Carlos Frederico de Oliveira Pereira
É entendimento pacífico na jurisprudência que, uma vez arquivado o inquérito policial ou peças de informação, não é possível ao ofendido ou a quem o represente ou suceda ajuizar ação penal privada subsidiária da pública. Nem mesmo é isso possível se o MP requer diligências. Tal entendimento resulta da interpretação dos artigos 29, que trata do cabimento da ação penal subsidiária, e 18, ambos os dispositivos do CPP. Este último autoriza a autoridade policial a proceder novas pesquisas para apurar infração, cuja apuração originária resultou fracassada, não propiciando elementos suficientes para que o MP oferecesse a denúncia. Em decorrência desse segundo dispositivo, o STF erigiu o enunciado 524, que admite ajuizamento de denúncia em caso de inquérito arquivado, porém apenas com base em novas provas.
A razão fundamental para impedir-se a propositura de ação penal subsidiária nos casos acima é que, segundo a redação do artigo 29 do CPP, o seu pressuposto básico é a inércia do MP, que inexiste quando ele requer o arquivamento do IP ou de peças de informação, ou quando requer diligências no curso das investigações criminais pré-processuais. Tal regra não vem modificada em face da inscrição da ação penal subsidiária como garantia individual pela Lei Maior, artigo 5º inciso LIX, não resultando desse tratamento constitucional qualquer mudança quanto à interpretação dos dispositivos do CPP mencionados. A única novidade é a sua admissão obrigatória no processo penal militar, cujo estatuto processual não faz qualquer previsão quanto a esse instituto, necessitando o intérprete do Direito Militar de socorrer-se do CPP comum no pertinente.
Assim sendo, uma vez arquivado o inquérito, pela sistemática do Código de Processo Penal comum, impossível se torna ao ofendido tentar forçar a persecução penal em juízo nos crimes de ação pública. É certa a orientação jurisprudencial, porque além de descaracterizada a inação, a sociedade não permaneceu silente, na medida em que ao MP incumbe a sua defesa e, portanto, em ultima ratio, é ela quem está se pronunciando. Também não há motivo para desconfianças, embora nada seja perfeito, porque o arquivamento de Inquérito Policial e de peças de informação exige a participação do Poder Judiciário, que pode discordar do pedido, quando a última palavra será do procurador-geral, posto que é ele o chefe da instituição ministerial, e o IP e peças de informação têm por destinatário não o juiz, mas o promotor de Justiça que deles necessita para formular a sua opinio delicti. Ademais, é defeso ao juiz obrigar o Ministério Público a oferecer denúncia.
Contudo, erros podem acontecer. Arquivado um inquérito por engano, é impossível ação penal subsidiária. Somente caberá a oferta denunciatória, privativa do MP, e caso apareçam novas provas. Penso que podem ocorrer equívocos, e nessa hipótese o Código de Processo Penal comum não oferece qualquer solução alternativa. No processo penal comum, a única exceção se encontra na lei dos crimes contra a economia popular, Lei nº 1.521/51, no seu artigo 7º, verbis:
Art. 7º Os juízes recorrerão de ofício sempre que absolverem os acusados em processo por crime contra a economia popular ou contra a saúde pública, ou quando determinarem o arquivamento dos autos do respectivo inquérito policial.;;
É uma solução interessante, pois cria nova instância de controle, que é o tribunal, que, revendo a decisão do juiz que acolheu o pedido de arquivamento formulado pelo MP, deverá enviar os autos ao procurador-geral, na forma do artigo 28 do CPP, e este dará a última palavra.
Embora seja um caminho interessante, entendo que apresenta dois inconvenientes: devolve toda decisão de arquivamento ao tribunal, o que pode promover um acréscimo desnecessário e volumoso de serviço, quando se sabe que o arquivamento defeituoso é a exceção e não a regra, e o outro é que cria com isso uma desconfiança com os protagonistas do arquivamento, que são o promotor de Justiça e o juiz, fazendo-se presumir, injustificadamente, a falta de lisura na atuação de ambos. Deve-se presumir sempre a boa-fé, jamais o contrário.
Essa alternativa é impossível de ser trasladada para o CPP, seja pelo motivo ético ora apontado, seja pelo fato de que o ingresso de feitos destinados ao tribunal iria sobrecarregar os demais serviços das cortes de Justiça.
A mim me parece funcional a via estampada no CPPM, no artigo 498 letra b, que é a previsão de correição parcial dirigida ao STM, interposta pelo juiz corregedor. Criou o CPPM uma instância intermediária entre o tribunal e o magistrado de primeiro grau que defere o arquivamento, de tal maneira que o juiz corregedor irá analisar cada arquivamento, avaliando se não foram esgotadas todas as diligências investigatórias possíveis, ou mesmo se houve algum equívoco na apreciação do fato frente à norma, como, por exemplo, no pertinente à tipicidade ou incidência de excludente de crime ou culpa, ou errônea apreciação de causa de extinção de punibilidade. Eis a redação:
Art. 498 O Superior Tribunal Militar poderá proceder à correição parcial: b) mediante representação do auditor corregedor, para corrigir arquivamento irregular em inquérito ou processo.
A experiência tem demonstrado quão valiosa é a previsão desse instituto, sendo a participação do auditor corregedor um instrumento a mais contra a impunidade e incremento da eficácia da aplicação da lei penal militar. Pensamos que a correição parcial deveria existir também no processo penal comum e a sua previsão legal terminaria com qualquer desconfiança com relação ao arquivamento de inquérito policial. A instância intermediária não precisa ser necessariamente um juiz corregedor, mas pode ser, por exemplo, um órgão do MP, ou, por que não, em legitimação concorrente, o ofendido ou quem possa representá-lo ou o suceda.
Carlos Frederico de Oliveira Pereira
Membro do Ministério Público Militar, advogado e
professor assistente de Direito Penal da
Universidade de Brasília