As esferas de aplicação dos Códigos Civil e Penal. Relevância das condições econômicas dos…

As esferas de aplicação dos Códigos Civil e Penal. Relevância das condições econômicas dos destinatários da norma

Luiz Cláudio Carvalho de Almeida

Sumário
1) Apresentação

2) O Código Civil. O Diploma Legal dos Ricos.

3) O Direito Penal. O Diploma Legal dos Pobres.

4) Conclusão

5) Bibliografia

1) Apresentação
O tema proposto para análise refere-se ao âmbito de aplicabilidade do Código Civil e do Código Penal.

Parte-se do pressuposto de que o Código Civil traz dispositivos aplicáveis às camadas mais abastadas da população e o Código Penal consagra hipóteses de aplicação direcionadas aos mais pobres.

Passa-se à análise de cada uma das situações separadamente.

2) O Código Civil. O Diploma Legal dos Ricos.
Por certo, o Código Civil é fruto da consagração do ideário burguês.

Com a revolução francesa e a vitória da concepção liberal, mostrou-se necessária a regulamentação dos direitos do homem e do cidadão contra a ação estatal.

Partindo-se dessa concepção não tardou a frutificar-se a idéia de um código que, por si só, nortearia a atuação do magistrado, diminuindo ao mínimo a discricionariedade do agente estatal na atuação de dizer o direito.

Não sem antes passar por longas discussões, dentre as quais se destaca a polêmica entre Savigny e Thibaut[1], cristalizou-se a idéia, até hoje vigorante de que um código seria a solução para o fim da discricionariedade (ou arbitrariedade) na aplicação da lei.

Partindo-se da premissa de que o intelecto humano poderia traduzir em hipóteses todas as situações da vida, construiu-se um diploma legal, vocacionado para ser único e completo, em que a aplicação da lei resultaria de uma simples operação mental de subsunção do fato à norma preexistente, donde se extrairia a conseqüência legal.

Nesse espírito surge o Código Civil de Napoleão (1804), cuja influência chegaria ao Brasil, estando viva no Código Civil atualmente em vigor.

Norteada que foi por todo o ideário liberal, não poderia o Codex deixar de representar a legislação do estilo de vida burguês.

Não por acaso, toda a legislação civil baseia-se na concepção de propriedade.

Nas entrelinhas de tal legislação coloca-se como conditio sine qua non a inserção no mundo formal por ela criado.

E assim se permite supor por vários dispositivos legais.

No que tange à legislação pátria não se permite conclusão diversa.

Basta verificar, por exemplo a concepção de família consagrada pelo Código Civil[2] que concede reconhecimento integral apenas à família originada do casamento. E assim se permite depreender ante a análise do tratamento dado aos filhos havidos fora do casamento, os chamados filhos adulterinos, cujo registro era vedado na constância do casamento.

Outro exemplo é o da aquisição do bem imóvel, que exige como formalidade essencial a transcrição do título de transferência no Registro de Imóveis (art. 530, inciso I, do Código Civil)[3].

O que importa perceber do sistema é que as camadas mais pobres da população por estarem despidas dos pressupostos de participação na vida econômica vêem-se alijadas da aplicação das disposições do Código Civil.

Assim é que, à época da edição do referido diploma, a grande maioria de uniões estáveis (conceito inexistente no início do século) se verificavam nas camadas mais populares.

O diploma legal civil ignorava tais relações, imputando aos filhos delas oriundos a pecha de ilegítimos e dificultando seu reconhecimento no caso de adultério, até mesmo por questões sucessórias.

Toda essa preocupação não guardava qualquer relação com a preservação da família do pobre, mas sim com a imputação do patrimônio do rico.

Ora, a falta de um parâmetro para um centro de imputação da propriedade prejudicaria um sistema de transmissão patrimonial causa mortis.

Elegeu-se como solução para o problema apresentado a família legítima como tal parâmetro, donde se deduz toda a linha sucessória.

Obviamente que tal preceito legal não tem como objetivo resguardar os direitos dos desvalidos, que sequer possuem patrimônio a ser transmitido pela via sucessória.

É necessário registrar, nesse ponto da argumentação, que atualmente, não vigora, com exclusividade a concepção liberal-burguesa em termos de regulamentação do direito de família. Exemplo disso é a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente, que consagrou a doutrina da “proteção integral”, que tutela os interesses dos incapazes, sobrepondo-os a quaisquer requisitos formais da família. De igual maneira suplantou-se, através da Constituição Federal, qualquer discriminação no que pertine à filiação.

Fenômeno de natureza semelhante se verifica em relação a compra e venda de imóveis.

A grande parte das negociações sobre bens imóveis entre as camadas mais carentes da população se dá à margem do previsto pelo Código Civil que exige formalismos inimagináveis pelos contratantes carentes.

