Aplicação da cegueira deliberada requer cuidados na prática forense

Autor:  Victor Augusto Estevam Valente (*)

Embora seja objeto de reflexão na dogmática penal moderna, a cegueira deliberada também é analisada na perspectiva sociológica das relações humanas.

Para Heffernan, a autocolocação a uma situação de cegueira é mais comum do que se imagina, pois, frequentemente, os indivíduos ignoram o óbvio em seu cotidiano, sobretudo nas relações sociais, empresariais e entre advogado e cliente, com a finalidade de se isentarem de certos ônus da vida em coletividade.

Sob o ângulo jurídico, a teoria da cegueira deliberada, também conhecida como teoria do avestruz, ignorância deliberada, cegueira intencional ou provocada, willful blindnessOstrich Instructions ou doutrina da evitação da consciência (Conscious Avoidance Doctrine), teve origem na Inglaterra, no julgamento do caso Regina v. Sleep, de1861.

Desde então, foi acolhida nos Estados Unidos e, seguindo a teoria do delito da “common law”, passou por refinamento doutrinário. Contudo, com a evolução da jurisprudência estadunidense, a cegueira deliberada tornou-se aplicada de várias formas, isto é, conforme as conveniências do caso concreto, deixando de apresentar um fundamento sistêmico pronto e acabado.

Segundo essa teoria, o agente, de modo deliberado, se coloca em situação de ignorância, criando obstáculos, de forma consciente e voluntária, para alcançar um maior grau de certeza acerca da potencial ilicitude de sua conduta. Vale dizer, o infrator provoca o seu desconhecimento acerca do ilícito, de modo que sua ignorância deliberada passa a equivaler-se ao dolo eventual ou, até mesmo, à culpa consciente.

Para Vallès, o sujeito poderia ter obtido determinada informação, porém, por razões diversas, optou por não adquiri-las, mantendo-se, intencionalmente, em estado de incerteza. Por exemplo, cita-se o caso de um dos cônjuges suspeitar que o outro mantem relações extraconjugais, mas decide não investigar por temer eventual confirmação dos fatos.

Os primeiros casos de sua aplicação foram nos crimes de tráfico de drogas e de contrabando, comumente praticados em território norte-americano em épocas passadas. Por exemplo, seguia-se o entendimento de que se “A” paga a “B” para levar uma mala, e “B”, intencionalmente, ignora o conteúdo desta, não importando se nela está guardado um bem ilícito, a exemplo de uma droga, deverá “B” responder criminalmente como se soubesse do conteúdo delituoso.

Essa teoria revelou-se flexível e, ao mesmo tempo, fértil para a determinação da responsabilidade jurídico-penal no sistema consuetudinário, respondendo às necessidades criminológicas.

Paulatinamente, passou a ser invocada na jurisprudência de países do sistema romano-germânico (“civil law”), tais como os latino-americanos e o espanhol. Nota-se, no entanto, que a maioria dos códigos penais não contempla expressamente uma definição de dolo, deixando tal tarefa a cargo da doutrina e da jurisprudência, cuja resposta punitiva varia de caso a caso.

Certo é que, uma vez transportada para o sistema positivista, a cegueira intencional encontra diversos obstáculos dogmáticos, sobretudo na perspectiva da teoria geral do crime consagrada no Código Penal de 1940, a qual prevalece ser de base finalista.

Na Espanha, o Tribunal Supremo, no julgamento da Sentencia de 10 de dezembro de 2000, restringiu-se à simples menção da cegueira deliberada, envolvendo o caso de um crime de receptação, no qual o sentenciado havia transportado significativas quantidades de dinheiro em espécie a um paraíso-fiscal. Alegou o acusado, naquela ocasião, que não tinha conhecimento acerca da origem ilícita do dinheiro, isto é, que era proveniente do tráfico de drogas.

Nada obstante, a Corte Constitucional espanhola firmou o entendimento de que o sentenciado sabia da procedência ilícita do dinheiro, bem como das operações financeiras irregulares, motivo pelo qual ele havia provocado, propositadamente, a própria cegueira, ou seja, não quis saber acerca do que poderia e deveria ter conhecido.

No Direito brasileiro, a jurisprudência passou a considerar a ignorância deliberada equivalente ao dolo eventual, com base no sentido cognitivo-normativo de dolo.

