A temática relativa ao cheque-caução tem gerado debates acalorados. Aqueles que defendem a sua ilegalidade amparam-se sobretudo no Código de Defesa do Consumidor, cuja legislação traçou uma disciplina de cunho protetivo. Existem julgados reconhecendo a ilegalidade da exigência do cheque-caução por entender que o paciente apõe sua assinatura em um momento de extrema fragilidade emocional. Por essa razão, o documento não seria reflexo de uma manifestação de vontade livre e consciente.
Em sentido contrário, os hospitais defendem a manutenção desse instrumento, na medida em que são instituições privadas e não podem fazer as vezes do Estado, prestando serviços de assistência médica gratuitamente. Dessa forma, o cheque-caução seria uma mera garantia para recebimento de valores a título de despesas decorrentes da internação do paciente no estabelecimento hospitalar.
De todo esse debate, que se agravou após a edição da Resolução Normativa nº 44 da Agência Nacional de Saúde Suplementar, percebe-se incongruências de toda ordem, tanto por parte dos hospitais que superestimam esse instrumento como único meio para o recebimento dos seus créditos, como também por aqueles que defendem sua extinção, adotando retóricas sensacionalistas e exageradas.
O objetivo do presente trabalho é esclarecer aos hospitais quais as vantagens e desvantagens com o emprego do cheque-caução e eventuais alternativas que poderiam ser utilizadas para sua substituição como instrumento jurídico visando ao recebimento de valores a que os estabelecimentos hospitalares fazem jus.
MODUS OPERANDI DA EXIGÊNCIA DO CHEQUE CAUÇAO
Nem sempre os hospitais agem com acerto no relacionamento com os seus pacientes. Reconhece-se que a prestação de serviços envolvendo serviços médico-hospitalares envolve inúmeras particularidades. Primeiramente, a dificuldade indiscutível em se precisar o valor do procedimento de que o paciente necessita. Quando o paciente é internado em um hospital em uma situação de urgência ou emergência é difícil estabelecer a priori a causa de um determinado mal e mesmo quais os procedimentos que deverão ser adotados. Essa dificuldade resulta muitas vezes na impossibilidade de se estabelecer um orçamento dos serviços a serem executados.
Em outros serviços a situação não é diferente. Quando um consumidor deixa um aparelho para uma assistência técnica consertá-lo também é difícil ser formulado, de pronto, um orçamento constando o preço do serviço a ser executado. Após um determinado prazo, o consumidor procura novamente a assistência técnica, autorizando ou não a realização do conserto de acordo com o orçamento proposto.
O Código de Defesa do Consumidor estabelece em seu art. 40 que o fornecedor será obrigado a entregar ao consumidor orçamento prévio discriminando o valor da mão de obra, dos materiais e equipamentos a serem empregados, as condições de pagamento, bem como as datas de início e término dos serviços. Uma vez aprovado, o orçamento obriga os contraentes e somente pode ser alterado mediante livre negociação das partes.
Em que pese a clareza da dicção do dispositivo legal, surge o questionamento de como esse orçamento pode ser realizado pelo estabelecimento hospitalar em vista do fato de que a saúde não pode esperar muitas vezes a realização de um documento contendo informações sobre os procedimentos a serem empregados, bem como materiais, medicamentos etc., além da constatação da própria imprevisibilidade da evolução do diagnóstico e tratamento. Com certeza, a prestação do serviço de assistência médica atende situações em que a demora poderá representar perdas irreversíveis para o paciente.
De forma correlata a essa questão, os hospitais vivenciam problemas sérios para recebimento de valores quando seus pacientes possuem cobertura de planos e seguros de saúde. Os consumidores que se apresentam como titulares de um plano de saúde em tese fazem jus a uma cobertura dos serviços de assistência médico-hospitalar, devendo os custos ser suportados pela operadora.
Com base em uma solicitação do médico para a realização de um procedimento ou internação, a operadora autoriza, ou não, a realização do ato solicitado, expedindo a respectiva guia. Tal medida é muito comum em procedimentos eletivos em que o paciente dispõe de um certo tempo para adotar as providências cabíveis. No entanto, nem sempre o paciente dispõe desse tempo e o hospital, visando se resguardar de uma eventual negativa de cobertura da operadora, procura se cercar de garantias a fim de que não venha a amargar um prejuízo decorrente da inadimplência do consumidor. Nesse momento, surgem as maiores controvérsias.