Com isso não se reconhece efeitos jurídicos aos atos de “transmissão de propriedade” realizados à margem do Código Civil.

Tal fato implica no surgimento de um direito paralelo, típico das comunidades marginalizadas e que muito bem foi analisado por Boaventura Sousa Santos[4] ao analisar as relações sociais e jurídicas numa comunidade marginal carioca, a qual denominou de Pasárgada.

Sobre o tema leciona o autor: “O direito de Pasárgada é um direito paralelo não oficial, cobrindo uma interacção jurídica muito intensa à margem do sistema jurídico estatal (o direito do asfalto, como lhe chamam os moradores das favelas, por ser o direito que vigora apenas nas zonas urbanizadas e, portanto, com pavimentos asfaltados). Obviamente, o direito de Pasárgada é apenas válido no seio da comunidade e a sua estrutura normativa assenta na inversão da norma básica (grundnorm) da propriedade, através da qual o estatuto jurídico da terra de Pasárgada é conseqüentemente invertido: a ocupação ilegal (segundo o direito do asfalto) transforma-se em posse e propriedades legais (segundo o direito de Pasárgada)…”[5]

Da mesma forma que no direito de família da início do século, o direito de propriedade no que pertine a bens imóveis pressupõe ao atendimento de requisitos preenchidos por determinada classe.

As classes menos favorecidas tem, mais das vezes acesso à áreas desprezadas pelos mais ricos, como as áreas periféricas e de interesse ambiental.

Tais áreas, via de regra, não comportam apropriação, por se colocarem em regiões de risco ou de interesse ambiental, como as encostas e margens de rios, o que impede sua apropriação.

E ainda que possível a apropriação do imóvel as formalidades necessárias à validade do ato, como a inscrição no registro de Imóveis não são do conhecimento da população mais carente, que acaba por não ter tutelado seu direito.

A insensibilidade do Código Civil no que tange às questões imobiliárias tem sido mitigada por princípios consagrados pela Constituição Federal, como o da função social da propriedade.

Não se pode deixar de consignar que o meio clássico de aquisição da propriedade pelas camadas mais pobres e que encontra respaldo no sistema do Código Civil é o usucapião.

Mas a prática judiciária tem revelado sua ineficiência em tutelar em tempo hábil o direito do menos favorecido, haja vista a complexidade e morosidade que tem caracterizado os processos de usucapião, fato que realça a opção do Código Civil pela proteção do patrimônio burguês.

3) O Direito Penal. O Diploma Legal dos Pobres.
Por outro lado, o fenômeno em relação ao Direito Penal é o inverso do Direito Civil, eis que o âmbito de sua aplicação tem como foco principal as camadas menos favorecidas da população.

Basta uma análise superficial do movimento dos cartórios das Varas Criminais em todo país para se perceber que a incidência de réus com baixo poder aquisitivo é bem maior do que os réus com maior poder econômico financeiro.

Tal conclusão é fruto do sistema jurídico penal adotado no Brasil e que tem origens históricas atreladas à ascensão burguesa no plano político.

Da mesma forma que o Direito Civil reflete a ideologia liberal o Direito Penal incorporou tal mentalidade, só que produzindo efeito inverso, ou seja, visando à pobreza como foco de atenção e aplicabilidade.

Nada mais eloqüente que a seguinte passagem de um texto atribuído a um bispo chamado Watson, datada de 1804, e que é citada por Michel Foucault, em sua obra “A Verdade e as Formas Jurídicas”[6]: “As leis são boas, mas infelizmente, são burladas pelas classes mais baixas. As classes mais altas, certamente, não as levam muito em consideração. Mas esse fato não teria importância se as classes mais altas não servissem de exemplo para as mais baixas”.

E continua o bispo Watson, dirigindo-se aos ricos: “Peço-lhes que sigam essas leis que não são feitas para vocês, pois assim ao menos haverá a possibilidade de controle e de vigilância das classes mais pobres”.

Não é por acaso, portanto, que a grande maioria dos condenados no sistema penal brasileiro refira-se a acusados da prática de crimes contra o patrimônio[7].

De certa forma, o direito penal protege o sistema econômico vigente, que é o liberal.

A incidência do direito penal é muito maior sobre os pobres, os quais, com sua conduta, podem ameaçar o patrimônio da classe mais abastada.

Sob tal enfoque, permite-se verificar que os tipo penais “para pobres” são de incidência muito mais simples e de prova mais fácil, permitindo uma eficácia da lei penal muito maior no que tange a tais delitos.

Veja-se a título de exemplo o tipo penal previsto pelo art. 155 do Código Penal e o tipo previsto pelo art 4° da Lei n° 7.492/86, a chamada “Lei do Colarinho Branco”.

