As consequências da pós-verdade para o sistema de Justiça Criminal

Autor: José Carlos Porciúncula (*)

 

1. Introdução
De acordo com o Oxford Dictionary, a palavra “pós-verdade” (post-truth) consiste num “adjetivo definido como relativo ou referente a circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais”.

Nas linhas seguintes, pretendo, ainda que em termos bastante gerais, alcançar três objetivos: em primeiro lugar, caracterizar o fenômeno da pós-verdade como produto de um curioso encontro entre uma corrente filosófica, uma época histórica e uma inovação tecnológica[1]; em segundo lugar, sustentar que, longe de se tratar de um fenômeno marginal do nosso tempo, a pós-verdade é capaz de revelar uma curiosa dimensão da natureza humana[2]; por fim, mas não menos importante, tentarei demonstrar que o fenômeno da pós-verdade, embora ainda negligenciado por penalistas e criminólogos, pode produzir graves e indeléveis consequências para o sistema de Justiça Criminal.

2. O nascimento da pós-verdade
A pós-verdade é o fruto (ainda que degenerado) da singular confluência entre (A) uma corrente filosófica, (B) uma época histórica e (C) uma inovação tecnológica. (A) A pós-verdade representa a disseminação e popularização de algumas bandeiras do pós-modernismo, seguramente o movimento filosófico mais influente da segunda metade do século XX[3]. Como se sabe, o ironismo, a dessublimação e a desobjetivização constituem as linhas mestras daquela corrente filosófica[4].

O ironismo traduz-se numa atitude profundamente antidogmática: levar a sério as teorias seria um sinal de dogmatismo, devendo-se, portanto, manter um distanciamento irônico em relação às próprias afirmações[5].

A dessublimação consiste na noção de que os sentimentos e desejos constituem formas de emancipação, já que a razão e o intelecto seriam fontes de dominação[6]. Far-se-ia necessário, portanto, uma espécie de revolução dionisíaca. Finalmente, a desobjetivização manifesta-se como radicalização da máxima nietzschiana “não há fatos, somente interpretações”[7]. Esta radicalização levará um dos máximos expoentes da corrente pós-moderna, Jacques Derrida, a afirmar que “não há um fora-texto”[8].

Também na linha de Nietzsche, sustenta-se que a verdade não passa de um conjunto de metáforas, metonímias e antropomorfismos. Como consequência da desobjetivização, dir-se-á que devemos nos abster definitivamente do culto supersticioso (e frequentemente violento!) da verdade, substituindo-o pela defesa do consenso e da solidariedade amigável[9]. Pois bem.

Embora os representantes do movimento pós-moderno estivessem imbuídos de nobilíssimos anseios emancipatórios (e nisso há um grande mérito!), o certo é que a nulificação de noções como verdade, razão e objetividade levou à supressão da autoridade do real e sua consequente substituição por uma quase-realidade com fortes elementos fabulares, uma espécie de realitysmo[10].

(B) Em termos políticos, o que se testemunhou foi, inicialmente, o triunfo de uma democracia sem verdade, que, em seguida, descambaria em puro populismo, “um sistema no qual (desde que se tenha o poder) pode-se fazer com que se acredite em qualquer coisa”[11]. Sarcasticamente, o populismo nada mais representa do que o antípoda das aspirações libertárias pós-modernas, por constituir a absolutização da máxima segundo a qual a razão do mais forte é sempre a melhor[12].

Quando, por exemplo, Trump inaugura a Trump TV para transmitir diretamente da Trump Tower a Trump Truth, ele está tirando o máximo proveito de um ambiente cultural de absoluto relativismo (para expressá-lo por meio de um oxímoro)[13].

(C) Para além dos aspectos antes mencionados, a pós-verdade somente é possível graças a uma revolução tecnológica, denominada pelo filósofo italiano Maurizio Ferraris de revolução documedial. A revolução documedial consiste na “união entre a força de construção imanente à documentalidade e a força de difusão e mobilização que atua no momento em que cada pessoa que busca informações pode ser um produtor ou, ao menos, um transmissor de informações e de ideias”[14].