As operadoras de planos e seguros de saúde não dispõem de um serviço de atendimento 24hs que permitam aos hospitais tomarem conhecimento da situação contratual do paciente de imediato. Algumas empresas só encaminham a autorização depois de 48hs, surgindo aí a dúvida atroz de qual garantia que o hospital possui para fundamentar a cobrança dos custos a esse paciente ou aos seus familiares.
Não se nega que a exigência de uma garantia qualquer que seja ela pode causar dissabores para os consumidores. Isso porque muitos consumidores possuem a plena expectativa de que estão acobertados pelos planos de saúde contratados, motivo pelo qual consideram aquela exigência descabida. Outros consumidores, talvez sensibilizados pelos motivos apresentados pelo hospital no sentido de que o estabelecimento não pode ser qualificado como um plano de saúde, contestam os valores inseridos no título de crédito, entendendo que a quantia é aleatória e não guarda correspondência com os serviços que provavelmente o paciente necessitará. Em uma outra situação o paciente poderá ser obrigado a recorrer a ajuda de amigos e familiares para atender a exigência do hospital, gerando constrangimentos e aborrecimentos. Tudo isso ocorre em um momento de angústia e aflição, no qual a maior expectativa do paciente é exatamente obter o tratamento de que necessita.
O conflito de interesses produz desgastes em um relacionamento que deveria ser estabelecido com base na mútua confiança e no respeito recíproco. Para o hospital a necessidade que se apresenta é possuir meios que lhe forneça condições para receber o crédito de sua titularidade. O questionamento que se vislumbra é se esse meio é o melhor que poderia ser adotado no caso em questão.
O relacionamento do paciente com a operadora de planos de saúde e com o hospital
Os contratos firmados entre as operadoras de planos de saúde e o hospital exigem que o atendimento ao paciente seja feito somente mediante a apresentação pelo consumidor do cartão de identificação acompanhado do comprovante de validade. Nos casos de emergência comprovada, o hospital assume a obrigação de atender o usuário, devendo este comprovar no prazo de 24 horas úteis (ou outro prazo assinalado) para comprovar sua condição de usuário, elegibilidade ao plano com eventuais carências cumpridas. Decorrido esse prazo, o hospital fica desobrigado de atendê-lo de acordo com o contrato firmado, passando a considerá-lo particular, isentando, por óbvio, a operadora de qualquer responsabilidade.
Outro instrumento contratual disponibilizado pelas operadoras faz previsão de um prazo de 48 horas úteis para o beneficiário providenciar a guia de autorização, permitindo, ainda, que o hospital exigir o cheque-caução, que será devolvido assim que for entregue a referida guia de autorização.
O hospital, portanto, após não ter sido apresentada a guia de autorização no prazo estipulado, pode considerar o paciente como particular, passando a adotar o mesmo tratamento jurídico dispensado ao mesmo. Nessa linha de raciocínio, o cheque-caução serve apenas como uma garantia tendo em vista a ausência de informações quanto a existência ou não de cobertura contratual para um determinado procedimento ou mesmo se o paciente já cumpriu com a carência legalmente fixada, se está em dia com o pagamento de suas mensalidades, etc.
As negativas de cobertura são mais comuns para aqueles contratos celebrados antes da vigência da Lei 9.656/98, eis que esses pactos possuem inúmeras cláusulas de exclusão, inclusive no tocante a limitação de prazo de internação em CTI, cobertura de órteses e próteses etc. O art. 35 do citado diploma legal estabelece que as novas disposições só seriam aplicadas aos contratos celebrados a partir da vigência da lei, tendo sido assegurado aos usuários o direito de optar pela adaptação ao sistema previsto na nova regulamentação.
