação específica.
Parágrafo único. Instaurada a ação penal, ficará a critério do juiz a manutenção do sigilo a que se refere este artigo.”
Logo o sigilo especial, referente ao procedimento da lei de tóxicos, e que só dizia respeito aos registros, documentos ou peças de informação, não mais existe, restando revogado o artigo.
Por outro lado o artigo 17 da Lei nº 6.368/76 previa um tipo penal com a seguinte redação:
“Violar de qualquer forma o sigilo de que trata o artigo 26 desta Lei. Pena – detenção, de 2 (dois) a 6 (seis) meses, ou pagamento de 20 (vinte) a 50 (cinqüenta) dias-multa, sem prejuízo das sanções administrativas a que estiver sujeito o infrator.”
A redação desse tipo penal, nas exatas palavras de Damásio E. de Jesus (1) valia-se de uma “norma de extensão ou ampliação”: o artigo 26 da Lei nº 6.368/76, ou seja, “a descrição típica não se esgota no dispositivo, estende-se àquele”. Assim, como conseqüência da revogação do artigo 26 o artigo 17 restou esvaziado, não tendo mais como ser aplicado, principalmente pelo princípio da estrita legalidade que impera nas normas penais incriminadoras, estando portanto revogado.
Como se não bastasse, recorremos ao texto do projeto e analisamos o desenho de lei, na parte penal, onde percebemos que já era essa a intenção do legislador, ou seja, a extirpação desse tipo, vez que entre os tipos penais aprovados e mandados à apreciação para sanção (arts. 14 a 20 do Projeto 105/96 do Senado Federal), não se encontrou nenhum com correspondência ao indigitado artigo 17 da Lei nº 6.36/76.
Mas isso não é tudo. Com a revogação do artigo 17 da Lei nº 6.368/76, ao contrário do que se pensaria numa primeira visão, não ocorreu “abolitio criminis”, ao contrário, a conduta passou a ser mais severamente apenada e a ter campo de aplicação mais amplo, vez que se transformou na violação do sigilo funcional genérica, prevista no artigo 325 do Código Penal, sigilo este é assegurado no artigo 20 do Código de Processo Penal, no que diz respeito ao inquérito policial, logicamente de âmbito mais restrito, homenageando o princípio da publicidade que norteia a administração pública, assim será somente o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade (2).
Vicente Greco Filho já avisava ao comentar o artigo 17 da Lei nº 6.368/76 logo que ela entrou em vigor: “O crime do artigo é especial em relação ao art. 325 do Código Penal, preferindo a este em virtude do princípio lex specialis derrogat generalem. Sua pena privativa de liberdade, todavia, é bem menor que a do crime de violação de sigilo funcional, no que, parece-nos, andou mal o legislador. Aliás, a nova tipificação era desnecessária em virtude da previsão do mesmo art. 325, inclusive mais preciso e mais amplo. Prevalecerá, porém, a apenação mais branda se o sigilo referir-se a peças de investigação de crimes de entorpecentes, o que, logicamente, é insutentável se compararmos com outra violação de segredo funcional que pode, em termos de dano social, ser menos grave.”
Agora o panorama é outro, revogada a lei especial, passa a viger a geral, porém como o efeito é prejudicial ao réu, no direito intertemporal a norma é ultrativa permanecendo vigente para regular eventuais casos ocorridos antes da entrada em vigor da Lei nº 10.40/02.
Assim, do ponto de vista doutrinário, o legislador atual, parodiando Deus, ou quem sabe por um desígnio Dele, andou bem, acolhendo o entendimento do renomado autor, escrevendo certo por linhas tortas.
Em análise jurisprudencial, pouco ou quase nada se encontrou com referência ao artigo em questão. Nas RTs (4) não se encontrou nenhum acórdão. Vicente Greco Filho, em sua obra também não cita nenhum (5). Apenas um julgado do TJSP foi referido por Damásio (6) e citado por Alberto Silva Franco e outros (7). Assim se percebe que o artigo agora expurgado do ordenamento jurídico tinha restritíssima aplicação.
*Áureo Natal de Paula, é Bacharel em Direito pela Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro de Jacarezinho-PR e Escrevente Técnico Judiciário na Comarca de Fartura-SP, autor dos artigos: A possibilidade de reiteração da transação penal, Disponível na internet: www.ibccrim.com.br, 31.07.2001, Sobre a nova denunciação caluniosa, Disponível na internet: www.ibccrim.com.br, 23.09.2001, O consentimento do ofendido posteriormente ao fato típico. Disponível na internet: http://www.ibccrim.com.br, 30.11.2001 e Inquérito policial e intimação do suspeito para ser ouvido. Disponível na internet: http://www.ibccrim.com.br, 03.01.
Notas:
(1) Lei Antitóxicos Anotada, São Paulo, Saraiva: 1995, pg. 78.
(2) Sobre sigilo no inquérito policial vide nosso artigo “Inquérito policial e intimação do suspeito para ser ouvido”, disponível na Internet: www.ibccrim.org.br, [03.01.2002].
(3) Tóxicos – Prevenção e Repressão, 11ª edição, atualizada, São Paulo, Saraiva: 1996, pg. 117.
(4) Revista dos Tribunais, pesquisadas as de 711 a 740, 747 a 753 e de 759 a 782.
(5) Conferir ob. cit., pg. 116/ 117 e 212.
(6) Ob. e loc. cit.
(7) Leis Penais Especiais e sua interpretação jurisprudencial, São Paulo, 1995, pg. 791: “Tornado público o fato que deveria ser sigiloso, em face dos incidentes que cercaram a prisão de várias pessoas por porte de entorpecente, ilícita não pode ser considerada a conduta de jornalista que, no exercício regular de suas atividades profissionais, o divulga em seu periódico, transcrevendo o boletim sobre a ocorrência, fornecido pela autoridade militar que efetuou a diligência (TJSP – AC 14.575-3 – Rel. Diwaldo Sampaio – RT 575/364).”