Por Kátia Rubinstein Tavares
No dia 22 de setembro de 2006, entrou em vigor o Diploma Legal 11.340, que trata da criação de mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, prevendo até pena de prisão ao agressor em casos graves. Ela foi batizada como Lei Maria da Penha em homenagem à cearense que se tornou símbolo da luta contra a violência doméstica no país
A referida legislação, respaldada por forte movimento de defesa dos direitos humanos femininos, resultou da necessidade de se repensar as relações de gênero, construída sobre uma cultura secular de dominação machista, cuja perversa marca tem sido a prática da violência doméstica. O tratamento diferenciado conferido à mulher fundou-se no reconhecimento de que ainda permanece uma subordinação socioeconômica e cultural na sua relação afetiva e familiar com o homem. A tomada de consciência desta desigualdade justificou a criação de políticas públicas destinadas a superar o traço discriminatório de gênero existente, em favor da efetividade na aplicação dos princípios constitucionais, mediante a construção de um regramento específico, que tutelasse a relação afetiva e familiar e fosse pautado pela semelhança da dignidade entre homens e mulheres.
O compromisso do Estado brasileiro de atuar na proteção dos direitos fundamentais das mulheres vem previsto no artigo 226, parágrafo 8º da Constituição Federal. O dispositivo estabelece a assistência à família, além de mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. No plano internacional, o Brasil é signatário desde 1996 da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida também como Convenção de Belém do Pará. Por meio dela, o país concordou em acabar com a violência doméstica no país.
A violência cometida contra a mulher não distingue idade, condição financeira, nível de instrução, etnia e religião. Suas manifestações são variadas, resultando algumas de origens culturais. Ainda que tais atos de violência aconteçam nas relações da vida social, seja pública – como assédio moral e sexual – ou privada – como é o caso da violência doméstica –, as práticas que demonstram maior visibilidade são aquelas ocorridas clandestinamente dentro dos lares. A violência doméstica é uma realidade perversa que afeta, além das mulheres, os idosos e as crianças em desenvolvimento, comprometendo o exercício da cidadania.
Enfrentar o tema da violência doméstica implica em abordar a questão de como o sofrimento é disseminado no ambiente onde ela domina. No aspecto legal, essa violência significa usar a força física ou intelectual pelo agressor para obrigar a mulher, na convivência de uma relação afetiva e estável, com ou sem vínculo familiar, independente de coabitação, a fazer algo contra sua vontade, ameaçando-a, causando-lhe dano moral, patrimonial, ou ofendendo sua integridade física, sexual, psicológica, podendo ocasionar até a morte. Por isso, a violência doméstica foi erigida ao patamar de grave violação dos direitos humanos.
Entretanto, não se pode estender genericamente a aplicação da Lei 11.340/2006 a todas as hipóteses de violência contra o sexo feminino. Discute-se a interpretação dada pela Juíza Titular do 3º Juizado de Violência Doméstica do Rio de Janeiro, Ana Paula Delduque Migueis Laviola de Freitas, que negou à Elisa Samudio, atualmente desaparecida, as medidas de proteção previstas na mencionada legislação, cujo agressor seria Bruno, goleiro do Flamengo, “sob pena de banalizar a finalidade da Lei Maria da Penha”. Na verdade, o entendimento da magistrada fundamentou-se no fato de que sequer havia o requisito principal: o vínculo afetivo e estável entre Bruno e Elisa. Não se exigiu, conforme sustentam alguns, equivocadamente, Certidão de Casamento ou Reconhecimento de União Estável, a fim de que fosse aplicada a Lei Maria da Penha. Logo, é indispensável para apreensão do contexto legal que exista necessariamente entre o homem e a mulher uma relação afetiva e estável, excluindo-se os encontros eventuais ou estritamente ocorridos no âmbito sexual, segundo teria sido noticiado pela vítima, como também a hipótese de prostituição. Com acerto foi encaminhada a causa para uma das Varas Criminais da cidade, por se tratar de crimes já previstos no próprio Código Penal Brasileiro, inviabilizando, portanto, a incidência da Lei Maria da Penha.
Kátia Rubinstein Tavares é advogada e diretora da Sociedade dos Advogados Criminais do Estado do Rio de Janeiro (Sacerj).