A Lei 9.656/98 autorizou expressamente segmentações nas coberturas previstas contratualmente, prevendo o atendimento ambulatorial, internação hospitalar, atendimento obstétrico e atendimento odontológico. Na hipótese do atendimento hospitalar, cite-se o fato de que a legislação admite a exclusão de procedimentos obstétricos. O art. 11 da lei prevê que nos primeiros vinte e quatro meses de vigência do instrumento contratual a operadora não será obrigada a custear as despesas relativas a doenças preexistentes, desde que se desincumba do ônus da prova e da demonstração do conhecimento prévio do consumidor ou beneficiário.
No caso do plano-referência, a operadora fica desobrigada a custear tratamento clínico ou cirúrgico experimental, procedimentos clínicos ou cirúrgicos para fins estéticos, bem como órteses e próteses para o mesmo fim, inseminação artificial, tratamento de rejuvenescimento ou de emagrecimento com finalidade estética, fornecimento de medicamentos importados não nacionalizados, fornecimento de órteses e próteses e seus acessórios não ligados ao ato cirúrgico etc.
Assim, percebe-se que em diversas oportunidades o hospital fica submetido a uma situação de completa insegurança, porquanto não sabe se a operadora irá ou não fornecer a autorização necessária com base na legislação de regência ou com base no contrato firmado com os usuários.
Ademais, os gastos extraordinários não são acobertados pelas operadoras, tais como refeições de acompanhante, refrigerantes, jornais, revistas, lavagem de roupas pessoais, telefonemas e outros serviços considerados supérfluos.
Por outro lado, nem sempre o hospital é contratado para atender todas as categorias de usuários. Alguns estabelecimentos são contratualmente proibidos de atender usuários integrantes de uma determinada categoria de consumidor, sob pena de se responsabilizar pelos atendimentos.
Essas considerações são importantes para que fique esclarecido que nenhum usuário possui cobertura ampla e irrestrita para todo tipo de agravo de saúde e tratamentos médicos necessários, o que torna, em princípio, justificáveis as medidas adotadas pelos hospitais no sentido de se resguardarem.
Da Resolução nº 44 da Agência Nacional de Saúde Suplementar
Inicialmente, é importante considerar que, embora muitos defendiam a ilegalidade da exigência de cheque-caução, até a edição da Resolução n. 44 da Agência Nacional de Saúde Suplementar inexistia qualquer norma proibitiva expressa quanto a exigência desse documento.
Está em tramitação no Congresso Nacional um Projeto de Lei de nº 6389/02 propondo a alteração da legislação em vigor para proibir a exigência do cheque-caução na contratação estabelecida entre entidades hospitalares e pacientes acobertados por planos de saúde.
Na esteira dessa discussão, a Agência Nacional de Saúde Suplementar editou em 24 de julho de 2003 a RESOLUÇÃO Normativa n. 44, cuja redação transcreve-se a seguir:
“RESOLUÇÃO NORMATIVA-RN Nº 44, DE 24 DE JULHO DE 2003
Dispõe sobre a proibição da exigência de caução por parte dos Prestadores de serviços contratados, credenciados, cooperados ou referenciados das Operadoras de Planos de Assistência à Saúde.
A Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, no uso das atribuições que lhe confere o inciso VII do art. 4º da Lei n.º 9.961, de 28 de janeiro de 2000, considerando as contribuições da Consulta Pública nº 11, de 12 de junho de 2003, em reunião realizada em 23 de julho de 2003, adotou a seguinte Resolução Normativa e eu, Diretor-Presidente, determino a sua publicação.
Art. 1º Fica vedada, em qualquer situação, a exigência, por parte dos prestadores de serviços contratados, credenciados, cooperados ou referenciados das Operadoras de Planos de Assistência à Saúde e Seguradoras Especializadas em Saúde, de caução, depósito de qualquer natureza, nota promissória ou quaisquer outros títulos de crédito, no ato ou anteriormente à prestação do serviço.
Art. 2º Fica instituída Comissão Especial Permanente para fins de recepção, instrução e encaminhamento das denúncias sobre a prática de que trata o artigo anterior.
§ 1º As denúncias instruídas pela Comissão Especial Permanente serão remetidas ao Ministério Público Federal para apuração, sem prejuízo das demais providências previstas nesta Resolução.
§ 2º Os processos encaminhados ao Ministério Público Federal serão disponibilizados para orientação dos consumidores no site da ANS, www.ans.gov.br.
