por Luís Guilherme Vieira
“(…) a repressão à criminalidade é uma necessidade imperativa de qualquer sociedade. Deve ser efetivada com presteza, seriedade e rigor. Mas há limites muito nítidos. (…) Qualquer transigência, aqui, é o sacrifício do Direito no altar das circunstâncias.”1
I — Introdução
A partir da promulgação da Carta da República de 1988, o Ministério Público, lastreado em fundamento que dizem lhes dar supedâneo legal, vem, amiúde, realizando diretamente investigações criminais (principalmente, como se vê no cotidiano forense, naqueles emblemáticos casos midiáticos ou naqueloutros em que a opinião publicada, que difere da opinião pública, rotula como gravoso), sem requisitar, à autoridade policial, a instauração de inquérito. Sustentam, em síntese apertada, que, sendo os titulares da ação penal pública, não podem ser — aliás, nunca foram — um mero convidado de pedra durante à realização do procedimento adminicular, motivo pelo qual podem, não só requisitar diligências ao delegado de polícia, mas realizá-las diretamente, se for necessário e conveniente (quem pode o mais, pode o menos, alegam). Tudo, sumariam, em nome da segurança pública que está a impor a todos uma adequação à realidade moderna, ditada pela criminalidade dita organizada e/ou violenta.
Para corporificar, ainda mais, esse pseudo-poder investigador, aduzem que a codificação processual penal vigente é inadequada para que o parquet possa, com a presteza que a repressão criminal está a exigir das autoridades em tempos atuais, agir de modo eficaz, porque “o sistema [hoje] adotado deixa a desejar quanto à eficácia e agilidade das investigações. Embora protagonistas da mesma atividade de persecução penal, a interdependência entre a Polícia Judiciária e o Ministério Público é muito deficitária, quando não rejeitada completamente”.2
Porém, não custa rememorar, tudo isso foi muito bem sopesado pelo constituinte de 1988, que optou, apesar de opiniões em contrário, por manter o sistema vigente, que dá, à autoridade policial, atribuição exclusiva para presidir inquéritos criminais, salvo raríssimas exceções legais. Adequações hão de vir para aprimorar o sistema processual patrício, ninguém ousa contestar, mas desde que não vilipendiem a Carta Política.
II — O Supremo Tribunal Federal: o leading case
O Ministério Público não possui atribuições para realizar, diretamente, investigação de caráter criminal — essa foi a decisão, prolatada em maio próximo passado, no recurso ordinário em Habeas Corpus nº 81.326-7,3 pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, unanimemente, sob o voto condutor do ministro Nelson Jobim. Esse julgamento erige-se num corolário de diversas outras decisões de tribunais de todo o país que, antes com algumas hesitações, hodiernamente têm consagrado o mesmo entendimento.
A divulgação de tal decisum constituiu-se num forte sopro sobre as brasas da polêmica que vem, há mais de dez anos, sendo alimentada, no mundo jurídico, pela instauração e funcionamento dos chamados “procedimentos investigatórios criminais” (no Rio de Janeiro) ou “procedimentos administrativos criminais” (em São Paulo e alhures). Por certo, o assunto é dos mais ardentes, dos mais palpitantes, porque está a envolver acirrados debates Brasil afora, quer nas academias quer nos tribunais, posto que a decisão pretoriana põe por terra toda uma novel ideologia ministerial, que pretendia — e ainda pretende, como veremos posteriormente — inovar, sem abrigo de Constituição ou lei, o destino da investigação de natureza penal.
Em seu voto, o ministro Jobim demonstra que, historicamente, no direito processual penal brasileiro, as atribuições para realizar as investigações preparatórias da ação penal têm sido da polícia, pelas mais diversas razões (que explicitaremos adiante), as quais têm prevalecido a ponto de todas as iniciativas no sentido de mudar as regras nessa matéria terem sido repelidas, desde a proposta de instituir juizados de instrução feita pelo então ministro da Justiça, Vicente Ráo, em 1935, passando pela elaboração da Constituição de 1988, pela feitura da lei complementar relativa ao Ministério Público, em 1993, até propostas de emendas constitucionais em 1995 e 1999, com o objetivo de dar atribuições investigatórias ao parquet.
Os legisladores constituintes e ordinários sempre rejeitaram a idéia de transformar o Ministério Público em “Grande Inquisidor”, reservando a ele o papel superior de controlador/fiscalizador das investigações policiais. Destarte, o ministro Jobim, que foi parlamentar constituinte, afirma, com a autoridade e a segurança de quem faz a interpretação autêntica, que a mens legis das normas em vigor é, seguramente, na direção de manter as investigações criminais como atribuição exclusiva da polícia judiciária.
