Aplicação da pena

Luiz Vicente Cernicchiaro

A aplicação da pena é instituto tradicional, integrante de todos os textos penais. Resulta de dois princípios constitucionais: a) legalidade (não há crime sem lei que o defina, nem pena sem a devida cominação legal); b) individualização da pena. O primeiro visa garantir o direito da liberdade, enquanto o segundo busca realizar o fim da pena, definida no Código Penal brasileiro ‘‘conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime’’ (art. 59).

Observa-se, com facilidade, que a sanção penal encerra ideologia e mensagem. Tem finalidade e busca comunicação com o condenado a fim de extrair efeito de interesse público e individual.

O tema pode ser analisado, como, aliás, todos os institutos jurídicos, em dois planos, coordenados, é certo, todavia, bem identificados. Poder-se-ia limitar o estudo à técnica de aplicação da pena, partindo-se do dispositivo básico, vale dizer, o art. 68; fixa o procedimento a ser observado pelo juiz, prosseguindo-se com o art. 59, que orienta o magistrado, considerando o geral, a seguir o particular, a fim de fixar a pena dentre as cominadas, estabelecer a quantidade aplicável, dentro dos limites previstos, estabelecer o regime inicial de cumprimento da pena, ou promover a substituição da pena privativa de liberdade aplicada por outra espécie de pena, se cabível.

Trabalho, fundamentalmente, dogmático, de real importância, em alguns pontos, de jurisprudência divergente. Todavia, costumo dizer, os artigos mencionados constituem a grande janela do Direito Penal para o mundo. A individualização da pena, quando o labor do juiz não for meramente burocrático, é o grande roteiro para a sanção penal ser aplicada materialmente, ou seja, não se reduzir o mero cálculo, mais do que tudo satisfação formal do magistrado para encerrar sentença condenatória.

Prefiro outro aspecto. Encarar a aplicação da pena como operação de realização do Direito. Ninguém discorda, há profunda distinção entre a lei e o Direito.

Para orientar minha posição, tomo a Lei como norma jurídica de extensão limitada. O Direito, ao contrário, sistema de princípios que orientam e vinculam as normas jurídicas, incluindo, portanto, também a lei.

A lei desvinculada dos princípios enseja raciocínio formal, vazio de conteúdo. Nessa linha colocam-se a escola da Exegese e a orientação técnica jurídica, esta conhecida pela afirmação de Rocco de que a Filosofia deveria ser deixada para os filósofos e a Sociologia para os sociólogos, devendo o jurista preocupar-se somente com a norma jurídica.

Essas colocações, próprias do positivismo ortodoxo, durante muito tempo vigoram nas faculdades. Daí, até há pouco tempo, ouvir-se afirmações como esta:

‘‘O legislador faz a lei; o magistrado aplica a lei’’. Se a lei for injusta, dizia o magistrado, devo aplicá-la, até que o legislador a modifique, ou : ‘‘A lei é injusta, mas aplico a lei!’’

As conclusões da Criminologia moderna, o reconhecimento da Política Criminal, estão mudando esse modo de pensar.

O Direito vai ganhando nova concepção. O Direito está deixando de ser concebido como fim, para ser recepcionado como meio. Meio para concretizar valores. A decisão judicial não é neutra: é axiológica, teleologicamente orientada. O juiz, então, está deixando de ser o ‘‘aplicador da lei’’, para ser o crítico da lei.

O juiz, na sua grandeza institucional, é, na verdade, um agente político. Como tal, atua na realidade social. É, por isso, insista-se, o crítico da lei.

Cumpre, para bem delimitar o parâmetro, esclarecer: a atividade do Legislativo não se confunde com o trabalho do Judiciário. O primeiro elabora as leis. O segundo aplica essa leis. Todavia, e aqui há importante registro, tomando-a como expressão do Direito. O Direito, como valor não é feito pelo legislador. O legislador, integrante da sociedade, com sensibilidade, elabora as normas, e o magistrado, também no contexto social, faz a crítica do Direito em função do caso concreto. E aplica as normas que respondam ao contexto axiológico que nasce e se impõe na sociedade. Muitas vezes, essa sociedade ganha extensão internacional, como acontece com os Direitos Humanos.

