A primeira sinalização de que há algo de profundamente errado com a lei Maria da Penha vem pela agressão ao princípio da isonomia, mediante o tratamento absurdamente diferente que dispensa a homens e mulheres.
A prática forense demonstra que muito embora a mulher seja a vítima em potencial da violência física, o homem também pode ser alvo de incontáveis ataques de cunho psicológico, emocional e patrimonial no recesso do lar, situações que se condicionam, por óbvio, ao local geográfico, grau de escolaridade, nível social e financeiro que, evidentemente, não são iguais para todos os brasileiros.
A lei, no entanto, ignora toda essa rica gama de nuances e seleciona que só a mulher pode ser vítima de violência física, emocional, psicológica e patrimonial nas relações domésticas e familiares. Além disso, pelas diretrizes da lei, a título de ilustração, a partir de agora o pai que bater em uma filha e for denunciado não terá direito a nenhum benefício, se bater em um filho, entretanto, poderá fazer transação.
A inconstitucionalidade pela diferença de tratamento é tão gritante que dispensa maiores comentários. Mas a inconstitucionalidade, por paradoxal que seja, nem é o maior problema da lei. Isso porque já faz parte da rotina de juízes de direito e promotores de justiça enfrentar as anomalias inconstitucionais que assolam nosso sistema jurídico, em razão da falta de técnica legislativa dos comandos emitidos pelo Congresso Nacional.
Mas o mais grave e mais urgente é a questão da competência, eis que se trata de um problema de ordem prática, sem o qual nenhum processo pode ser recepcionado no sistema. Verifica-se que a lei subverte regras processuais básicas de distribuição de competência que até então eram reguladas, em linhas gerais, pelo critério de elaboração dos grupos de causas.
Antes do advento da lei, por exemplo, os juízes das varas de família julgavam os processos de divórcio, separação e conflitos daí decorrentes, como pensão e guarda de filhos. O juiz titular da vara do júri julgava os homicídios dolosos contra vida, e assim por diante.
A Lei da Violência doméstica e familiar, no entanto, ignora todos esses critérios seculares ao determinar que os tribunais deverão criar varas específicas para a violência doméstica. E estabelece que enquanto essas varas não forem criadas, os juízes criminais deverão acumular competência cível e criminal para os casos da violência doméstica, com prioridade sobre todos os processos, sem excepcionar nem mesmo os de réus presos (art. 33). Não explica como, porém, os juízes criminais poderão julgar ações cíveis.
Ora, diante da multiplicidade das situações enquadradas como ofensivas não há nem como prever quais serão as causas a serem julgadas nessa vara ou pelos juízes criminais porque enfim todo tipo de processo que tramita no fórum pode guardar uma hipótese de violência doméstica ou familiar.
Assim, a prevalecer a falta de critério, o titular da vara da violência doméstica deverá processar causas totalmente díspares entre si como júri, estupro, atentado violento ao pudor, separações e divórcios litigiosos, lesões corporais, ameaça, difamação, e tudo o mais que couber no juízo de valor subjetivo das partes, dos advogados, dos demais juízes que poderão a qualquer momento declinar de sua competência se o tema da violência doméstica aparecer no decorrer do processo e até mesmo do distribuidor do fórum, já que não haverá uma classe predeterminada de ações.
Para que se visualize melhor a proporção do estrago causado nas instituições jurídicas, a determinação é algo tão vago como dizer “a partir de agora os tribunais criarão varas para julgar as causas (qualquer causa) em que as mulheres honestas forem partes”. Depois do apartheid racial, verifica-se que o legislador brasileiro, na contramão da história, conseguiu inovar e criou o apartheid processual.
Com efeito, quer o Congresso que os Tribunais criem varas para julgar as causas (qualquer causa) em que as mulheres ofendidas (por qualquer ofensa) sejam partes. Mas, veja-se que tanto a expressão mulher honesta, exemplo claro do mais puro subjetivismo, como a expressão mulher ofendida, não podem servir como parâmetro de definição de competência.
Esse é um critério que não pode ser aceito, e mesmo que se queira aceitar, na prática, não haverá como ser cumprido. A polêmica não se limita apenas à criação das varas específicas ou alternativamente remessa dos processos aos juízes criminais, porque em primeiro lugar seria preciso saber quais processos ou quais tipos de ação deverão ser contemplados com o deslocamento.
Constatada a ineficácia da lei que, a título de proteger a mulher, gerou uma fonte de nulidade absoluta que só vai ajudar àqueles que buscam impunidade e prescrições, mediante as inevitáveis idas e vindas dos processos que ninguém mais sabe quem deverá julgar, espera-se que os legitimados tomem as medidas para a declaração de inconstitucionalidade e ou para a retificação do critério de distribuição de competência, com a urgência que o caso requer.
Elisabeth Rosa Baisch, Juíza Titular do 4º Juizado Especial de MS