Autor: Bruno Torrano (*)
Richard Rorty abre o texto introdutório de sua obra Truth and Progress da seguinte forma: “‘Não existe verdade’. O que isso quer dizer? E por que alguém afirma isso? Na realidade, praticamente ninguém (exceto Wallace Stevens) de fato afirma isso”. Lembrei-me desse trecho no exato momento em que li o inteligente artigo do respeitável jurista e professor José Carlos Porciúncula publicado aqui na ConJur com o título As consequências da pós-verdade para o sistema de Justiça Criminal. Nele, o autor propõe-se a esclarecer algumas relações entre o movimento do pós-modernismo, a noção de pós-verdade e fenômenos contemporâneos no âmbito da Justiça Criminal, como o trial by social media, o ativismo judicial e a narrative turnnas discussões sobre prova e processo.
O termo “pós-verdade” pode ser útil para denunciar, desmascarar ou mesmo ridicularizar pessoas que, desinformadas, impulsivamente emotivas ou agindo de má-fé, criam ou passam à frente narrativas que têm como objetivo tácito, disfarçado ou mesmo descarado a manipulação de pessoas e/ou o assassinato de reputações. Parece-me haver poucas divergências quanto a isso. O que me chamou a atenção no artigo de Porciúncula foi a adesão à moda de relacionar tais posturas pouco conscienciosas como a derivação natural e perigosa daquilo que se convencionou chamar de “pós-modernismo”, rótulo que já virou um saco de pancadas confortável a quem queira pregar comprometimento com algo profundo e intelectualmente responsável.
Porciúncula não esclarece qual teoria da verdade ele crê ser a mais adequada para lidarmos com o “espectro” pós-moderno, mas toda a extensão do artigo (em especial a insistência na “autoridade do real” em questões sociais e relativas ao Direito) agarra-se a um já velho e conhecido pavor tipicamente metafísico: a ideia de que a qualidade de nossas práticas sociais depende de algum gancho ao qual possamos apontar o dedo a fim de conferir validade a nossas interpretações e divergências. Religiosos chamam esse gancho de “Deus”. Platão, de “forma”. Kant, de “razão”. Porciúncula, de “fato”. E, assim fazendo, ataca a “desobjetivização” implícita na afirmação nietzschiana de que “não há fatos, somente interpretações”, de modo a considerá-la, juntamente com um fator político e outro tecnológico, o ovo da serpente de um “ambiente cultural de absoluto relativismo”.
Ao afirmar que, segundo os pós-modernos, toda a realidade é socialmente construída, Porciúncula cai na armadilha, muito comum na “argumentação por rótulos”, de definir um termo de forma demasiado ampla e nele inserir autores de tonalidades intelectuais bem diversas, por vezes incompatíveis. Como logo veremos ao falar de Rorty, nem todos aqueles que Porciúncula considera “pós-modernos” concordam com a afirmação de Nietzsche de que “não há fatos, apenas interpretações”, se a isso for adicionado o predicado de que não existe mundo para além de nossas descrições e vocabulários.
Todavia, há algo efetivamente defendido por filósofos considerados “pós-modernistas” por Porciúncula que, ainda estranho e xexelento ante nossa “necessidade ocidental de metafísica”, pode conduzir (e tem conduzido) a constantes acusações de “pós-verdade”: a rejeição de distinções como aparência/realidade, esquema/conteúdo e sujeito/objeto, bem como, em suas palavras, a assertiva de que “devemos nos abster definitivamente do culto supersticioso [da verdade]”. Mais adequado e conveniente seria, nesses termos, tratar os pós-modernistas como um dos partícipes da corrente filosófica conhecida por antifundacionismo, assim caracterizada por Stanley Fish:
O antifundacionalismo ensina que questões de fato, verdade, exatidão, validade, e claridade não podem nem ser colocadas nem ser respondidas por referência a alguma realidade extracontextual, a-histórica, não situacional, ou alguma regra, ou lei, ou valor; ao contrário, todas essas coisas, assevera o antifundacionalismo, são inteligíveis e discutíveis apenas dentro do recinto dos contextos ou situações ou paradigmas ou comunidades que conferem a eles suas formas locais e mutáveis.