Da forma como proposta, essa teoria fundamenta a punição de quem atua de forma indiferente em relação à ilicitude do fato, assumindo o risco de produzir o resultado mediante “desconhecimento provocado”, pois chega a ignorar fatores determinantes do ilícito, a saber: (i) a origem do produto que porventura transporta, oculta ou adquire; (ii) a origem do dinheiro que aceita no exercício de alguma atividade profissional, entregando-o como contraprestação de determinado bem ou serviço; e (iii) o transporte de certo pacote ou mercadoria para o agente que apresenta atitude suspeita, tendo em vista a vantagem a ser obtida em razão de tal transporte.

Segundo esse entendimento, o elemento subjetivo não é aferido a partir da consciência ou vontade do agente (teoria da vontade), mas de elementos peculiares do dolo eventual, sobretudo da análise das circunstâncias do evento delituoso, com base na teoria do assentimento ou da anuência (artigo 18, inc. I, parte final, do CP).

Invocando Asúa, adverte Cláudio Brandão que “a teoria do dolo eventual requer do julgador um exame de representações e dos motivos que atuaram no psiquismo do sujeito, obrigando o intérprete e aplicador do Direito a investigar os mais escondidos elementos da alma humana”.

Segundo os adeptos da cegueira provocada, deve ser estabelecida uma relação entre o direito penal e o direito constitucional, lançando-se mão de um suposto “princípio da proporcionalidade”, por meio das seguintes etapas: (i) a teoria não será aplicada aos crimes de menor potencialidade lesiva; (ii) deve ser determinado, a partir das circunstâncias do evento delituoso, se tinha o agente condições ou meios de ter conhecimento acerca do caráter antijurídico de sua conduta e que, em razão disso, agiu deliberadamente para dificultar seu próprio entendimento; e (iii) deve o bem jurídico ser penalmente tutelado, guardando pertinência com a ordem constitucional, máxime com os princípios da intervenção mínima e da fragmentariedade.

Por exemplo, é comum que, em se tratando de lavagem de capitais, o autor, fingindo desconhecimento, coloca-se em situação de ignorância acerca dos bens, direitos e valores provenientes, direta ou indiretamente, da infração penal antecedente (crime periférico), a fim de se elidir da responsabilidade criminal e não responder pelo crime capitulado no artigo 1º da Lei 9.613/1998, com alteração trazida pela Lei 12.683/2012.

E, aplicando a cegueira deliberada, o agente poderia responder por lavagem de capitais nesse caso, pois teria assumido o risco de receber o dinheiro proveniente do crime antecedente, ainda que se colocando em situação de ignorância acerca da procedência ilícita do bem.

Já em outro caso de lavagem de dinheiro, imagine que o agente disponibilizasse sua conta corrente, por determinadas vezes, a um agente político e de quem é assessor, a fim de que tivesse condições de receber valores decorrentes de um suposto esquema criminoso em uma empresa. É possível que, em sua defesa, alegasse o agente o desconhecimento acerca dos detalhes do plano delituoso.

De todo caso, o fato de ter ele recebido depósitos em sua conta bancária, sem origem identificada ou comprovada, é suficiente para que tivesse desconfiado da origem ilícita dos próprios recursos, incidindo na prática delitiva.

Outro exemplo: suponha que uma pessoa se dirija a uma loja de veículos com uma mala de dinheiros em espécie, com a intenção de comprar um dos carros ali expostos à venda. Em caso de concretização da venda do automóvel, o vendedor pode ser punido a título de dolo eventual, tendo em vista que deixou de tomar ciência acerca da procedência daquele dinheiro que, pelo que tudo leva a crer, era produto de crime.

E, para os seus asseclas, a cegueira deliberada é compatível com novos fundamentos do processo penal, máxime com a teoria da abdução das provas, que admite, além das provas diretas, as provas indiciárias para determinação da materialidade delitiva, tal como ocorre nos crimes licitatórios, de lavagem de capitais, de formação de cartéis e de corrupção passiva e ativa.

De se ver que a cegueira deliberada já foi aplicada para fundamentar a responsabilidade por atos de improbidade administrativa, previstos nos artigo 9º, 10 e 11 da Lei 8.429/1992. Prevalece que esses ilícitos são de natureza civil-administrativa, embora a sanção correlata tenha natureza penal, por força dos efeitos prodrômicos dos atos administrativos.