II — Breve escorço histórico
Mantendo uma perspectiva histórica da discussão, devemos mencionar que, da parte dos advogados, foi A. Evaristo de Moraes Filho4 um dos que mais cedo manifestou sua preocupação diante do (inconstitucional) fenômeno investigatório do Ministério Público. E ousou fazê-lo em palestra proferida na Escola Superior do Ministério Público da Bahia, em fins de novembro de 1996.
Em setembro daquele mesmo ano, o professor Luiz Alberto Machado,5 titular da UFPR, instado a se manifestar sobre a matéria a pedido da Associação dos Delegados de Polícia de Carreira do estado do Paraná, agindo, por certo, em “prévio conluio espiritual” com Evaristo, também, depois de especial estudo, concluiu que “as polícias civis estaduais e a polícia federal detêm o monopólio constitucional da investigação criminal e, conseqüentemente, do inquérito policial”, por conseguinte, “ao Ministério Público é constitucionalmente defeso investigar e coletar informações, indícios e provas para o processo-crime”.
Naquele trabalho, Evaristo deita por terra o mito criado a respeito da legislação européia, cujo exemplo se quis, canhestramente, seguir, demonstrando que, ressalvando-se a Inglaterra, onde o Ministério Público não investiga diretamente, deixando tal mister à polícia, no continente, prevalece sistema oposto, figurando essa instituição como condutora das investigações preliminares. Porém, não são lá as coisas como atualmente se quer fazer — reproduzimos as palavras de Evaristo:
“Há de ressalvar, porém, que o novo código italiano preocupou-se em estabelecer uma diversificação de funções, ainda na fase preliminar, instituindo a figura do giudice per le indagini preliminari (artigo 328), incumbido de manifestar-se sobre certas questões de natureza probatória, e competente para examinar o pedido de arquivamento, e, sobretudo, para decidir sobre a abertura da ação penal, após uma audiência de caráter contraditório, com possibilidade de colheita de novas provas. A presença deste juiz é a forma de controlar, indiretamente, a atuação do Ministério Público, como que em resposta à famosa indagação de Juvenal: Quis coustodiet ipsos Custodes?
Por fim, ratificando a tendência do séparatisme destacada por Pradel, o diploma peninsular não permite ao juiz que prolatou decisão na fase da audiência preliminar prosseguir funcionando nas etapas ulteriores do processo (artigo 342).”6
Como se vê, ainda que inquisidor no Velho Mundo,7 não resta o pubblico ministero senhor absoluto do procedimento; as provas que colhe na sua atividade investigatória são submetidas a juiz e se estabelece contraditório antes mesmo da instauração do processo, ao contrário do que se vem fazendo em terras patrícias, onde a promotoria instaura procedimento, decide que diligências e inquirições realizar (e as realiza ao seu talante), mantém a defesa técnica ao largo da investigação8 e, ao fim e ao cabo, oferece denúncia com base unicamente nesse inquérito ministerial secreto (por eles batizado de procedimento investigatório ou administrativo criminal, como se o eufemismo fosse capaz de suavizar o escopo precípuo, que é a promoção, às avessas, do inquérito policial), com cores da Inquisição e de Kafka, temperado à moda de ditadura militar nacional, do qual, durante o andamento, a ninguém dá satisfações.
Em síntese: registram, investigam e denunciam, quando, não raro, antecipam, pela imprensa, “sentença penal irrecorrível” proferida em desfavor de quem há de ter preservada a presunção de inocência, como determina a Constituição da República. Neste passo, principalmente no atinente às inescrupulosas, às antiéticas e às sensacionalistas revelações midiatizadas, por vezes fornecidas à sorrelfa (parte do povo e os veículos de comunicação, sempre ávidos por furos de reportagem, são testemunhas vivas do que afirmamos), devemos salientar, em honra à importante instituição e à maioria de seus integrantes, que este procedimento não é por todos adotado, mas, como lembra o ex-procurador-geral da República Aristides Junqueira,9 “eles aparecem mais”, talvez porque, como lança Eduardo Carnelós,10 “a turba gosta”.
Aliás, Eduardo Carnelós, ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo, questiona, acicatando o debate e contrapondo argumentos sofistas no sentido de se admitir até, pasmem, ser o Ministério Público investigador criminal uma “verdadeira parte-imparcial, tanto na atividade pré-processual como no plano do trâmite do processo criminal”11, remata:
“Se os membros do Ministério Público se auto-intitulam defensores do povo, acabam com o devido processo legal, com o contraditório. Afinal, quem é que vai estar contra o povo? Quem vai negar o que é do povo? Como posso eu, como advogado, pretender contrariar o que está sendo dito pelo defensor do povo? Como pode o juiz não atender a pretensão do defensor do povo?