Rorty teve seus dois principais livros (Philosophy and The Mirror of Nature e Contingency, Irony and Solidarity) citados no artigo ora comentado. Peguemo-lo como exemplo. Em Rorty, a noção de verdade liga-se a vocabulários que são criados por seres humanos à luz de uma diversidade infindável de necessidades, perspectivas e propósitos. Dado que a relação entre o mundo e nós é causal de cabo a rabo, também a linguagem só pode ser entendida como uma (extraordinária) ferramenta que possibilita a adaptação darwiniana cada vez mais satisfatória de animais inteligentes àquilo que acontece no mundo. O mundo está aí, mas a verdade, não. Há uma infinidade de coisas que são causalmente independentes de nós, mas nada independe de nossas descrições e interesses. Precisamos de descrições, de vocabulários aculturados e de uma ideia de como a coisa toda funciona (“círculo hermenêutico”) mesmo para saber o que independe ou não causalmente de nossos estados mentais subjetivos, mesmo para que possamos discernir o que é ontologia real (buracos negros, estrelas, montanhas) e o que é ontologia social (direito, dinheiro, casamento, família etc).
A ideia de “verdade”, nesses termos, desloca-se de uma acepção imodesta, como se habitasse um mundo extracrença, para uma acepção desinflacionada, naturalizada e historicizada. Isso, claro, dá calafrios no metafísico e abre o seu repertório de rótulos pré-encomendados: “relativista”, “cético”, “pós-moderno” etc. Falar que “isto é verdade”, que “isto é um fato incontroverso” ou que “eu estou certo” se presta apenas como um mecanismo linguístico útil para enfatizar ao interlocutor aquilo que, aqui e agora, com as informações disponíveis, temos justificações suficientes para acreditar. O termo “verdade” deixa de possuir algum uso explicativo ou representativo, relacionado à “autoridade do real” ou ao “fato” e passa a fornecer apenas usos performativos: um (i) uso endossadorde crenças; um (ii) uso acautelador assemelhado ao signo “perigo”, quando fazemos afirmações do tipo “sua crença em X está bem justificada, mas talvez não seja verdadeira”; e (iii) um uso não citacional, quando colocamos condicionais do tipo “X é verdadeiro se Y”.
Não me parece que esse tipo de construção filosófica seja “culpada” pela postura “solipsista” de magistrados e pela produção e reprodução de notícias e informações falsas nas redes sociais. Por um lado, toda a ideia de verdade desinflacionada reside em gritar nos nossos ouvidos que o que interessa são as nossas práticas linguísticas intersubjetivas, de modo a afastar a ilusão da antropologia iluminista quando supôs que podemos justificar sans phrasealguma crença mediante apelo racional a incondicionais universais, independentemente do auditório. Por outro, Porciúncula parece igualar a má-fé, a desinformação e a dissimulação vistas diariamente nas redes sociais e na mídia com a proposição filosófica de que a ideia de “verdade” tem a ver com mera comunicação exitosa e “defesa do consenso e da solidariedade amigável”, e não com representação acurada do “real”. Assim fazendo, dá de barato à correta afirmação de Robert Brandom no sentido de que o desinflacionamento da noção de “verdade” nada tem a ver com a negativa de que tanto a noção de veracidade quanto a de conscienciosidade epistêmica são coisas imprescindíveis para o bom desenvolvimento de nossas relações sociais: “Na medida em que nós depositemos atenção suficiente nas razões que podem ser oferecidas a favor e contra várias afirmações, a verdade delas tomará conta de si própria — ou, ao menos, nós teremos feito tudo o que podemos fazer a respeito”. Não avançaremos no debate jurídico/filosófico enquanto confundirmos antifundacionismo (ou mesmo pós-modernismo) com vontade de agir desonesta e fraudulentamente.
Mas chega de filosofia. Se é para diagnosticar coisas como “causas” de subjetivismos judiciais, que o façamos. Falemos da Justiça Criminal. Indago: a imoderação de magistrados e o “problema” da narrative turn no exame de provas tem algo a ver com aquilo que Porciúncula denuncia, isto é, com a escalada de um ambiente impregnado por “relativismo cultural”? Pode sempre existir magistrados que vociferam nonsenses como “não existem verdades”, mas eu creio que, em regra, a resposta à pergunta é um sonoro “não”. E vou além: o sintoma dessas falhas institucionais específicas advém, em geral, do exato oposto, a saber, a busca ingênua de algum Ponto de Arquimedes, ou mesmo de uma muleta metafísica, que nos habilite ir para além de nosso tempo e acaso.
O Judiciário brasileiro não é um ambiente insuflado por magistrados “relativistas” ou “pós-modernistas”. Em termos gerais, aqui ocorre justamente o oposto. Magistrados que fogem da lei em nome da ética costumam ter convicções fortes sobre a objetividade de suas intuições morais; eles creem sinceramente que aquilo que escrevem em seus votos e sentenças constitui interpretação moralmente melhor e superior às alternativas de seus pares e mesmo às soluções escolhidas anteriormente pelo Poder Legislativo. A imoderação judicial está intimamente ligada com a existência de magistrados que se consideram porta-vozes de algo grandioso e profundo, que pensam saber o que é “a verdade” ou “a racionalidade” e buscam-nas mesmo a despeito daquilo que é comunicado pelas formas jurídicas e narrativas processuais.
