O ato jurídico é aquele ato que revestido das formalidades legais cria, modifica, conserva e extingue direitos.
Ocorre que no Sistema Financeiro de Habitação as instituições financeiras para satisfazerem seus créditos utilizam-se do instituto da execução que pode ser por via judicial (Execução Hipotecária – Lei nº 5.741/71) ou por via administrativa (Execução Extrajudicial – Decreto-lei nº 70/66).
A escolha de uma das modalidades de execução é livre, as instituições financeiras podem escolher qualquer uma delas.
Entretanto, grande maioria das instituições financeiras preferem optar pela execução por via administrativa – Execução Extrajudicial, por causa da celeridade do procedimento adotado por esta modalidade de execução, pois os processos no Poder Judiciário sempre foram morosos, por diversas razões.
No tocante à constitucionalidade da execução por via administrativa a corrente vertente é de não recepção, pois feri inúmeras garantias e princípios constitucionais, reconhecidamente estabelecidos como cláusulas pétreas.
É principio constitucional de primeira grandeza a inafastabilidade da jurisdição, por meio da execução por via administrativa, tendo em vista que visa a extinção do direito de propriedade, com a arrematação da unidade imobiliária, após a realização dos leilões, tudo sob a condução administrativa do agente fiduciário que o devedor nunca escolhera. É um absurdo confundir agente fiduciário com Poder Judiciário.
Porém, as instituições financeiras pouco se importam se a execução por via administrativa realizada por elas violam ou não os princípios constitucionais, na verdade querem é uma modalidade rápida e eficaz de executar seus créditos.
Iniciada a execução extrajudicial, a instituição financeira comunica ao devedor que terá o prazo de 20 (vinte) dias para purgar o débito, não ocorrendo a purgação do débito, o agente fiduciário está autorizado a publicar editais e a efetuar no decurso dos 15 (quinze) dias imediatos, o primeiro público leilão da unidade imobiliária hipotecada.
Não havendo no primeiro público leilão licitantes será realizado o segundo e último público leilão, nos 15 (quinze) dias subseqüentes, no qual será aceito o maior lance oferecido, mesmo que seja inferior ao débito.
Caso não haja no segundo e último público leilão licitantes a unidade imobiliária será arrematada pela instituição financeira pelo valor do débito.
Ocorrendo a arrematação será expedida Carta de Arrematação que será lavrada na matrícula da unidade imobiliária no Cartório de Registro de Imóvel da circunscrição, cancelando, conseqüentemente, a hipoteca, tornado proprietário da unidade imobiliária a instituição financeira.
Após a explicação da execução por via administrativa, chegamos, portanto, ao nosso tema que é a anulação do ato jurídico, isto é, que é a anulação do procedimento extrajudicial adotado pela instituição financeira, que está eivado de inúmeras irregularidades, que serão expostas nos parágrafos seguintes.
As instituições financeiras adotam o procedimento constritivo e ilegal do Decreto-lei nº 70/66, ocorre que elas sequer respeitam as exigências deste indigitado procedimento, bem como, violam os princípios constitucionais da inafastabilidade do controle jurisdicional, do juiz natural, do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, tendo em vista que a referida execução não tem controle jurisdicional e nem possibilita a defesa direta.
Se observado o procedimento de execução por via administrativa – Decreto-lei nº 70/66, nota-se não haver nele referência à possibilidade de reação, por parte do devedor, ou mecanismos capazes de proporcionar a apreciação no âmbito da própria execução, por quem de direito, de eventuais alegações de defesa que venham a ser opostas, quer quanto à instauração, quer quanto à formação e desenvolvimento dessa execução. Aliás, nem mesmo há uma autoridade a presidir o processamento, tampouco lugar para quaisquer apreciações de cunho valorativo, isto é, acompanhar o procedimento, limitando-se senão a acompanhar passivamente a venda da unidade imobiliária.
Não se pode aceitar que alguém seja privado de seus bens, sem o devido processo legal, afastando-se o monopólio da jurisdição do Estado e a presença de um magistrado imparcial, competente para o litígio e constitucionalmente investido na função jurisdicional.