Art. 3º A ANS informará à operadora do usuário reclamante quanto às denúncias relativas a prestador de sua rede, bem como a todas as demais operadoras que se utilizem do referido prestador, para as providências necessárias.
Pela leitura desse ato normativo percebe-se inicialmente o equívoco em se limitar a expedição do cheque-caução para toda e qualquer situação por parte dos prestadores de serviços contratados pelas operadoras de planos de saúde. Conforme já assinalado anteriormente, são inúmeras situações em que o consumidor não está amparado pela cobertura de seu plano de saúde, evidência que pode muitas vezes ser aferida até mesmo pelo tipo de prestação de serviço contratado, como, por exemplo, um plano exclusivamente ambulatorial.
Com a vigência dessa Resolução, adotando-se uma interpretação literal de seus dispositivos, o Hospital que possui um contrato com uma operadora de plano de saúde não poderá exigir qualquer tipo de depósito, caução, nota promissória ou títulos de crédito no ato ou anteriormente à prestação do serviço até mesmo daquele consumidor que, a priori, já se sabia que o mesmo não possuía direito a cobertura do plano de saúde.
A redação da Resolução é lacunosa, genérica e, portanto, manifestamente desarrazoada.
É importante analisar a própria competência da Agência Nacional de Saúde Suplementar para impor essa vedação às entidades hospitalares.
A ANS foi criada com o propósito de fiscalizar e regular o setor dos planos e seguros de saúde, devendo tais entidades obter autorização da autarquia para que possam atuar nesse mercado.
Essa autarquia especial não tem, portanto, atribuições de fiscalização das entidades hospitalares, já que estas estão submetidas ao poder de polícia exercido pela Vigilância Sanitária e demais órgãos competentes como, por exemplo, os gestores do Sistema Único de Saúde.
Nesse caso, a ANS agiu com evidente transgressão às regras de competência(1), tomando para si uma função que não lhe compete, qual seja, impor regras de condutas para os estabelecimentos hospitalares, mesmo que envolva a contratação de planos e seguros de saúde.
As medidas adotadas pelos estabelecimentos hospitalares não violam qualquer norma contida na Lei 9.656/98. O correto seria a ANS disciplinar o fornecimento de guias de autorização para os prestadores de serviços credenciados, determinando maior agilidade nas respostas e exigindo um plantão permanente nas operadoras.
A Lei 9.961, de 28 de janeiro de 2000, estabeleceu que a ANS é órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde. Sua finalidade institucional é promover a defesa do interesse público, regulando as operadoras setoriais. Esse diploma legal autoriza que a ANS fixe critérios para os procedimentos de credenciamento e descredenciamento de prestadores de serviços às operadoras.
Não há nesse dispositivo legal, citado pela ANS para editar a RN 44, qualquer autorização para que sejam impostas regras às entidades hospitalares, sobretudo em situações em que sequer o paciente possui cobertura contratual. Trata-se de uma questão de natureza contratual envolvendo o paciente e a entidade hospitalar, tendo como pressuposto o fato de que em razão da inexistência de uma relação obrigacional entre o plano de saúde e o paciente devem ser estabelecidos mecanismos eficazes capazes de garantir o recebimento de valores devidos às entidades hospitalares.
Para corroborar esse entendimento, percebe-se que a própria Resolução não prevê multas a serem aplicadas aos hospitais, na medida em que a ANS não possui competência para penalizar os prestadores, mas tão somente as operadoras de planos e seguros de saúde, evidenciando também sua incompetência para regular a atuação das entidades hospitalares.
A Resolução fez previsão a um procedimento que visa a constranger o nosocômio a cumprir a determinação quanto a proibição de exigência de qualquer tipo de depósito na contratação com o paciente. Nesse sentido, após recebidas as denúncias formuladas pelos usuários a ANS encaminhará as mesmas ao Ministério Público Federal para a adoção das medidas competentes, bem como disponibilizará tal informação no seu site, informando, ainda, as operadoras quanto às denúncias relativas a prestador de sua rede.