Hoje, não se pode desenvolver nenhum raciocínio jurídico desprezando a Declaração dos Direitos Humanos e, ainda mais próximo de nós, o Pacto de San José de Costa Rica, subscrito pelo Brasil e formalizado pela Câmara dos Deputados.

O juiz, assim, insista-se, agente político, assume importante papel, notadamente no campo penal, onde se encontram as sanções jurídicas mais severas.

Aplicação da pena é síntese. Encerra conhecimento e tomada de posição quanto ao sentido material da sanção penal.

Análise da doutrina e da jurisprudência revela que o instituto ‘‘aplicação da pena’’ está sendo analisado parcialmente.

A infração penal, como norma, evidencia preceito e sanção, unidos logicamente. Só esse plano poder-se-á falar que a pena é conseqüência do crime. De qualquer modo, bem identificados. O primeiro faz conhecer a conduta proibida, o delito. O segundo, a sanção.

A aplicação da pena deve encerrar a integralidade do instituto. Insista-se: a infração penal e a pena. Cumpre levar em conta a teoria da infração penal e a teoria da pena. Não é isso, entretanto, o que vem ocorrendo.

O magistrado, de um modo geral, leva em conta somente o primeiro aspecto, ou seja, a infração penal. Tanto procede que o raciocínio do juiz se concentra, fundamentalmente, se restringe a analisar a conduta e o resultado. Hipóteses mais profundas incluem também a análise do sujeito ativo.

A pena, ao contrário, resulta como simples relação de causalidade material, ou seja, adaptá-la à espécie e aos limites da cominação.

Aqui, reside ponto importante; a doutrina, impulsionada pela Criminologia e a Política Criminal, vem dando realce ao fato. A pena precisa traduzir, além da reprovação, a prevenção.

Anabela Miranda Rodrigues, in ‘‘A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade’’, confere especial preocupação ao fato. Invoca o disposto no art. 72,1 do Código Penal Português, ao mencionar que o juiz deve medir a pena em função das ‘‘exigências de prevenção de futuros crimes’’ (p. 671).

Cumpre, então, conferir amplo poder discricionário ao juiz, como agente político; autorizado, por isso, a indagar sobre a necessidade da pena.

A aplicação da pena — dentre os limites da cominação — é a regra geral. Os casos concretos podem ensejar características que os retiram dos limites dessas normas. ‘‘Individualizar’’, como está na Constituição, é ajustar a norma ao fato. Do geral partir para o individual.

Daí ser possível a fixação da pena abaixo do mínimo legal, ou mesmo a sua dispensa.

Dir-se-á que a conclusão é contra legem. Respondo: se assim o é, ajusta-se, entretanto, ao Direito. É secundum ius.

Sinto-me confortado com esta conclusão, aparentemente ilegal, ousada, ou mesmo temerária, com precedente do Supremo Tribunal Federal: se o Judiciário pode corrigir, ou ajustar a cominação da pena, por que não lhe será possível ajustar a regra geral ao caso concreto que evidencie circunstâncias autorizadoras de tratamento especial?

O juiz não pode olvidar a realidade social. Ninguém contesta, dada a evidência, haver evidente contraste, descompasso entre o normativo e a realidade social quanto à aplicação da pena e à execução da pena, entre a teleologia da norma e a situação dos estabelecimentos penais. Aliás, todos sabem, a reforma do Código Penal de 1984 foi motivada pela crise do sistema penitenciário.

Em se considerando a pretendida prevenção individual, a colocação do condenado em ambiente que levará a resultado inverso, não se faz necessário o juiz conferir o tratamento adequado? Ainda que o seja provisoriamente, até que o Estado implemente as condições para a execução da pena?

O juiz precisa trazer a solução alternativa. Só assim a aplicação da pena atenderá aos dois objetivos mencionados no art. 59 do Código Penal: reprovação e prevenção.

Luiz Vicente Cernicchiaro
Ministro do Superior Tribunal de Justiça e
professor titular da Universidade de Brasília

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