Apesar das instituições financeiras se sentirem acima da nossa Constituição Federal, que podem fazer tudo, até mesmo expulsar os mutuários do seu imóvel, estão completamente enganados, pois mesmo realizando a execução extrajudicial, os mutuários (supostos devedores) têm amparo em nosso ordenamento jurídico com a distribuição de ação anulação de ato jurídico, com fulcro na Lei nº 10.406/02 – Código Civil.
Enseja-se a anulação do ato jurídico, em virtude do agente fiduciário não cumprir os requisitos essenciais do procedimento executório extrajudicial, haja vista que nomeia indevidamente agente fiduciário para deflagrar a referida execução sem autorização dos devedores, bem como, não envia via Cartório de Registro de Títulos e Documentos notificação pessoal aos devedores instruídas com o demonstrativo analítico do débito, oriundo das prestações vencidas.
Não obstante, a notificação encaminhada aos devedores deve seguir um modelo, determinado pelo próprio decreto-lei e circulares, no entanto, o agente fiduciário nunca segue esse modelo muito menos instrui a notificação com os demonstrativos analíticos do débito, e, ainda, muitas das vezes nem enviam notificação aos devedores que só tomam ciência que seu imóvel será levado a leilão por meio de telegrama enviado pelo leiloeiro ou por entidades de defesa do mutuário.
Além dessas irregularidades, há ainda a duvidosa constitucionalidade do decreto-lei nº 70/66, tendo em vista que os artigos 30, parte final e 31 a 38 não foram recepcionados pela Constituição Federal de 1.988, pois violam garantias constitucionais, que só poderiam ser alterados se rasgassem nossa atual constituição e fizessem outra.
Colaborando com nossa matéria temos v. acórdão proferido nos autos da Ação de Mandado de Segurança de nº 93.15121-9/DF, tendo como Rel. Ministro Nelson Gomes da Silva do Egrégio Tribunal Regional Federal da Primeira Região:
“A execução extrajudicial constitui uma forma de autotutela da pretensão executiva do credor exeqüente, repudiada pelo Estado de Direito. Infringe o principio da inafastabilidade da apreciação judiciária (CF/88, art. 5º, inc. XXXV). Fere o monopólio de jurisdição e o principio do juízo natural (inc. XXXVll e LIII, do art. 5º, CF/88). Priva o cidadão / executado de seus bens, sem o devido processo legal (art. 5º, inc. LIV, CF/88). Não assegura ao litigante devedor os meios e os recursos necessários a defesa de seus bens (art. 5º, inc. LV, CF/88).
2. A execução extrajudicial prevista no Decreto – Lei nº 70/66 e na lei nº 5.741/71 não foi recebida pela Carta magna brasileira de 1988.”
Não é concebível, na presente fase de desenvolvimento do Direito que um particular exerça a função jurisdicional, pois, ver-se-á adiante, todavia, que, embora a força do poder econômico tenha objetivo guardar para si uma fatia da função jurisdicional procurando apoio nos artigos 30, 31 a 38 do Decreto-Lei n.º 70/66, estes dispositivos não podem prevalecer, haja vista, não terem sido recepcionados pela a nossa Constituição Federal de 1.988, que elevou a sede constitucional os basilares princípios processuais do contraditório e da ampla defesa, ausentes nestes citados dispositivos.
Constata-se, portanto, que o procedimento de execução extrajudicial é uma triste aberração no ordenamento jurídico brasileiro, por violar inúmeros direitos e garantias constitucionais, além de não ter sido recepcionado por nossa Constituição Federal.
Portanto, na ação de anulação de ato jurídico compete ao MM Juiz verificar se o procedimento que levou a arrematação da unidade imobiliária pelo rito administrativo observou a estrita legalidade, uma vez que viciado o procedimento (existência de vícios formais) o ato deverá ser declarado nulo.
* Renato Aparecido Mota
Advogado Especialista em Sistema Financeiro da Habitação