O Ministério Público Federal, após receber a denúncia, deverá instaurar um procedimento para apurar a sua veracidade. Nesse caso, o MPF não está obrigado a considerar a ilegalidade do comportamento adotado pelo hospital com base na Resolução Normativa 44 da ANS. A independência constitucional conferida aos membros do Ministério Público permite que esses possam examinar a plausibilidade de tal exigência no caso concreto e à luz do ordenamento jurídico em vigor. Caso o MPF reconheça a ilegalidade da conduta, poderá assinar um termo de ajustamento de conduta com o hospital ou mesmo ingressar em Juízo para compelir o prestador a adotar o comportamento que considera correto.
Diversas particularidades, conforme já assinalado, conduz ao raciocínio de que a exigência do cheque-caução resulta na concepção de um negócio jurídico condicional, ou seja, cuja eficácia depende da implementação de uma condição suspensiva, qual seja, a negativa formulada pela operadora de planos e seguros de saúde. Assim sendo, caso a autorização seja formulada pela operadora aquela garantia terá sua validade jurídica fulminada.
Outra medida que se mostra juridicamente questionável é a providência de inserir no site da ANS as denúncias encaminhadas pelos consumidores, bem como informar às operadoras tais fatos.
A garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa(2) foi claramente comprometida com esse tipo de previsão. Ora, não se pode admitir que uma denúncia seja disponibilizada para acesso geral do público sem que a entidade hospitalar possa formular sua defesa(3), considerando o fato de que muitas vezes a denúncia pode ser infundada, objetivando tão somente trazer prejuízos ao estabelecimento hospitalar.
A informação disponibilizada no site poderá provocar prejuízos à imagem da entidade hospitalar, bem como resultar até mesmo no seu descredenciamento junto a operadora, motivo pelo qual é fundamental franquear ao mesmo o direito de formular eventual defesa junto a ANS, embora seja evidente a incompetência daquela autarquia para proceder tais registros ou mesmo instaurar um procedimento administrativo com o objetivo de apurar eventual descumprimento das normas legais. Assim sendo, esses dispositivos questionados são inconstitucionais.
Caso efetivamente fosse correto o mérito da Resolução Normativa, a única providência que a ANS poderia adotar seria encaminhar as denúncias ao Ministério Público Federal. Nada mais. Essa Resolução caso seja aplicada na forma como foi redigida poderá inclusive expor a ANS a futuras ações de reparação de danos, caso o hospital venha a sofrer qualquer espécie de prejuízo em razão do comportamento ilegal adotado pela autarquia, inclusive pleitear indenização por dano moral em face do desgaste provocado na imagem da instituição, possibilidade essa amplamente aceita pelos nossos tribunais.
Interessante fazer um paralelo aqui com o chamado cadastro de fornecedores instituído pelo Código de Defesa do Consumidor. Nesse caso, o cadastro só conterá registro de reclamações fundamentadas dos consumidores após regular processo administrativo, só podendo ser formalizado após decisão definitiva da autoridade competente, conforme disciplina traçada pelo Decreto 2181, de 30 de março de 1997.
Outro aspecto que desponta para fulminar a validade da Resolução Normativa é a inaptidão de um ato infra-legal inovar no ordenamento jurídico. Inexiste qualquer dispositivo legal até o presente momento que considere a conduta adotada pelos estabelecimentos hospitalares como ilegal.
Embora alguns possam defender o entendimento de que a Resolução buscou seu fundamento de validade no Código de Defesa do Consumidor, que veda a presença de cláusulas contratuais abusivas, não há como prosperar essa argumentação após um exame cuidadoso da questão.
O CDC proíbe, de fato, que o fornecedor possa auferir uma vantagem manifestamente exagerada ou, na dicção do art. 39 da Lei 8.078/90, impingir seus produtos e serviços prevalecendo-se da situação de fraqueza, ignorância e saúde do consumidor.
Ora, deve ser analisado no caso concreto se houve ou não uma prática abusiva, não se podendo admitir a proibição genérica e irrestrita da adoção de um instituto jurídico tradicional nas transações jurídicas, como é o caso da garantia fidejussória, simplesmente com base no argumento simplista de que se trata de um serviço envolvendo a saúde do ser humano.