Segundo ele, ‘quando se confere poder de proteção do povo a uma simples instituição, chega-se ao totalitarismo. É preciso repensar os poderes do Ministério Público. Hoje, o cidadão não tem proteção diante do poder do MP. Estamos assistindo à disseminação do abuso e o cidadão está perdendo a possibilidade de invocar a seu favor as garantias constitucionais’, disparou”.
Com efeito, a forma de investigação recém-repelida pela Corte Suprema milita em direção frontalmente oposta à tendência mundial em se preservar, ainda nas palavras de Evaristo de Moraes, o respeito à paridade de armas, o que, por si só, já seria razão suficiente para não se admiti-la. Nesse sentido, Nélio Machado12 destaca que a referida tendência ao equilíbrio de forças se manifesta na Carta Política, a qual estabelece “uma verdadeira simetria, uma absoluta paridade entre as funções da acusação pública e da defesa”. E nos chama a atenção para o fato de os doutrinadores afirmarem, em uníssono, que deve haver igualdade entre as partes — a chamada paridade de armas, repita-se, sempre e sempre —, equilíbrio que se esvairá se uma delas, a acusação, açambarcar atividade investigatória, com poderes inauditos, em desfavor da defesa.
Entretanto, além do nefasto desequilíbrio entre as partes, a arranhar o devido processo legal, há razão outra, das melhores, para que não se admita arremedo de inquérito policial pelo parquet. Ainda Evaristo quem a ressalta.13 Trata-se do risco da parcialidade. Diríamos nós, não há risco; há, sim, parcialidade, aventurando-nos a acrescentar algo ao entendimento do mestre que tanta falta nos faz.
Quem investiga adota, logo no início de seus trabalhos, um determinado ponto de vista (independentemente de qual seja a autoridade investigante),14 uma hipótese provisória (no dizer de Altavilla, apud Evaristo), uma premissa maior, sem a qual nenhuma conclusão advirá. Tal hipótese pode seduzir — e como seduz! — o investigador de tal forma, que o torne indiferente (cego, seria a expressão propícia) a qualquer outra possibilidade, o que seria extremamente danoso se ocorresse com um promotor de Justiça inquisidor e se torna minimizado com a separação de funções preconizada nas normas vigentes.
Aliás, não venham argumentar que isto estaria sepultado com o advento da súmula 234,15 do Superior Tribunal de Justiça, porque esta, embora indesejada em nosso sentir — ideal seria adotarmos o sistema processual que, instituindo o juiz das garantias, vedasse, conseqüentemente, tal possibilidade, pois é natural que o promotor que funcionou na fase pré-processual esteja embevecido por suas “verdades”, ou seja, que a exordial só fosse deduzida, e recebida, depois que houvesse ampla oportunidade para a defesa técnica contraditá-la — não tem qualquer relação com a figura do promotor investigante. A súmula faz menção ao representante do Ministério Público que oficia, no exercício do controle externo das atividades policiais, na fase do inquisitorial, não sendo defeso ofertar denúncia sobre aquilo que foi colhido no caderno policial.
III — Ministério Público investigante: vedação constitucional e infraconstitucional
Pois bem, sem embargo dos bons motivos já elencados para não se acatar a figura do promotor de Justiça investigador, a maior das razões é que, simplesmente, a Constituição da República, tanto como as demais leis, não o permitem. A interpretação dada pelos que afirmam poder o Ministério Público investigar crimes é equivocada, de leitura distorcida. Dizemos isso com apreço aos que não comungam desta hóstia, como, por exemplo, o eminente procurador-geral da República, professor Cláudio Fonteles, os representantes do Ministério Público gaúcho, federal e estadual, respectivamente, professores Luciano Feldens e Lênio Streck, 16 e os professores e membros do órgão ministerial no Rio de Janeiro Sérgio Demoro Hamilton,17 José Muiños Piñeiro18 e Paulo Rangel.19 Isso porque não é possível emprestar interpretação outra que não a sistemática e garantista dos incisos de um artigo de legislação em pleno compasso à sua mens legis.
Forçoso rememorar, neste instante, parte do voto do ministro Jobim, 20 o qual, então parlamentar constituinte, bem se recorda dos bastidores do Congresso Nacional, podendo, quinze anos após a promulgação da Carta de 1988, trazer seu abalizado testemunho no sentido de que:
“Na Assembléia Constituinte (1988), quando se tratou de CONTROLE EXTERNO DA POLÍCIA CIVIL, o processo de instrução presidido pelo MINISTÉRIO PÚBLICO VOLTOU A SER DEBATIDO.