E, se assim já reconhecida, há certa margem de aplicação no âmbito do direito administrativo sancionador, como nos casos da Lei Antitruste (Lei 12.529/2011), da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), e da Medida Provisória 784/2017, a qual dispõe sobre as infrações administrativas no âmbito do sistema financeiro e do mercado de capitais.

Entendemos, no entanto, que a aplicação dessa teoria requer cuidados na prática forense, devendo ser afastada qualquer hermenêutica diletante ou de ocasião, sob o risco de “improbidade epistêmica” e normatização judicial descabida, com afronta ao princípio da legalidade e demais garantias penais conquistadas à luz do Estado de Direito.

Antes de qualquer incidência, deve a cegueira deliberada ser objeto de desconstrução doutrinária, para determinar se é ela compatível ou não com a teoria final da ação, sobretudo com os conceitos de dolo eventual ou de culpa consciente, rechaçando qualquer responsabilidade objetiva nesse viés

Primeiramente, há controvérsias sobre os limites entre o dolo eventual e a culpa consciente. A própria cegueira deliberada e o dolo eventual podem ser aplicados nos casos em que também é possível a configuração de crime culposo, como na situação em que o agente, violando o seu dever (objetivo) de cuidado imposto por lei, deixa de tomar as cautelas necessárias e, consequentemente, produz um resultado involuntário.

Por exemplo, imagine que um sócio-proprietário, desconhecendo questões tributárias de sua empresa, confie a determinado contador, sem qualquer histórico profissional maculado, o planejamento orçamentário, vindo o contador a praticar manobras ilícitas e, assim, a suprimir ou reduzir tributos (artigo 1º da Lei 4.729/1965). Neste caso, poderá o sócio-proprietário alegar que agiu por culpa, e não com dolo eventual, pois, por mero descuido, confiou o departamento a quem não devia.

Nesse sentido, há de se ter cautela em considerar o dolo eventual em todos os crimes econômicos, sob o risco de haver uma excessiva imputação criminosa no âmbito da ampla estrutura empresarial, podendo travar a economia por meio de um direito penal máximo e simbólico.

Mas não é só. Para parcela da doutrina, a cegueira deliberada é uma ampliação da “actio libera in causa”, perfazendo um modelo de responsabilidade objetiva à luz do direito penal do autor, pois o agente que recebe, adquire ou oculta o bem atuaria sem consciência e vontade para a prática delituosa.

Complementa Regis Prado que essa teoria é um “elemento estranho” que gera risco à segurança jurídica e à legalidade penal. Complementa: “Isso porque é absolutamente impositivo ter-se em conta que o ordenamento jurídico brasileiro está assentado sobre o princípio da responsabilidade penal subjetiva, de previsão legal expressa (artigo 18, CP), sem nenhuma espécie de substitutivo, distorção ou menoscabo. Neste último caso, sua aplicação dá lugar a uma normativização judicial indevida, e ao arrepio da Constituição (artigo 5º, XXXIX, CF)”.

Ademais disso, essa teoria avilta os princípios da lesividade e da ofensividade, eis que tais vedam a criminalização de condutas meramente morais ou inadequadas socialmente.

Por fim, ninguém que cumpre seu papel social pode ser punido por adquirir ou portar um objeto de ilicitude por ele desconhecida, havendo espaço para os princípios da adequação social e da intervenção mínima (“ultima ratio legis”).

Acrescenta Vallès que, no sistema continental de imputação subjetiva, essa teoria é uma fissura que ameaça a solidez das bases liberais.

E, assim como discutido no direito espanhol, a única saída para o aperfeiçoamento dessa teoria seria, a nosso sentir, refundar as bases do sistema de imputação subjetiva, definindo os contornos do dolo e da culpa e, por conseguinte, tornando-se possível o reconhecimento de outras modalidades daquela imputação.

Portanto, a hermenêutica penal não deve se restringir, por ora, à mera menção ou construção da cegueira deliberada, mas deve se voltar à sua desconstrução à luz do direito penal liberal, sob pena de “improbidade epistêmica” e de um desmesurado ativismo judicial.

 

 

 

Autor:  Victor Augusto Estevam Valente   é advogado, mestre em Direito Penal pela PUC-SP, professor em Direito Penal da PUC-Campinas.


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