As denúncias anônimas na interpretação do STF

Não obstante todas as proteções fundamentais assegurados na Constituição, a sociedade ainda se surpreende com a divulgação de que Ministro de Estado ignora o sigilo individual. Como se sabe, o texto constitucional deu relevo aos direitos e garantias que limitam os poderes do Estado. Neste universo, um dos destaques de 1988 está na proibição ao anonimato (artigo 5° IV).

O núcleo fundamental ali previsto está na liberdade de manifestação, mas a previsão exige que o autor assuma tal posicionamento, de forma a garantir que não hajam perseguições ou injustiças. No fundo, há pouco debate sobre notícias anônimas levadas à Administração que, não raro, dão início à persecução punitiva sem identificação do denunciante ou assinatura em documentos. Outras vezes, estas utilizam pessoa jurídica fictícia, sem existência real.

Estes subterfúgios são utilizados com manifesto propósito de atingir a integridade de alguns, causando dolosamente dano à honra. Tais documentos encaminhados para a Administração devem merecer das autoridades atenção a tão fundamental aspecto. Como primeira medida, impende a tentativa de obtenção dos registros do denunciante ou aclaramento da procedência.

Tanto assim que, além da Constituição, o legislador veda o anonimato através de várias normas, como contido no artigo 144 Lei 8.112/90, artigo 14 Lei 8.429/92 e artigo 6° Lei 9.784/99 impondo a qualificação. Ante a literalidade das normas, a doutrina rejeita o desenvolvimento de processo sem identificação do denunciante, como salienta Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo, p. 289) para quem as denúncias serão apuradas desde que contenham a identificação e o endereço do denunciante e sejam formuladas por escrito, confirmada sua autenticidade.

Isto porque, como afirma o José Afonso (Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 248) a liberdade de manifestação de pensamento tem seu ônus, tal como o de o manifestante identificar-se, assumir claramente a autoria do produto do pensamento manifestado, para, em sendo o caso, responder por eventuais danos a terceiros.

Daí por que a Constituição veda o anonimato. Ao exigir tal identificação cumpre-se o preceito constitucional, ou seja, evita-se que se faça denúncia anônima apenas para pôr em dificuldade servidor do qual se tenha inimizade ou se pretenda apenas prejudicar, nas palavras de Nelson Nery (Processo Administrativo e suas Espécies, p. 222).

O enunciado constitucional contra o anonimato encontrou sua discriminação naqueles diplomas, não merecendo diminuição ou restrição de seu conteúdo. Como se adverte a proibição ao anonimato não abrange tão-só as clássicas apostilas de mal dizer, as mandadeiras apócrifas, injuriosas, difamatórias ou caluniosas, como qualquer outra comunicação, incitando à desordem, à subversão, à desobediência civil, isto exemplificativamente (Alcino Falcão Comentários à Constituição, p 163).

Por tudo, o ordenamento estabeleceu a possibilidade do cidadão formular denúncia, a ser recebida desde que com a obediência para admissibilidade. Por força da Legalidade, a Administração somente deveria processar delação, após examinados critérios mínimos, sob pena de autorizados o arbítrio ou abuso de poder.

Conquanto não se duvide que o administrador pode e deve apurar as denúncias recebidas, o recebimento das representações denunciatórias cumpridoras dos requisitos tem o escopo de preservar a dignidade das pessoas, da estrutura dos cargos públicos e constitui direito subjetivo dos particulares contra denúncias vazias, perseguições políticas, agressões à honra por desafetos ou de má-fé. Tudo de modo a evitar que, sob o manto do anonimato, irresponsáveis venham a vilipendiar a imagem de cidadãos e a própria Administração.

Não se pode desconsiderar que essas denúncias, muitas vezes são apresentadas como vingança, devendo a autoridade, de posse de um documento apócrifo, ultimar com cautela redobrada, evitando expor as pessoas a deflagração de um processo disciplinar.

A apocrifia deve ser combatida já no nascimento eis que a denúncia anônima não pode, evidentemente, servir de base para qualquer condenação, já que é muito temerário submeter o cidadão a um degradante processo de investigação criminal, sem que haja qualquer comprovação de fatos, meramente em decorrência de informações advindas não se sabe nem de quem, nem de onde, para ao final, em não raras hipóteses, constatar a falta de veracidade das alegações (TRF2 – HC 2003.02.01011011-0).

