Autor: Flávio de Freitas Gouvêa Neto (*)
Recentemente a lei brasileira de arbitragem foi alterada. Entre os vetos presidenciais estão dois parágrafos aplicáveis a matérias relacionadas ao direito do consumidor. A arbitragem segue crescendo e apesar de sua aplicabilidade em algumas áreas ainda ser controversa é um debate interessante saberem que áreas a arbitragem pode ser aplicada e até que ponto as limitações legais podem ser benéficas para o aperfeiçoamento e desenvolvimento da arbitragem no Brasil.
Na Espanha faz muitos anos foi criado um sistema arbitral de consumo, atualmente regulado pelo Real Decreto 231/2008 (RDAC), que estabelece o funcionamento do Sistema Arbitral de Consumo espanhol. Foi um dos primeiros países do mundo que estabeleceu um sistema arbitral destinado a resolver unicamente as reclamações de consumidores contra empresas, ainda no ano de 1993. Segundo dados de uma pesquisa do The European Consumer Center Network, o principal instrumento extrajudicial de resolução de conflitos na Espanha é a arbitragem em questões de consumo.
Os números comprovam que a arbitragem de consumo já é amplamente utilizada na Espanha. Segundo dados estatísticos obtidos no Instituto Nacional de Consumo, no ano de 2013 o sistema arbitral de consumo espanhol recebeu 122.361 reclamações. Desse total, 65.124 conflitos foram resolvidos através de um laudo arbitral, 22.237 com um acordo em mediação e 16.930 arquivados sem resolução. Comparado aos anos anteriores, o número de reclamações vem crescendo e o sistema tem se mostrado viável para responder às necessidades de empresários e consumidores espanhóis.[1]
Diferente do Brasil, a Espanha não possui um procedimento simplificado em conflitos cuja repercussão econômica é baixa, tal como o nosso procedimento dos juizados especiais cíveis, feito que impossibilitava e dificultava o acesso á justiça dos consumidores. Talvez a inexistência de um procedimento judicial simplificado tenha impulsionado a busca por uma alternativa para a solução dos conflitos entre consumidores e empresários.
O sistema arbitral espanhol é considerado institucional pois é organizado, financiado e mantido pela administração pública. Ele existe em três âmbitos, o nacional, das comunidades e dos municípios, e cada ente pode organiza-lo da forma que achar melhor, desde que respeitados os ditames da legislação sobre o tema. Não existe uma competência especifica para cada uma das juntas e o consumidor pode escolher aquela que achar mais conveniente. Mesmo sendo um órgão da administração publica não pode ser considerado um tribunal administrativo já que seu funcionamento é de acordo com os princípios e características de um órgão arbitral.
O sistema se destina a decidir conflitos que tenham como parte um consumidor e um empresário ou profissional.Os conflitos que podem ser objeto da arbitragem de consumo são os que versem sobre matérias de livre disposição para as partes, com exceção dos conflitos que envolvam intoxicação, lesão ou morte de alguma pessoa, e quando existam indícios de algum crime, incluída a responsabilidade por danos e prejuízos diretamente derivado de estes.
A adesão do empresário ao sistema é voluntaria, assim como a anuência das partes em participar do processo. O sistema é considerado unidirecional porque só conhece reclamações do consumidor contra o empresário ou profissional. A possibilidade de os empresários aderirem ao sistema arbitral de consumo é uma inciativa muito interessante. Os interessados podem se inscrever à oferta de adesão ao sistema e um dos benefícios é a possibilidade de o empresário utilizar um selo que informa aos consumidores que eventuais conflitos podem ser resolvidos de uma forma eficaz e rápida pela arbitragem. Isso também pode representar sem um diferencial do empresário ante a sua concorrência.
A decisão do órgão arbitral é de caráter vinculante para as partes, ou seja, tem a mesma força de uma sentença judicial. As decisões podem ser baseadas na equidade ou direito. No sistema arbitral da prefeitura de Madrid, por exemplo, o órgão arbitral decide os conflitos com base na equidade e é composto por três árbitros, sendo um deles representante da administração pública, um de uma associação empresarial e outro de uma associação de proteção dos consumidores.A presença de árbitros de diferentes setores contribui para a independência e imparcialidade do órgão. O sistema arbitral nesses moldes é bem diferente do que algumas agências reguladoras brasileiras estavam instituindo, com árbitros indicados pelas associações de empresários, sem representantes das associações de consumo, fato que sem dúvida compromete a independência e imparcialidade do órgão arbitral.