Graças à revolução documedial, hoje, qualquer indivíduo pode (basta ter acesso à internet) difundir urbi et orbi a sua opinião sobre um determinado assunto. E mais: graças ao contexto de relativismo radical no qual estamos inseridos, cada qual poderá manifestar nas redes sociais a sua verdade sobre um tema, e isso, em certo sentido, com a mesma autoridade de um especialista (já que não há fatos, somente interpretações!).

Como bem dizia Umberto Eco, “as redes sociais concedem o direito de palavra a legiões de imbecis que antes falavam só no bar depois de um copo de vinho (…) enquanto agora têm o mesmo direito de palavra de um Prêmio Nobel”. Produz-se, assim, uma privatização da noção de verdade. Proporciona-se a cada indivíduo a possibilidade de dizer sem maiores pudores: a verdade, eu a tenho, eu a posto. De alguma forma, a post-truth é, também, a verdade que se posta.

3. A web como revelação e como panóptico 2.0
Compreender o ser humano não é buscar penetrar num suposto forum internum do indivíduo (isto seria, como observa Ryle, compactuar com o equivocado dogma do fantasma na máquina[15]), nem simplesmente observar o seu comportamento (como sustentam os behavioristas), mas, sim, estudar as suas técnicas e aquilo que o mobiliza.

Enquanto técnica, e enquanto aparato que mobiliza a intencionalidade[16], a web é também revelação da natureza humana[17]. Parece bastante emblemático que, recentemente, o renomado psicólogo cognitivo Steven Pinker tenha afirmado que o grande volume de dados (Big Data) gerados a partir de buscas na internet e outras manifestações on-line propiciou um olhar sem precedentes a respeito da natureza humana[18].

Claro, a web já revelou múltiplas facetas do ser humano, mas talvez a mais curiosa delas seja a sua natural (e muitas vezes irracional) inclinação para a submissão. Por óbvio, a onipresença da submissão no mundo social já era evidente antes mesmo da web; entretanto, tratava-se sempre de explicá-la como o resultado de motivações sensatas de um homo oeconomicus. Exemplos: submissão ao poder porque este é mais forte; submissão à economia para obter bens[19].

Entretanto, o que dizer de milhões e milhões de seres humanos que aceitam docilmente as imposições que vêm da web, a começar pelo chamamento para responder, por exemplo, a um simples e-mail? E o que é mais espantoso: por que milhões e milhões de indivíduos, em autêntica servidão voluntária, aceitam disponibilizar na internet dados de sua privacidade e intimidade?

Por que todos esses indivíduos aceitam ser os agentes voluntários de sua vigilância, dando origem àquilo que Bauman chamou de sociedade confessional[20]? Parece evidente o caráter irracional dessa submissão. E não somente isso: para além da irracional inclinação para a submissão, a web também revela outra característica (bastante embaraçosa!) do ser humano: a imbecillitatis[21]. Os inúmeros produtores, reprodutores e cultivadores de todo o tipo de bullshit que circula na web demonstram isso de modo impressionante[22].

Pois bem. Enquanto revelação, a web também se apresenta como eficaz instrumento de controle e vigilância. Nesse sentido, a web transfigura-se num panóptico digital. Mas se trata indubitavelmente de um panóptico 2.0[23]. Isso porque, como assinala o notável filósofo germano-coreano Byung-Chul Han, opera-se por meio da web uma potencialização radical da função do panóptico: o olhar do observador situado na torre central é substituído por olhares múltiplos e difusos[24].

4. As consequências da pós-verdade para o sistema de Justiça Criminal
O delírio pós-moderno, por meio da radicalização da máxima “não há fatos, somente interpretações”, produziu uma inadmissível confusão entre os planos ontológico e epistemológico, ao fazer com que o primeiro se subordinasse ao segundo, é dizer, ao sustentar absurdamente que aquilo que existe depende daquilo que sabemos ou cremos que existe.

Essa confusão fica muito clara, por exemplo, na disparatada afirmação do filósofo pós-moderno Bruno Latour, de que Ramsés II não poderia, em 1213 a.C., ter morrido de tuberculose, já que o bacilo causador dessa doença somente foi isolado por Koch em 1882[25]. Como se vê, de acordo com a abstrusa visão de Latour, o bacilo da tuberculose somente passa a existir (plano ontológico) no momento em que Koch o descobre (plano epistemológico)!