Ao final, manteve-se a tradição.
O Constituinte rejeitou as Emendas 945, 424, 1.025, 2.905, 20.524, 24.266 e 30.513, que, de um modo geral, davam ao MINISTÉRIO PÚBLICO a supervisão, avocação e o acompanhamento da investigação criminal.
A Constituição Federal assegurou as funções de POLÍCIA JUDICIÁRIA e apuração de infrações penais à POLÍCIA CIVIL (CF, artigo 144, 4º)”.
O texto constitucional em tela, por conseguinte, restou assim promulgado, in verbis:
“Artigo 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
(…)
III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;
IV – promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição;
(…)
VI – expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva;
VII – exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;
VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais; (…).”
É impossível ter outra exegese — o parquet promoverá, além da ação penal pública, o inquérito civil e a ação civil pública, podendo expedir notificações para requisitar documentos, no âmbito dos procedimentos administrativos de sua competência, quais sejam, os inquéritos civis públicos e outros (os tais “correlatos”, artigo 38, I, da lei orgânica nº 75/1993, como, por exemplo, os preparatórios de ação de inconstitucionalidade ou de representação por intervenção). Não há como se concluir de maneira diferente, a não ser sofismando. Não pode o parquet, por falta de competência legal, realizar investigação criminal.
Diriam, com paralogismo, principalmente os que não concordam com o nosso pensar, em especial destaque, aqueles que conosco debateram na 149ª Reunião Ordinária do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana21, os representantes do parquet Cláudio Fonteles (procurador-geral da República), José Muiños Piñeiro Filho (ex-procurador-geral de Justiça do Rio de Janeiro) e Luiz Antonio Marrey Filho (procurador-geral de Justiça de São Paulo), que o órgão ministerial não pretende, jamais, usurpar as funções da polícia judiciária, a quem compete presidir, com exclusividade, admitem, os inquéritos policiais (artigo 144, IV, CRFB). Não pretendem, de maneira alguma, gizam, transformar seus gabinetes em burocráticos cartórios policiais, em resumo.
Porém, pretendem, sim, investigar, legitimados pela tal “pseudo-atribuição concorrente/supletiva” à polícia judiciária que supõem ter, como assinalou o professor Fonteles,22 fundamentando seu pensar, dentre outros argumentos (vamos relembrar todos adiante), com o conhecido adágio popular “de quem pode o mais pode o menos” — argumento falacioso, porque, como curial entre os hermeneutas de boa estirpe, não pode ter efetividade contra a lei; em conseqüência, inaplicável ao tema em estudo.23 Dizia Fonteles, a título demonstrativo, que, em tais ou quais crimes24 (como os de corrupção de policiais e de outras autoridades hierarquicamente superiores, derivados de organização criminosa etc.),25 a polícia não possui a independência suficiente para investigar, trazendo à balha para clarificar, a investigação que desencadeou na apelidada “Operação Anaconda”, a qual arrastou às agruras do processo criminal juízes, policiais, advogados, auditores da Receita Federal etc., todos, atestam os noticiários, suspeitos de praticarem crimes contra a administração pública e outros mais.
Ademais, explicitou, ainda, o referido professor26, com o brilhantismo que lhe é peculiar, o fato de o artigo 38, inciso I, da lei complementar nº 75/1993, dispor ser função institucional do Ministério Público instaurar inquérito civil público e outros procedimentos correlatos, não lhes retira a atribuição/competência de promover, estribados na tal “pseudo-atribuição/competência concorrente/supletiva”, investigação de índole criminal. Isto não é verossímil: diferentemente do particular, aos órgãos públicos a competência há de estar prevista em lei.27 Se não estiver, como não está in casu, é porque ele não a possui. Tout court.
IV — Vale a palavra do Ministério Público?
Como o debate ali travado era de tempo restrito, não nos foi possível revelar que, por intermédio de Wladimir Sérgio Reale, delegado de polícia fluminense aposentado e presidente da ADEPOL/RJ, havíamos tido acesso à cópia reprográfica do esclarecedor ofício PRESI nº 31/1992, de Brasília e datado de 6/5/1992, da lavra do então presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, doutor Francisco José Teixeira de Oliveira, dirigido ao também então procurador-geral da República, doutor Aristides Junqueira, o qual, em linhas gerais, informava, ao último, “o resultado das conversações que [havia mantido], acompanhado pelo colega Dr. Amir José Finocchiaro Sarti, com representantes dos Delegados de Polícia Federal, a propósito de Lei Orgânica do Ministério Público da União”, salientando o procurador Oliveira que, porventura merecedor da homologação de Junqueira, a conciliação das posições assumidas permitiriam “o prosseguimento dos trâmites legislativos, afastados, pelo menos, os embargos opostos pelos policiais”. Como se observará adiante, no que pertine à matéria em questão, aquele procurador-geral da República não se opôs, tornando-se lei o ajustado.