Embora seja inadmissível a mercantilização da medicina, é preciso ressaltar o conteúdo econômico de um contrato de prestação de serviço médico-hospitalar disponibilizado por uma entidade privada que não mantém convênio com o Sistema Único de Saúde.
Caso o cidadão manifeste sua vontade de obter uma prestação de serviço gratuita deverá recorrer aos hospitais públicos e as entidades filantrópicas e privadas que mantêm convênio com o SUS.
Assim, a decisão do consumidor de procurar uma instituição de saúde privada implica na instituição de um vínculo jurídico obrigacional materializado em um acordo de vontades, em que as partes se obrigam a cumprir prestações recíprocas, competindo ao hospital a prestação dos serviços contratados e ao paciente o pagamento do preço correspondente a esses serviços(4).
O que não se pode admitir é que o hospital imponha exigências desarrazoadas a esses consumidores, exigindo a assinatura de garantias bem acima da estimativa do serviço a ser executado. Entretanto, havendo bom senso e razoabilidade, devendo o hospital, de preferência, elaborar um orçamento discriminando os possíveis serviços a serem executados, seria injusto e juridicamente inaceitável proibi-los de lançarem mão de um instituto jurídico largamente utilizado nas transações entre consumidores e fornecedores.
O Departamento de Defesa do Consumidor considera abusiva, por exemplo, a exigência de nota promissória assinada em branco pelo consumidor. Fora dessa hipótese, não pode ser considerada abusiva a prática de se exigir a assinatura de um título de crédito por parte de uma instituição financeira para garantir o pagamento do empréstimo realizado pelo consumidor. Em alguns casos, o desespero do consumidor para obter um financiamento é ainda maior quando o mesmo se dirige a um hospital, e nem por essa razão o banco se vê impossibilitado de exigir a assinatura de um documento que garanta o pagamento da dívida.
Das alternativas viáveis
Embora todos esses argumentos sejam relevantes para que o debate seja feito dentro da racionalidade jurídica, alguns magistrados de nossos Tribunais não considera válida a exigência do cheque-caução em hipóteses de pacientes que possuem planos e seguros de saúde. Entretanto, de forma nenhuma é possível afirmar que esse entendimento é pacífico.
Uma alternativa proposta por alguns profissionais consiste exatamente na exigência de um sinal ou princípio de pagamento. Ao invés do consumidor fornecer um cheque representando a totalidade do valor do serviço a ser executado, seria assinado tão somente um cheque traduzindo um princípio de pagamento, podendo o hospital compensar o título de crédito na hipótese da operadora não autorizar o procedimento.
Nessa hipótese, seria fundamental a celebração de um contrato de prestação de serviço por via do qual o consumidor ficaria ciente que o cheque seria compensado como sinal caso a operadora não autorizasse a internação ou o procedimento médico necessário. O consumidor, portanto, já teria plena ciência de tal situação, impedindo a incidência do disposto no art. 46 do Código de Defesa do Consumidor, que dispõe:
“Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão do seu sentido e a alcance.”
A cláusula que implica na obrigação do consumidor arcar com o pagamento dos valores na hipótese de recusa da operadora deve ser redigida com destaque, nos termos do art. 54 do CDC, devendo todo o conteúdo do contrato ser redigido em termos claros e com caracteres ostensivos de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor.
Cumprindo essas formalidades e buscando sempre que possível manter o consumidor constantemente informado acerca da conta hospitalar e sua evolução, como é possível sustentar a ilegalidade do sinal a ser exigido pela instituição hospitalar? Afinal de contas, trata-se de um negócio jurídico condicional, possuindo plena validade jurídica caso ocorra a condição prevista contratualmente, qual seja a negativa da operadora de custear as despesas.
O consumidor precisa ser informado expressamente desse risco, sendo esse ônus imputado ao hospital. Assim, é importante que o consumidor seja informado por escrito a respeito da possibilidade de negativa da operadora, inclusive no tocante a materiais cirúrgicos, evitando qualquer alegação de ausência de conhecimento quanto a esse aspecto.
