Por Rogério Roberto Gonçalves de Abreu
Embora seja uma figura pouco aceita pelos juristas, a doutrina processual penal brasileira não se furta em apresentar, descrever e examinar aquilo que se convencionou chamar de pedido indireto de arquivamento, mais conhecido como arquivamento indireto.
A situação é a seguinte: inquérito policial é instaurado, sendo distribuído a uma vara para a fixação do representante do Ministério Público oficiante. Esse membro do MP, contudo, até o encerramento do inquérito, manifesta-se pela incompetência do juízo para processar e julgar eventual ação penal e, como conseqüência, declara a si próprio sem atribuições para oferecer denúncia. Assim, pede ao juiz que remeta os autos do inquérito policial já instaurado, encerrado ou não, ao juízo que considera competente para que o “promotor natural” venha a formar sua opinio delicti e denunciar, pedir o arquivamento ou requisitar da autoridade policial novas diligências.
Se o juiz concorda com o representante do Ministério Público, tudo bem: determina a baixa na distribuição e a remessa dos autos ao juízo apontado como competente, para que lhes providencie o encaminhamento ao respectivo representante do Ministério Público com atribuições para atuar naquela apuração.
O problema ocorre quando o juiz a quem se pede a declinação da competência não concorda com a promoção ministerial e se considera competente para processar e julgar aquela causa.
Nesse caso, uma vez que o juiz não poderia obrigar o representante do Ministério Público a oferecer denúncia, a situação se assemelharia a um pedido “indireto” de arquivamento do inquérito policial, de modo que a providência teria que seguir os mesmos moldes do pedido direto de arquivamento: deveria o juiz de direito aplicar o artigo 28 do Código de Processo Penal e determinar a remessa dos autos ao Procurador-Geral de Justiça. No âmbito da justiça federal, caberia ao juiz federal aplicar o artigo 62 da Lei Complementar n. 75, de 1993, e remeter os autos à Câmara de Coordenação e Revisão Criminal do Ministério Público Federal.
Assim, se o Procurador-Geral ou a Câmara de Coordenação e Revisão Criminal entenderem que assiste razão ao membro de primeiro grau do Ministério Público, insistirá no pedido, ficando a ele obrigado o juiz de primeiro grau. Do contrário, oferecerá denúncia por si ou designará outro membro do MP que atue como sua longa manus.
Esse entendimento, na prática, submete o Poder Judiciário ao Ministério Público na definição de sua competência, violando um dos mais fundamentais postulados acerca do assunto: o de que é do Poder Judiciário a competência para decidir sobre sua própria competência (Kompetenz-Kompetenz).
Parece-nos bem mais adequado que, havendo requerimento do Ministério Público para declinação da competência, seu indeferimento comportaria o instrumento processual próprio para qualquer indeferimento de requerimento dirigido ao Poder Judiciário: o recurso cabível. Se os representantes do Ministério Público detêm autonomia funcional, assim também a possuem os membros da magistratura, e não se pode admitir que tal prerrogativa funcional se sobreponha à Constituição e às leis, nem que deixe de servir à causa e passe a servir ao (que deveria ser o) servidor.
Mas essa abordagem do tema não vem ao caso no momento.
Tratando-se de entendimento acolhido pelo Supremo Tribunal Federal, em termos práticos não resta muito o que fazer, a não ser segui-lo. Afinal, nenhuma utilidade haveria em insistir em solução diversa, atrasando o andamento da persecução criminal e colocando em risco a apuração da verdade e a punibilidade do fato, quando já se sabe que o STF professa dita solução.
Nada obstante e sem prejuízo desse entendimento, parece-nos que o procedimento poderia ser adaptado para melhor atender à natureza pré-processual do inquérito policial, respeitando-se as prerrogativas funcionais dos representantes do Ministério Público sem que seja necessário impor ao Poder Judiciário uma forma de submissão em matéria de definição da competência, em completo abandono ao postulado da “competência sobre a competência”.