O exemplo do Direito Probatório, citado por Porciúncula, ilustra esse ponto. Para um adepto da verdade desinflacionada, uma denúncia formulada pelo Ministério Público, de fato, não passa de uma mera narrativa que pode ou não se mostrar justificada à luz das provas e teses que são produzidas e formuladas pelas partes. O problema do processo criminal inicia-se na exata medida em que o juiz passa a enxergar a denúncia, ou a potencialidade do processo, como mais do que isso. Formas e garantias processuais são violadas tanto quando o juiz, ao ler a peça acusatória, deixa galopar dentro de si a inabalável convicção de que aquilo é um “fato” que “realmente aconteceu” quanto, durante o curso da instrução probatória, o juiz vai além das narrativas e interpretações das partes em direção da conhecida “verdade real” (aliás, a difundida e inquestionada crença na “busca da verdade real” é o melhor exemplo de que nossa jurisprudência não tem nada de “pós-modernista”). “Verdade processual” e verdade desinflacionada andam de mãos dadas. E isso significa que tentar resgatar a noção de “determinidade do real” só pode nos fazer dar vários passos para trás na tentativa de construir uma dogmática processual penal compatível com as garantias constitucionais.
Porciúncula poderia retrucar afirmando que não tinha como objetivo atacar a noção de “verdade desinflacionada”, e sim a ideia específica de que “não há fatos” ou de que a “verdade é subjetiva”. Dado que eu redirecionei, acima, o foco do debate para a noção de “verdade desinflacionada”, trata-se de resposta possível. Mas ainda aqui a questão relevante em nenhum momento aparece: qual a utilidade de afirmar a pessoas iludidas com pós-verdades que elas estão indo contra a “autoridade do real” (sic)? Rorty insiste, com razão, que “não chegaremos a lugar nenhum se dissermos aos que pensam de forma diferente que eles não estão agindo de acordo com a realidade moral ou estão comportando-se irracionalmente”. Nossas estratégias têm de ser melhores do que a mera ânsia teórico-acadêmica de demonstrar contradições performativas. Um juiz ativista não se comove quando falamos a ele, ou escrevemos em nossas petições, que sua visão de mundo é incorreta, falsa, filosoficamente inaceitável ou moralmente reprovável. Falar isso a um juiz, aliás, é uma péssima estratégia retórica de iniciar uma conversa com ele. Dentre outros fatores, o processo de convencimento relaciona-se com a distância existente entre aquilo que vamos informar ao interlocutor e as crenças que ele já tem, bem como com a tenacidade com que ele defende essas crenças pré-existentes. No caso do embate entre asseclas de alguma forma de judicial restraint e asseclas de interpretações mais ambiciosas ou romantizadas, a distância é quilométrica, e não raro a tenacidade, de ambos os lados, é significativa ou mesmo exagerada.
Proposta pelo ministro Luís Roberto Barroso, a tese da vanguarda iluminista, que induz ministros do STF a “empurrarem” (sic), cima-baixo, a sociedade para o “progresso moral”, à luz de “valores racionais”, é o exemplo paradigmático da ideia de que existem interpretações e juízos morais melhores do que outros (tão melhores que justificam passar por cima de toda a institucionalidade do Direito). Não creio que insistir no papo acadêmico sobre relativismo/objetivismo nos levará muito longe em termos de melhorias sociais, mas, se for para estagnar nesse vocabulário inútil, eu remo contra a maré e afirmo: antes fossem os magistrados “relativistas”. Antes falassem: “Após detida reflexão, creio que a melhor solução é a que segue esta corrente da filosofia moral, mas sei que existem outras posições tão boas e racionais quanto a minha”. Antes tivessem sinceras dúvidas acerca da força de seus próprios juízos morais e preferissem uma leitura honesta dos textos jurídicos. Antes bradassem: “Não há nenhum fato que eu deva buscar para além do que me foi narrado nestes autos pelas partes”. Antes levassem a sério a ideia de “desacordos morais razoáveis”. Aquele que realmente combate o ativismo deve exigir que magistrados relativizem suas certezas morais, cessem os supostos heroísmos éticos e engulam a seco mesmo que se escandalizem internamente com um ponto de vista que não raro é diferente dos seus mais belos sonhos — o ponto de vista jurídico. No Direito, não precisamos de “pós-verdade”, assim como não precisamos da “verdade” qua “autoridade do real”.
Autor: Bruno Torrano é assessor de ministro no Superior Tribunal de Justiça, mestre em Direito e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).