Sabemos que, durante a tramitação de leis pelo parlamento, os segmentos representativos da sociedade civil, no exercício salutar da democracia, fazem, de forma aberta, o seu lobby, e, no particular, classistas do Ministério Público e da Polícia Federal (antes, com a participação dos da polícia civil) nunca deixaram de fazê-lo, cada um defendendo, dentro do espírito público que os norteia, os pontos de vista das instituições que integram e representam. Travavam-se, naquela ocasião, discussões sobre o projeto de lei que desaguaria, como desaguou, na Lei Orgânica do Ministério Público da União nº 75/1993 e os policiais temiam, não sem razão, atestamos hoje, que a argumentação do órgão ministerial fosse suficientemente capaz de lhes retirar os exclusivos poderes que lhes foram cometidos pela Carta Cidadã, em relevo, o de presidir o inquérito policial.
É mais uma vez o ministro Nelson Jobim28 quem nos faz rememorar tais conversações:
“(…) o tema voltou a ser discutido quando, em 1993, votava-se no Congresso Nacional a lei complementar relativa ao MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO e ao MINISTÉRIO PÚBLICO DOS ESTADOS, em que havia essa discussão do chamado processo de instrução que pudesse ser gerido pelo MINISTÉRIO PÚBLICO.
Há longa disputa entre o MINISTÉRIO PÚBLICO, a POLÍCIA CIVIL e a POLÍCIA FEDERAL em relação a essa competência exclusiva da polícia de realizar os inquéritos.
Lembro-me que toda essa matéria foi rejeitada, naquele momento, no Legislativo (…)”.
Diante desse impasse, a Associação Nacional dos Procuradores da República, contando com o concurso de “representantes dos delegados de Polícia Federal”, e com o fito de pôr cobro aos conflitos de interesses que vinham “obstaculizando a tramitação da nossa lei no Congresso Nacional, em razão de discordância quanto a diversos dispositivos do projeto, supostamente lesivos aos interesses corporativos da classe policial”, celebrou, com aqueles, um ajustamento, que, na parte que nos aproveita, guarda relação, tão-só, com o acréscimo, no artigo 38, I, daquele projeto legislativo (com o advento da lei, o texto não restou alterado, prevalecendo o acordado), do “termo correlatos (o que limita o alcance do dispositivo ao campo da ação civil pública, como parece ser o alcance real do dispositivo)”. “Correlatos”, então, à ação civil pública, confessam. Portanto, este é, e sempre foi, o espírito da lei. Sem tirar nem pôr. Melhor, posto e interpretado, por ser a única exegese, pelo então presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, em documento oficial, enviado a seu chefe institucional, que com ele concordou.
Demais isto, também municiados pelo delegado aposentado Wladimir Reale, podemos anotar que o citado ajustamento já havia sido celebrado, em 25/11/1992 e entre as mesmas partes — sendo que, desta feita, com a participação expressa de dirigentes de órgãos das polícias estaduais (o termo de acordo, que Wladimir Reale nos encaminhou por cópia, é firmado, sem qualquer ressalva, pelos presidentes da ANPR, da CONDEPOL/Brasil e ADEPOL/DF, da ANDPF, da ADEPOL/RJ — assistida pela autoridade policial aposentada e já referida —, do SINDPESP, da ADPESP, e por membros da SPF/MJ e da PGR, a qual, não é desimportante bradar, ao revés, no ato se fazia representar, nada mais, nada menos do que pelo atual procurador-geral da República, professor Cláudio Fonteles) —, e estava vinculado “tanto à aprovação do texto legal no Senado da República, quanto na Câmara Federal, no que pertine às relações entre o Ministério Público da União e a atividade policial, ficando desde logo desautorizada pelas entidades que subscrevem o presente termo qualquer nova alteração do texto proposto pelo Relator. Sen. Amir Lando, no particular”. É o que se lê do documento, sem rebuços e sem ambages, celebrado quando ainda tramitava o projeto de lei nº 11/1991, que disporia, como ao final dispôs, sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, assegurando, no inciso I do artigo 7º, ser função do Ministério Público, in verbis: “instaurar o inquérito civil e outros procedimentos administrativos correlatos”.
Revista Consultor Jurídico