Em que pesem essas considerações, é possível afirmar que inclusive a exigência desse título de crédito como sinal ou princípio de pagamento foi vedada pela Resolução 44 da ANS. Ou seja, somente após a obtenção da negativa de cobertura, que deve ser providenciada o quanto antes, é que é possível exigir a assinatura do documento que garanta o pagamento da dívida, eis que a Resolução veda esse tipo de exigência somente no ato ou anteriormente à prestação do serviço.
Entendo que a interpretação da Resolução da ANS deve ser orientada pela razoabilidade e pela sua finalidade.
Qual foi a finalidade desse ato normativo?
A meu ver, foi exatamente com o escopo de proibir que um paciente titular de um plano de saúde ou seus dependentes venham a ser submetidos a obrigação de fornecer uma garantia quando possuem a legítima expectativa de que a operadora irá acobertar integralmente o tratamento.
Contudo, e quando o paciente já tem ciência da inexistência de cobertura contratual? Obviamente, se a operadora já negou a autorização antes mesmo da prestação do serviço ou se trata de um procedimento que o próprio contrato ou a legislação não contempla como obrigação da operadora de acobertar, entendo que a exigência do sinal ou de uma garantia não poderia ser considerada irregular, eis que o usuário estava fora do espectro de proteção do plano de saúde e propositadamente manifestou seu intento de ser considerado um paciente particular ou assumir o pagamento daquelas despesas de forma extraordinária ao pagamento da operadora.
É importante nessa hipótese harmonizar os interesses das partes contratantes, devendo ser valorizadas condutas que propiciem a satisfação das expectativas dos parceiros contratuais. O abuso de direito não ocorre somente por parte do consumidor, podendo surgir comportamentos matreiros e maliciosos de pessoas que buscam em uma instituição de saúde privada um atendimento gratuito, impondo vultosos prejuízos financeiros aos hospitais.
Trata-se de uma interpretação que se mostra mais consentânea com o bom senso e com a razoabilidade, sob pena de tal Resolução transmudar-se em norma draconiana que visa a regular inclusive a relação jurídica alheia ao plano de saúde como se ato legislativo fosse em uma clara subversão da divisão de poderes constitucionalmente consagrada.
Outra medida que deve ser adotada pelos hospitais dizem respeito a elaboração dos contratos de prestação de serviços hospitalares, contendo a seguinte cláusula:
“O CONTRATANTE deverá entregar, no prazo de ____________, contados do atendimento, a guia de internação emitida pela operadora do plano de saúde, sob pena de ser obrigado a arcar com o pagamento integral de todas as despesas decorrentes de sua internação no estabelecimento hospitalar, submetendo-se às regras e preceitos relativos ao atendimento particular.
O CONTRATANTE manifesta concordância que os exames, atendimentos, procedimentos cirúrgicos e especiais, taxas, materiais e medicamentos, inclusive órteses e próteses, bem como diárias e serviços, não autorizadas pela operadora de plano de saúde, serão cobrados de acordo com a tabela de preços de atendimentos particulares praticadas pelo Hospital.”
Através do contrato de prestação de serviços o hospital dispõe de um instrumento jurídico eficaz para exigir o pagamento das despesas médico-hospitalares, mesmo que o paciente não tenha assinado qualquer garantia. É importante que esse contrato seja elaborado de acordo com as peculiaridades de cada hospital, contendo informações claras e principalmente dispondo acerca das limitações aos direitos dos pacientes.
Além do mais, o hospital pode incluir o nome do consumidor em serviços de proteção ao crédito como mais um instrumento para obter o pagamento dos valores devidos.
Assim sendo, embora existam argumentos jurídicos que possam sustentar a ilegalidade da Resolução Normativa 44 da ANS, até que a mesma seja invalidada recomenda-se a elaboração de contratos de prestação de serviços por parte das entidades hospitalares, devendo tais instrumentos ser mantidos mesmo na hipótese de revogação daquele ato normativo.
Do ponto de vista jurídico, o contrato de prestação de serviço, acompanhado das contas hospitalares, é perfeitamente eficaz para fundamentar uma ação de cobrança na via judicial. O cheque-caução por si só não pode ser considerado como título executivo extrajudicial para fundamentar uma ação executiva.
