Autor: Guilherme Nucci (*)
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É comum encontrar argumentos dos dois lados, quando os discursos tornam-se radicais.Muitos defensores dos direitos humanos acusam os órgãos mantenedores da segurança pública de violar esses direitos a pretexto de garantir a ordem pública. Parece até que seria uma escolha: para a sociedade ter segurança, os direitos humanos deveriam ser afastados.
Sob outro foco, vários agentes estatais, encarregados da segurança pública, acusam os defensores dos direitos humanos de interpor barreiras ao seu trabalho e, por isso, a ordem pública seria prejudicada. Argumenta-se: os direitos humanos destinam-se a pessoas honestas; servem aos agentes da lei; marginais não devem ter consagrados os mesmos direitos humanos.
Sobre a intensa polêmica de antagonismo entre os direitos humanos e a segurança pública, confira-se o entendimento de Nilo Batista: “direitos humanos são direitos que toda pessoa humana tem – independente do que seja, tenha, pense ou faça. (…) A ideia principal dos direitos humanos é que toda pessoa tem certos direitos que o Estado não pode tirar nem deixar de conceder: vida, trabalho, remuneração digna, aposentadoria, instrução, liberdade, manifestação de pensamento, livre associação e reunião etc. É claro que se um homem pratica um crime – um homicídio, um roubo, um estupro, um furto – ele deve ser processado e julgado. Os documentos dos direitos humanos também preveem isso. Mas não pode ser espancado. Não pode ser torturado. Não pode ser morto. Sua família não pode ser humilhada. Seus vizinhos não podem ser importunados e constrangidos. Casas de inocentes não podem ser vasculhadas. Se aqueles que matam, assaltam, violentam crianças ou mulheres, furtam não são presos, processados e julgados e condenados, a culpa não é dos direitos humanos. A lei prevê que um acusado que intimida testemunhas, ou que, ficando solto, coloca em perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de terceiros, pode ser preso. Basta a polícia pedir que a Justiça decreta a prisão. Se o acusado for preso em flagrante, em crimes graves, que não têm fiança, só se for primário, de bons antecedentes e inofensivo é que a Justiça pode liberá-lo antes do julgamento. E se for condenado, a lei programa que na penitenciária ele deve ser reeducado e aprender um ofício. Por que nada disso acontece? Por que é tão fácil praticar crimes? Por que tantos crimes são cometidos? Por que muitos daqueles que os praticam não são presos e processados? Por que as penitenciárias são imundas escolas superiores do crime? Culpa dos direitos humanos, culpa dos bandidos ou culpa de instituições que não cumprem com seus deveres? (…) Propensão para o crime tem é o Estado que permite a carência, a miséria, a subnutrição e a doença – em suma, que cria a favela e as condições sub-humanas de vida. (…) Perto da culpa do Estado, a do bandido é pequena. E o bandido, a gente ainda consegue prender, processar, julgar e condenar. E o Estado?”.
Noutros termos, o embate ideológico e político termina por evidenciar que a segurança pública parece ser inimiga dos direitos humanos e também estes não se coadunariam com o primeiro. Porém, esse antagonismo é falso.
Respeitar os direitos humanos, obstando abusos estatais de qualquer ordem, é fundamental. Trabalhar em prol da segurança pública, igualmente, é indispensável.
Se os direitos humanos são individuais, abrangem todos os indivíduos, inclusive os autores de infrações penais. Por outro lado, a segurança pública é um dever da coletividade, que dispõe de órgãos constituídos justamente para preservá-la, dando suporte a todos. Uma ilustração: a rebelião ocorrida em um presídio, com fuga de condenados, coloca em risco a ordem pública; nem por isso, os presos rebeldes ficam automaticamente privados de seus direitos individuais. Nem por isso, para resolver o problema, concede-se ao Estado o direito de matar os que ali estiverem causando a desordem. Cuida-se de assegurar a ordem, sem ferir direitos fundamentais. Pode-se dizer que essa situação é difícil e complexa, o que não se nega, mas compatibiliza-se, na integralidade, com o texto constitucional.