O processo também é gratuito para as partes, o que torna muito atrativo para consumidores e empresários buscarem uma solução para seus conflitos através deste sistema, ainda mais se tratando conflitos de consumo que em muitos casos tem um valor econômico baixo e isso desencoraja o consumidor a lutar por seus direitos através de um processo judicial tradicional mais custoso.
Outra característica muito importante do sistema arbitral de consumo da Espanha é que ele é de natureza institucional, ou seja, é o Estado que presta o serviço, o que garante a independência dos árbitros e transparência do sistema, já que não é custeado por empresários ou advogados dos empresários, e isso reforça a confiança do consumidor no sistema.
Em resumo, o procedimento arbitral nas juntas é o seguinte. O consumidor faz a reclamação por meio de um formulário nas oficinas do consumidor da administração ou por meio eletrônico, a junta arbitral faz uma análise se a reclamação cumpre os requisitos formais, se é um caso dentro de sua competência, se cumpre os requisitos positivos e negativos, assim como a validade do convenio arbitral se for o caso. Se o caso cumpre os pressupostos e requisitos a junta arbitral notifica as partes e designa o órgão arbitral que vai ser responsável por analisar e decidir o caso. Depois começa a fase de mediação prévia e se as partes não chegam em um acordo são citadas para a audiência. Nela as partes podem se manifestar por escrito ou oralmente e são apresentadas as alegações e as provas relacionadas com o caso. O procedimento finaliza com o laudo arbitral ditado pelo órgão arbitral. Tudo isso pode ser feito em 30 dias e as partes já tem um resultado definitivo para o seu conflito.
Na recente reforma de lei de arbitragem brasileira, foram vetados dois parágrafos que reformariam o artigo 4º, que se relacionavam com a arbitragem nos contratos de consumo e de adesão. A redação proposta foi a seguinte: § 2º Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se for redigida em negrito ou em documento apartado. § 3º Na relação de consumo estabelecida por meio de contrato de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar expressamente com a sua instituição.
Os motivos alegados para o veto foram queda forma prevista, os dispositivos alterariam as regras para arbitragem em contrato de adesão. Comisso, autorizariam, de forma ampla, a arbitragem nas relações de consumo, sem deixar claro que a manifestação de vontade do consumidor deva se dar também no momento posterior ao surgimento de eventual controvérsia e não apenas no momento inicial da assinatura do contrato. Em decorrência das garantias próprias do direito do consumidor, tal ampliação do espaço da arbitragem, sem os devidos recortes, poderia significar um retrocesso e ofensa ao princípio norteador de proteção do consumidor.[2]
A possibilidade de estabelecer a arbitragem em contratos de adesão é uma questão muito importante. Ao longo de anos da experiência espanhola no tema, os autores relatam que começaram a aparecer contratos de adesão que estabeleciam cláusula de submissão de algum conflito decorrente da contratação à arbitragem, mas fora do sistema institucional, para tribunais privados de arbitragem, muitos dos quais não respeitavam os princípios da arbitragem, em especial a independência dos árbitros. Os tribunais então começaram a declarar nulidade destas cláusulas. Em síntese, as razoes para isso foram a falta de manifestação da vontade do consumidor, que isso configura a contravenção de uma norma imperativa que garante o acesso à justiça ao consumidor e a renúncia antecipada do consumidor a seus direitos, que vulnera o direito fundamental à tutela judicial efetiva eque também impede que o consumidor tenha acesso ao sistema arbitral de consumo institucional[3].
Portanto, para que a arbitragem em conflitos de consumo possa tornar-se uma realidade é necessário que a opção do consumidor por participar do processo seja feita de uma forma consentida e expressa. Mesmo que os contratos de adesão estabeleçam a submissão do conflito à arbitragem, o consumidor deve ter a liberdade de escolher se deseja participar ou não. Isso é uma forma também de respeitar a voluntariedade, que é um dos princípios aplicáveis aos métodos denominados alternativos de resolução de conflitos.Ao contrário do que afirma a mensagem do veto, o artigo vetado na forma que estava previsto se adequava a isto, já que exigia a manifestação por expresso do consumidor em participar de um processo de arbitragem[4].