Hoje parece evidentíssimo que esta confusão pós-moderna entre os planos ontológico e epistemológico tem sua origem remota no correlacionismo kantiano, é dizer, na noção de que não existe mundo senão para um espectador, e que esse espectador é justamente o construtor desse mundo[26].

Pois bem. Um Gedankenexperiment proposto por Eco demonstra a absurdidade da máxima segundo a qual “não há fatos, somente interpretações”. Vamos imaginar que eu resolva pintar num muro um desenho que representa muito realisticamente uma porta aberta. Posso interpretar esse desenho como um artifício para enganar alguém, como uma representação com finalidade estética etc.

Entretanto, não posso interpretar tal desenho como uma porta verdadeira, pois se tento atravessar a suposta porta, na realidade, deparo-me com um muro, e o meu nariz sangrando mostrará que tal interpretação é inadmissível[27].

Como se vê, a noção pós-moderna de que toda a realidade é socialmente construída e infinitamente manipulável constitui um grave equívoco.

Aqui não se duvida, por óbvio, que grande parte da realidade seja socialmente construída. Entretanto, há objetos no mundo cuja existência independe de nossos esquemas conceituais. E mais: tais objetos caracterizam-se por sua resistência ao pensamento. É preciso resgatar a noção de que existe uma realidade (insubmissa aos nossos esquemas conceituais) que possui as suas leis, leis estas que se fazem respeitar.

Mas o que tem a ver o delírio pós-moderno com o mundo jurídico, mais exatamente com o sistema de Justiça Criminal? Taruffo lembra-nos que, graças ao pós-modernismo, verificou-se um narrative turn nas discussões acerca da prova e do processo.

Embora o narrative turn tenha inegáveis méritos, como reconhece o próprio Taruffo, ele também traz consigo o desprezo pela distinção entre fato e direito: os fatos do processo perdem-se numa indistinta falácia literária sobre o direito[28]. Trata-se, claramente, da adoção, agora no âmbito processual, da máxima pós-moderna “não há fatos, somente interpretações”. Mas essa onipotência da interpretação gera consequências de superlativa gravidade para a noção de decisão judicial.

Ora, como sempre insiste Streck, se não há fatos, mas somente interpretações, então se pode dizer qualquer coisa a respeito de qualquer coisa; pode-se, inclusive, manipular despudoradamente a realidade, já que, de acordo com a visão pós-moderna, a ontologia depende da epistemologia, de forma que as interpretações geram os fatos. Transforma-se, assim, a decisão judicial num puro ato de vontade.

Aliás, é justamente essa atmosfera pós-moderna que permite que magistrados solipsistas profiram sentenças autistas, cuja essência seria a seguinte: não há fatos que demonstrem a responsabilidade criminal do sujeito, mas tenho interpretações que me autorizam a condená-lo.

Antes de terminar, gostaria apenas de tangenciar um último aspecto da relação entre pós-modernismo, pós-verdade e sistema de Justiça Criminal. Trata-se de uma espécie de elevação à enésima potência do já conhecido fenômeno do trial by media. Refiro-me ao atual e preocupante fenômeno do trial by social media.

Com efeito, na era da internet, pode-se testemunhar milhares e milhares de indivíduos que, nas mais diversas redes sociais, produzem e reproduzem notícias e informações falsas a respeito de uma determinada pessoa, com o claro objetivo de influenciar o exercício da jurisdição penal em seu desfavor.

Também abundam ataques e ameaças a magistrados, em especial na véspera de julgamentos relevantes, por meio da publicação de factoides a respeito de sua vida, cuja única finalidade é constrangê-los a decidir de uma determinada maneira. Tudo isso é bastante lamentável e parece dar inteira razão a Saramago quando diz: “(…) Vivemos no tempo da mentira universal. Nunca se mentiu tanto. Vivemos na mentira, todos os dias”.

 

 

 

Autor: José Carlos Porciúncula  é advogado criminalista em Brasília. Doutor em Direito Penal pela Universidade de Barcelona (Espanha), com período doutoral na Universidade de Bonn (Alemanha). Professor da pós-graduação do IDP – Brasília.


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