Aplicação da pena

A aplicação da pena é instituto tradicional, integrante de todos os textos legais. Aliás, entre nós, a infração penal se identifica pela sanção cominada. Fazem-se presentes o princípio da legalidade (não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem a devida cominação legal) e o princípio da individualização. O primeiro visa a garantir o direito de liberdade, enquanto o segundo busca realizar o fim da pena, definida no Código Penal Brasileiro ‘‘conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime’’ (art. 59).

A sanção penal encerra ideologia e mensagem. Tem finalidade e busca comunicação com o condenado a fim de extrair efeito de interesse público e individual.

Poder-se-á analisar o tema em dois planos, coordenados, é certo, todavia, bem identificados. Em primeiro lugar, restringir o estudo à técnica de aplicação, circunscrito ao art. 68 que fixa o procedimento (trifásico) a ser obedecido pelo juiz, prosseguindo com o art. 59, que orienta o magistrado, partindo do geral para o particular, a fim de fixar a pena dentre as cominadas, estabelecer a quantidade aplicável, dentro dos limites previstos, estabelecer o regime inicial de cumprimento da pena, ou promover a substituição da pena privativa de liberdade aplicada rectius — pena privativa do exercício do direito de liberdade), por outra espécie de pena, se cabível.

Esse trabalho, fundamentalmente dogmático, de real importância, em alguns pontos a jurisprudência, ainda hoje, se mostra divergente.

A individualização da pena, quando o labor do juiz não for meramente burocrático, é o grande roteiro para a sanção ser aplicada materialmente, sem reduzir-se a simples cálculo, mais do que tudo, satisfação formal do magistrado para encerrar a sentença condenatória.

A individualização não se restringe (infelizmente, de um modo geral, não é o que acontece entre nós) a simples cálculo aritmético. E mais do que isso. A operação é parcial, não esgota a extensão do instituto.

Viu-se, encerra dois institutos: fixação do quantum e definição da espécie de pena. O juiz desenvolve o raciocínio no âmbito da Teoria do Delito (tantas vezes com profundidade), entretanto, não leva em consideração (tantas vezes) o sentido, a repercussão que a sanção trará ao caso concreto (Teoria Geral da Pena). Cumpre, antes de mais nada, não se esqueça, a pena se volta para uma finalidade. Repita-se: reprovação e prevenção do crime. No caso concreto, reprovar o condenado e prevenir para não retomar à prática do delito.

O juiz não é simples aplicador da lei, como se fosse mero carimbo do legislador. Deve raciocinar com a lei, sim, todavia, em função do Direito. O juiz como agente político deve fazer a crítica da lei a fim de ajustá-la ao Direito.

No espaço de um artigo, não é possível consideração exaustiva, entretanto, impõe-se considerar que o Direito não se esgota na norma; faz-se presente também o fato, o acontecimento histórico. Impõe-se, por isso, esta pergunta: a pena cominada alcança a finalidade posta no Código Penal? A prevenção, considerada a realidade dos presídios, será efetivada? Em sendo negativa a resposta, legítima a atitude do magistrado que escolha, pelas características do caso concreto, outra sanção, pelo menos, temporariamente, enquanto a solução legal não se evidenciar eficaz. No contexto atual, os estabelecimentos prisionais dificultam a realização do fim da pena, quanto ao sentido didático para impedir a reincidência. O juiz (insista-se, agente político) precisa eleger a solução, que, além de legal, tenha também legitimidade.

Sabe-se, não há dois crimes iguais. Um homicídio não é idêntico a outro. A morte causada eventualmente, por reunião ocasional e certos fatores, não se confunde com a eliminação de pessoa, realizada por grupos de extermínio. Constituem situações jurídicas diferentes. O tratamento normativo não poderá ser igual.

Antecipo resposta a uma objeção. Ter-se-á criado o regime do arbítrio, da ditadura do magistrado, da insegurança, do desrespeito à lei.

Estas idéias estão expostas em trabalho mais alentado. Examino aspectos não mencionados. Respondo, porém, buscando acalmar quem pense tratar-se de anarquia jurídica.

Na decisão judicial há sem dúvida forte carga da personalidade do magistrado. Grandezas e frustrações se fazem presentes. Tomo, insisto, o juiz como agente de poder. Não pode fazer como o avestruz, esconder a cabeça para não ver a realidade. Cumpre-lhe realizar o direito (após a crítica da lei). Entender que o sistema penitenciário tem condições de prevenir a criminalidade é absurdo. O juiz deve selecionar, distinguir hipóteses para conferir a resposta adequada a cada uma.

Se o Estado ainda não implantou os estabelecimentos adequados para recepcionar os condenados, conforme o regime inicial de cumprimento da pena, nenhuma heresia fornecer solução provisória (adequada ao caso concreto) até a lei de execução da pena, como se diz, sair do papel!

A magistratura precisa tomar consciência de seu papel institucional.

A realidade presente tem servido para incentivar a corrupção, deixando, por isso, de serem cumpridos mandados de prisão. E o que é mais grave, intolerável nos quadrantes do Direito justo: impor o regime fechado a quem foi condenado a cumprir a pena em regime semi-aberto, ou aberto! Relembre-se o disposto no art. 38 do Código Penal: ‘‘O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral’’.

* Luiz Vicente Cernicchiaro
Ministro do Superior Tribunal de Justiça e Professor titular da Universidade de Brasília

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