Outro ponto importante dentro deste debate é como garantir a independência das instituições de arbitragens privadas. As normativas europeias que regulam as instituições de resolução alterativa de conflitos de consumo, estabelecem diversas normas que tem como objetivo garantir a independência dos árbitros. A Diretiva 2013/11/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de maio de 2013, sobre a resolução alternativa de litígios em matéria de consumo, por exemplo, estabelece que os árbitros serão nomeados para um mandato com duração suficiente para garantir sua independência e não podem ser retirados sem justa causa, também não podem receber instruções direta de nenhuma das partes ou de seus representantes e a sua remuneração não pode ter relação com o resultado das arbitragens que participa.
A arbitragem é uma forma muito rápida, barata e eficaz de resolver conflitos em relações de consumo, mesmo comparado à um procedimento judicial mais simplificado, como por exemplo os procedimentos dos juizados especiais cíveis brasileiros. Uma alternativa para implantar um sistema no Brasil parecido como o descrito neste artigo poderia ser através dos PROCONs ou agências reguladoras, e por ser uma arbitragem institucional, poderia garantir a independência dos árbitros, grande temor dos especialistas quando debatem o assunto.
De fato, no Brasil muitas das reclamações de consumo que terminam nos juizados especiais passaram pelo PROCON e as agências reguladoras e um sistema mais efetivo nesta fase inicial da reclamação, com a adoção de um procedimento de arbitragem conduzido por um órgão institucional e independente, composto por representantes da administração, dos empresários e dos consumidores, poderia contribuir para a diminuição dos processos judiciais em nossos tribunais.
Outro caminho que vislumbro é a adoção de normas mais rígidas aos tribunais arbitrais privados que possam garantir a independência dos árbitros e instituições, como estão tentando fazer nas normativas europeias para resolução alternativa de conflitos de consumo, em especial a Diretiva 2013/11/EU,que inclusive estabelece a possibilidade das instituições arbitrais serem remuneradas exclusivamente por empresários, desde que se respeitem determinados parâmetros que possam garantir sua independência e imparcialidade, assim como a remuneração desses árbitros em nenhuma hipótese pode ter correspondência com os resultados e decisões que ditam.
Referências
ALBA, Isabel. Arbitraje y mediación de consumo: a propósito de la ley 16/2011, de 24 de junio, de contratos de crédito al consumo, en Boletín del Ministerio de Justicia, num. 2160, noviembre de 2013;
GONZALES, José Luis. El proceso arbitral de consumo (RD 231/2008, de 15 de febrero) en Mediación y arbitraje de consumo: una perspectiva española, europea y comparada. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010;
IBOLEON, Belén. Naturaleza jurídica y competencia territorial de las juntas arbitrales de consumo en el RD 231/2008 de 15 de febrero en Mediación y arbitraje de consumo: una perspectiva española, europea y comparada. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010;
OROZCO, Guillermo. Condiciones generales de los contratos, clausulas abusivas y arbitraje de consumo en Mediación y arbitraje de consumo: una perspectiva española, europea y comparada. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010;
TheEuropeanConsumer Center Network. Europe’sconsumers: AnniversaryReport 2005-2015;
TUCCI, José Rogério Cruz e. Vetos inusitados conspiram contra o futuro promissor da arbitragem. Disponívelem http://www.conjur.com.br/2015-jun-02/paradoxo-corte-vetos-inusitados-conspiram-futuro-promissor-arbitragem.
[1]Dados obtidos através de consulta via e-mail.
[2]Presidencia da Republica, mensagem do veto de n.º 162, de 26 de maio de 2015.
[3]Sobre o tema, ver OROZCO, Guillermo. Condiciones generales de los contratos, clausulas abusivas y arbitraje de consumo en Mediación y arbitraje de consumo: una perspectiva española, europea y comparada. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010
[4]Neste sentido se manifestou José Rogerio Cruz e Tucci, em artigo titulado Vetos inusitados conspiram contra o futuro promissor da arbitragem. Disponível emhttp://www.conjur.com.br/2015-jun-02/paradoxo-corte-vetos-inusitados-conspiram-futuro-promissor-arbitragem;
Autor: Flávio de Freitas Gouvêa Neto é advogado e mediador, pós-graduado em Mediação, Negociação e Resolução de Conflitos pela Universidade Carlos III de Madrid.