O tema foi enfrentado pelo STJ reconhecendo que a Justiça não pode ordenar a instauração de inquérito policial, a respeito de autoridade sujeitas à sua jurisdição penal, com base em carta anônima (AgRg Inq 355). A questão ganhou definitividade com a posição do STF e a impossibilidade de atuação do poder público só com provocação anônima, respeitando as leis mencionadas e à cláusula pétrea do artigo 5º.

Neste sentido, no julgamento do HC 84.827 o Min. Marco Aurélio escoliou que a instauração de procedimento criminal originada, unicamente, de documento apócrifo seria contrária à ordem jurídica constitucional, que veda expressamente o anonimato.

Salientando a necessidade de se preservar a dignidade da pessoa humana, afirmou que o acolhimento da delação anônima permitiria a prática do denuncismo inescrupuloso, voltado a prejudicar desafetos, impossibilitando eventual indenização por da­nos morais ou materiais, o que ofenderia os princípios consagrados nos incisos V e X do artigo 5º da CF.

Esta decisão do STF consolida a exegese constitucional, eis que destaca a necessidade de identificação do denunciante como forma de preservar a dignidade da pessoa humana, notadamente para permitir ao denunciado o amplo conhecimento do procedimento, impedindo autorias reservadas, até mesmo para futura responsabilidade. Importante observar que a questão já vinha sendo desenhada no julgamento (STF — MS 24.405) sobre o sigilo das denúncias perante o Tribunal de Contas, onde afirmou-se a mácula da norma do TCU.

A questão axial era se poderia ou não a persecução penal ou a atuação disciplinar investigar os fatos trazidos por denúncias apócrifas. Mas se afirmou a impossibilidade de formação do processo disciplinar ou penal apenas com a denúncia anônima. Pode a Administração, a partir de informações nas delações iniciar procedimentos apuratórios prévios, mas nunca instaurar o processo administrativo disciplinar ou o inquérito com base única e exclusiva na denúncia irregular.

Consagrando estes pontos, o Plenário do STF (Inqu. 1957) rejeita o anonimato e a instauração de medidas com base exclusiva neste, afirmando o ministro Velloso que o veto constitucional ao anonimato busca impedir a consumação de abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e na formulação de denúncias apócrifas, pois, ao exigir-se a identificação de seu autor, visa-se, em última análise, com tal medida, a possibilitar que eventuais excessos derivados de tal prática sejam tornados passíveis de responsabilização, a posteriori, tanto na esfera civil quanto no âmbito penal, em ordem a submeter aquele que os cometeu às conseqüências jurídicas de seu comporta­mento.

Registrou ainda que tal previsão esteve presente desde a primeira Constituição Republicana e que o legislador constituinte, ao não permitir o anonimato, objetivava inibir os abusos cometidos no exercício concreto da liberdade de manifestação do pensamento, para, desse modo, viabilizar a adoção de medidas de responsabilização daqueles que, no contexto da publicação de livros, jornais, panfletos ou denúncias apócrifas, viessem a ofender o patrimônio moral das pessoas agravadas pelos excessos praticados.

Além destes pontos, o ministro apoia-se ainda no direito comparado, inclusive para lembrar que na Itália, quer sob a égide do antigo Código de Processo Penal de 1930, editado em pleno regime fascista, quer sob o novo estatuto processual penal promulgado em 1988, a legislação processual peninsular contém disposições restritivas no que concerne aos “documenti anonimi”, às “denunce anonime” ou aos “scritti anonime”, estabelecendo que os documentos e escritos anônimos não podem ser formalmente incorporados ao processo, não se qualificam como atos processuais e deles não se pode fazer qualquer uso processual.

Por óbvio, o Estado tem o dever de apurar e punir qualquer agente seu ou particular que transgrida o ordenamento. Todavia, a instauração de procedimento única e exclusivamente por denúncias anônimas é ilegal e inconstitucional. Impõe-se investigação vestibular para validar, evitando procedimentos irregulares fruto de denuncismo de perseguição.

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Irapuã Beltrão é procurador federal, professor de direito tributário e constitucional, especialista em direito econômico pela FGV-RJ, master of law pela University of Connecticut e autor de “Resumo de Direito Tributário”, da Ed. Impetus

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