Uma sugestão de procedimentalização em caso de pedido indireto de arquivamento seria, portanto, a seguinte.
Uma vez que entendesse o representante do Parquet não ter atribuições para atuar naquela causa penal, e considerando ainda que o conflito incidiria antes sobre a atribuição do Ministério Público do que sobre a competência do juízo (Eugênio Pacelli de Oliveira. Curso de processo penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012), deveria o representante do Ministério Público simplesmente requerer ao juiz, com a devida fundamentação, a baixa dos autos do inquérito no setor de distribuição e sua entrega ao órgão ministerial requerente.
De posse dos autos, devidamente baixados no juízo originário, o representante do Ministério Público poderia – em atuação estritamente administrativa – providenciar sua remessa ao órgão ministerial que entende com atribuições para a causa, devendo esse último, em concordando, remeter os autos como peças de informação à autoridade policial e requisitar a abertura de inquérito. O inquérito seria, desse modo, distribuído a um juízo com competência criminal, ficando a ele finalmente vinculado.
Se o representante do Ministério Público a quem teriam sido remetidos os autos do inquérito (agora peças de informação) discordar de seu colega, poderá suscitar o competente conflito de atribuições à autoridade administrativa ou judiciária competente. Se o conflito ocorrer entre membros do Ministério Público do mesmo Estado, caberá ao Procurador-Geral de Justiça dirimi-lo. Se ocorrer entre membros do Ministério Público Federal, caberá à Câmara superior competente. Se, finalmente, o conflito se der entre membros do Ministério Público de Estados diferentes, ou entre membro de Ministério Público Estadual e de Ministério Público Federal, competirá ao Supremo Tribunal Federal decidir o conflito (cf. STF. Pet. 3631/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Tribunal Pleno).
A solução proposta tem o mérito de situar a questão no espaço em que deve efetivamente se encontrar e em que deve ser tratada e resolvida: o do conflito de atribuições entre membros do Ministério Público. O entendimento segundo o qual deve o juiz remeter os autos ao juízo apontado como competente pelo Ministério Público traveste o imbróglio todo em verdadeiro conflito de competência.
Apenas como ilustração, vamos imaginar que um juiz de direito acolha pedido do Ministério Público Estadual de declinação e remessa dos autos a um juízo federal, que imediatamente suscita, perante o Superior Tribunal de Justiça, conflito de competência. Vindo o STJ a definir como competente o juízo suscitado (ou seja, o juízo originário), o que fará o representante do Parquet Estadual, autor do requerimento que deu causa a tudo isso: dirá simplesmente que sua prerrogativa funcional o autoriza a não atuar naqueles autos? E, diante dessa postura, reiterando o promotor de justiça aquele pedido de declinação, deverá o juiz de direito indeferi-lo e remeter os autos ao Procurador-Geral de Justiça ou deverá novamente acolhê-lo e reiniciar o ciclo, num looping vicioso que apenas prejuízos pode causar à apuração do fato?
Veja-se que, no primeiro caso, bem poderá o Procurador-Geral “decidir” em sentido contrário ao Superior Tribunal de Justiça, insistindo na declinação e no reinício do mencionado looping vicioso, ficando o juiz com um tremendo problema nas mãos.
Cremos que o procedimento de simplesmente dar-se baixa na distribuição do inquérito policial para que os autos sejam entregues ao representante do Ministério Público afasta a possibilidade de ocorrência de um conflito de competência, em prejuízo da apuração da causa. Se conflito houver, surgirá exclusivamente da discordância do órgão ministerial destinatário daquilo que outrora fora o inquérito policial e que se converteu em peças de informação. A partir daí, instaura-se o conflito de atribuições e como tal deverá ser tratado e resolvido, preservando-se, desse modo, não apenas a harmonia entre o Ministério Público e o Poder Judiciário, mas também a competência desse último para decidir sobre sua própria competência.
Rogério Roberto Gonçalves de Abreu é juiz federal na Paraíba, professor do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPE/PB) e mestre em direito econômico pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).