Os direitos humanos somente atrapalham a polícia quando esta for despreparada ou desaparelhada; mal paga ou corrupta. A polícia bem treinada, com armas, aparelhos tecnológicos modernos, cultivando o campo da inteligência contra o crime, bem paga e sem corrupção não sofre absolutamente nenhuma influência dos direitos humanos. Ao contrário, são até úteis para a demonstração da lisura dos trabalhos policiais e permitem aquilatar a idônea prova produzida, fazendo a palavra do policial ter um valor inestimável para a instrução do processo-crime.
É natural haver reclamo contra os direitos humanos se a polícia não tiver preparo, desconhecer regras básicas do Direito, depender de armas e veículos velhos ou quebrados e não lastrear a sua investigação na inteligência, mas na pura sorte ou na pressão exercida contra os suspeitos. Nesses casos, os direitos individuais poderiam atrapalhar a investigação ou a colheita de provas. Noutros termos, possam os direitos humanos obstar o trabalho iníquo do agente policial descompassado com as regras do Estado Democrático de Direito. Possa a sociedade notar esse descompasso e tomar providências, mediante pressão dos organismos privados (como as ONGs), junto aos governantes para que esse estado de coisas seja corrigido. Além da sociedade, cabe ao Ministério Público e também ao Judiciário o papel de fiscal do estrito respeito aos direitos humanos e, se essa observância levar à inviabilidade da segurança pública, deve-se apontar os equívocos à classe política para que os corrijam.
O que é inadmissível, no Estado Democrático de Direito, é acatar a deliberada infringência aos direitos humanos em nome de uma pretensa segurança pública, aceitando os abusos policiais como se fossem indispensáveis para o sossego e a paz alheia. Esse acatamento pode dar-se por meio da omissão da sociedade (ou do incentivo à violência, como ocorre com os casos de linchamento), bem como pela manifesta indiferença dos poderes de Estado. O desrespeito aos direitos humanos torna-se visível quando, ocorrendo um abuso policial, alguns segmentos da sociedade aplaudem, elogiam o trabalho da polícia, manifestam-se favoravelmente em redes sociais e por outros meios de comunicação. Cuida-se de uma forma velada de propagar o crime, em autêntica apologia.
Vez ou outra, infratores são mortos pela polícia, em situação nítida de antagonismo a qualquer excludente de ilicitude ou culpabilidade, mas, em lugar de haver indignação popular, dá-se o efeito inverso. Essa cultura da violência é uma tolice, pois representa, vulgarmente, o que se pode chamar de tiro no próprio pé. Hoje, o cidadão que aplaude a violência abusiva dos agentes policiais pode deles tornar-se vítima. Se tal se der, para quem pretende reclamar? Aos órgãos superiores dos policiais? Ao Ministério Público? Ao Judiciário? Em tese, poderia apresentar o seu inconformismo a qualquer deles, embora pouco seria feito, na exata medida em que a cultura da violência termina por impregnar, também, outros agentes estatais.
Sob outro aspecto, criticar a polícia, o Ministério Público e/ou o Judiciário, quando cumprem o seu dever, em favor da segurança pública, agindo dentro da legalidade, é desconhecer a realidade. Prisões cautelares podem ser necessárias, assim como a aplicação de penas elevadas, dependendo de cada caso concreto.
Embora ainda impere um nível elevado de analfabetismo e pouco grau de instrução na sociedade brasileira, cremos na existência da boa-fé e do bom-senso das pessoas, situações independentes de cultura e sabedoria. O discurso certo, reconhecendo os méritos da polícia e apontando somente os seus erros, bem como privilegiando os direitos humanos como o direito de cada um (e não de poucos) pode sensibilizar o brasileiro a jamais provocar o antagonismo entre segurança pública e direitos individuais.
E esse discurso é um dever primordial dos operadores do Direito, mormente os que atuam na área criminal, abrangendo juízes, membros do Ministério Público, advogados, defensores públicos e autoridades policiais em geral.Pela segurança pública com respeito aos direitos individuais: essa é a meta do Estado Democrático de Direito.
Autor: Guilherme Nucci é desembargador em São Paulo. Livre-docente em Direito Penal, doutor e mestre em Processo Penal.