Isso porque, no momento da sua emissão, o valor dos serviços a serem prestados não é certo, uma vez que não podem ser completamente determinados naquele momento. A natureza da intervenção médica dependerá do diagnóstico, que pode não ser definitivo, das características pessoais do paciente e da resposta ao tratamento, entre outros. Assim, no momento de sua emissão, o cheque, apesar de conter uma quantia certa, não goza dessa certeza e liquidez, por estar vinculado a um negócio jurídico incerto em seu conteúdo.
O cheque nessas condições perde a sua qualidade mais útil que é a possibilidade de ser executado sem questionamento de seu conteúdo. Por estar ligado ao contrato que lhe deu origem, pode ser discutido judicialmente em seu valor da mesma maneira em que pode ser discutido o contrato de prestação de serviços médico-hospitalares. Ele terá valor de um documento comum (obrigação quirografária) que terá que passar por um processo de conhecimento antes de ser constituir num título executável.
Dessa forma, o hospital não poderá utilizar-se do cheque-caução para instruir uma ação de execução, podendo, contudo, buscar a prestação jurisdicional por intermédio de uma ação de cobrança ou mesmo uma ação monitória. É importante também destacar que o contrato de prestação de serviço médico-hospitalar, mesmo que assinado por duas testemunhas, também não pode servir como título executivo, eis que o valor do contrato dificilmente pode ser definido com precisão no momento da internação.
Outra questão que pode ser levantada pelo emitente do cheque no momento de sua execução são as chamadas exceções que o emitente tem em relação ao hospital. Haverá a possibilidade de oposição de exceções pessoais sempre que credor e devedor tenham entre si relações jurídicas, ou seja, que não tenham como vínculo entre si apenas o cheque em questão, mas que entre eles também haja relações outras que possam ser alegadas quando da cobrança.
Com efeito, se estivermos analisando simplesmente a questão jurídica não restam dúvidas de que o hospital está mais bem amparado com um contrato de prestação de serviços bem elaborado do que com um mero cheque-caução que sequer pode ser considerado título executivo e não explicita absolutamente nada acerca das obrigações das partes contraentes. Ademais, o contrato atende os preceitos do Código de Defesa do Consumidor no tocante a devida informação.
Por outro lado, a questão relativa a coerção para que a conta seja paga poderá ser obtida mediante a inclusão do nome dos devedores nos cadastros de restrição ao crédito, devendo tal informação constar no contrato acerca de sua possibilidade.
Notas de rodapé:
1- Lei 9.784/99:
Art. 11. A competência é irrenunciável e se exerce pelos órgãos administrativos a que foi atribuída como própria, salvo os casos de delegação e avocação legalmente admitidos.
Art. 13. Não podem ser objeto de delegação:
I – a edição de atos de caráter normativo;
2- Constituição Federal:
Art. 5.
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
3- Lei 9.784/99: Art. 68. As sanções, a serem aplicadas por autoridade competente, terão natureza pecuniária ou consistirão em obrigação de fazer ou de não fazer, assegurado sempre o direito de defesa.
4- Veja o entendimento externado por um magistrado, posteriormente confirmado pelo Tribunal de Justiça do DF, na Apelação Cível n. 2000 07 1 012580-3, em 26 de agosto de 2002:
“A afirmação de que assinou o ajuste autorizando os procedimentos com volição viciada ante o estado de saúde de seu neto não merece guarida judicial. Ao Embargante era possível procurar a rede pública de hospitais. A eleição do Hospital Embargado, particular, foi livre e enseja a contraprestação pelo pagamento. Seu neto recebeu alta e está saudável. Nada há nos autos que indique procedimento equivocado do Hospital. Ao revés prestou o atendimento adequado. Este Juízo lamenta a condição financeira do Embargante. Lamenta sinceramente as razões do Embargante que ensejaram a eleição do Hospital Particular, entendendo que seu neto seria melhor assistido. Mas não pode imputar ao Embargado o dispêndio havido voluntariamente pelo Embargante. Há o débito. Cumpre ao Embargante o pagamento.”
Roberto Carvalho é advogado do escritório Manucci, Carvalho e Rocha Advogados Associados, sócio-diretor da Juris Consultores e professor do IEC/PUC-MG.