O caput do art. 155 do Código Penal tipifica como furto a seguinte conduta: “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”.

A simples leitura do texto possibilita o entendimento do fato incriminado, sendo necessário para sua comprovação a prova testemunhal, devendo ser considerado a possibilidade de prisão em flagrante por ocasião do crime, em sua modalidade consumada ou tentada.

Não se pode dizer o mesmo do art. 4º, da Lei do Colarinho Branco, que prevê como crime “gerir fraudulentamente instituição financeira”.

Para se ter como típico o fato jurídico, ter-se-á que se definir o que se entende por gestão e o que se entende por gestão fraudulenta, conceitos extrapenais e de contornos muito pouco definidos.

Por outro lado, ainda que se definam os limites dos elementos normativos do tipo, ter-se-á que se fazer grande esforço de investigação para se obter provas do crime, mais das vezes praticado por meio de pessoas jurídicas, sendo praticamente impossível caracterizar-se um flagrante.

Tais exemplos demonstram um dos motivo da justiça penal ser célere em relação ao pobre e extremamente morosa em relação aos “crimes de rico” (chamados por Sutherland como white collar crimes, numa referência a vestimenta dos empresários, a qual opõe aos operários, possuidores de blue collar, numa alusão aos macacões de trabalho).

Em outros aspectos se vislumbra a preocupação do legislador penal na proteção do patrimônio e no controle da classe econômica menos favorecida.

Veja-se, por exemplo, o tratamento dado a alguns crimes contra o patrimônio, como por exemplo o furto, em que a despeito da ausência de violência, não se tem como relevante a vontade da vítima para a persecução penal.

No crime de lesão corporal leve e lesão corporal culposa, este típico de acidentes de trânsito, não se prescinde da manifestação da vítima, a qual mediante compensação financeira, pode deixar de exercer seu direito de representação deixando o criminoso, livre da ação penal.

4) Conclusão
De todo exposto, cumpre perceber, ainda que de forma superficial, uma lógica no sistema jurídico pátrio, segundo a qual a legislação civil, que atribui direitos patrimoniais, tem com pressuposto de aplicação o preenchimento de requisitos que tornem o sujeito como elemento economicamente ativo dentro da sociedade.

Por outro lado, a legislação penal leva em conta o mesmo pressuposto mas com finalidade diversa, que é a proteção dos sujeitos que possuam relevância econômica contra os que, estando marginalizados e excluídos, possam atentar contra o patrimônio das classes mais favorecidas.

Por certo, o problema ora enunciado é bem mais complexo, não cabendo esgotar sua discussão em contornos tão estreitos como o do presente trabalho.

Necessário registrar, contudo, que o momento atual tem demonstrado exemplos de mudança dentro do mecanismo penal, dentre os quais se destacam as ações penais e de improbidade que tem produzido resultado no que pertine aos crimes contra o patrimônio público.

Todavia, tais mudanças possuem ainda caráter de exceção, sendo incipientes se considerado o sistema como um todo e a lógica que ainda norteia seu funcionamento.

5) Bibliografia
1 – BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone Editora. 1995.

2 – FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora. 1996.

3 – RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. vol. 6. São Paulo: Saraiva. 20ª edição. 1994.

4 – SANTOS, Boaventura de Sousa. O Discurso e o Poder. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1988.

Luiz Cláudio Carvalho de Almeida é Promotor de Justiça e Professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito de Campos.

[1] É interessante registrar uma passagem do pensamento de Thibaut, defensor da adoção do Código, que denota o espírito da concepção de que ora se cogita : “Muitas partes do direito civil são, por assim dizer, somente uma espécie de pura matemática jurídica em cuja posição não pode ocorrer nenhum influxo decisivo, como a doutrina da propriedade, da sucessão, as hipotecas, etc.” (apud Bobbio, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone Editora. 1995, p. 59).

[2] Não se ignora aqui que o Direito Civil brasileiro sofreu profundas alterações após a edição da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, mas o que se pretende demonstrar é o espírito que norteou o legislador do Código Civil de 1916 e que de certa forma ainda representa o espírito de nossa sociedade.

[3] Art. 530 – Adquire-se a propriedade imóvel:

I – pela transcrição do título de transferência no Registro do Imóvel;

II – pela acessão;

III – pelo usucapião;

IV – pelo direito hereditário.

[4] Para maiores informações ver O Discurso e o Poder. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1988.

[5] Op. cit., p. 14.

[6] A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora. 1996, p. 94.

[7] Não se pode deixar de destacar também o grande número de processos e condenações por delitos relacionados a uso e tráfico de entorpecentes, cuja análise sobre a ótica econômica, demandaria, por si só, um ensaio e separado.

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