Em todo o território brasileiro, já há alguns anos, tornou-se comum a realização de mega-operações promovidas pelo Departamento de Polícia Federal, destinadas especialmente a atacar as atividades criminosas desenvolvidas por grupos ou quadrilhas, tratando-se de política elogiável e que demonstra a evolução daquela instituição policial, que tem se aparelhado à altura dos criminosos que visa combater [1].
O que vem causando preocupação, mormente no campo da proteção aos direitos humanos em geral, e em particular da proteção à imagem, ao nome e à honra do suspeito ou do indiciado, é a constância com que as elogiáveis mega-operações da Polícia Federal são desenvolvidas com o integral acompanhamento dos meios de comunicação, incluindo imprensa escrita e a televisão.
Esse acompanhamento da mídia tem permitido uma transmissão imediata, não só das notícias alusivas a buscas e apreensão de bens [2] e documentos, mas também da prisão de suspeitos, os quais sequer foram ainda indiciados e via de regra encontram-se submetidos à prisões temporárias [3], cujos requisitos para decretação são significativamente mais maleáveis dos que aqueles inerentes às demais prisões cautelares.
Como decorrência dessa precariedade dos fundamentos autorizadores da prisão temporária, não há garantia de que o suspeito preso, fotografado, filmado, exposto aos olhares e às críticas de milhões de pessoas, venha a ser indiciado e, muito menos que venha a ser processado, o que evidencia a temeridade da submissão dessas pessoas humanas investigadas aos holofotes e flashes, no calor da operação policial.
A autoridade responsável pela operação policial tem o dever de zelar pela integridade não só física, mas também moral da pessoa investigada, eis que a Lei 4.898, de 9 de Dezembro de 1965, dispõe que constitui abuso de autoridade “submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei” e, ainda, que constitui o mesmo crime “o ato lesivo da honra […] quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal. ”
Ora, não há qualquer lei que autorize a autoridade policial a submeter o suspeito ou mesmo o indiciado (investigado) ao constrangimento de ser filmado ou fotografado pelos profissionais ligados aos meios de comunicação jornalística e, acha-se patente que esse investigado não perde a sua condição de ser humano e a proteção constitucional a sua honra e imagem (CF, art. 5º, incisos V e X). Logo, quando a autoridade que mantém a custódia dele vem a submetê-lo a tal constrangimento, age com manifesto abuso de autoridade e em afronta à Lei respectiva, sendo a sua conduta tão criminosa quanto aquela que a sua ação visa a combater.
Notas
[1] Somente no primeiro semestre de 2005 foram realizadas as operações denominadas alcatéia, predador, petisco, pretorium, big brother, clone, terra nostra, caronte, ajuste fiscal, dragão, buritis, março branco, tango, castanhola, hidra, guabiru, curupira, anjo da guarda, panorama, cevada, tentáculos, tâmara, mercúrioe monte éden, sendo que “A Operação Hidra foi a maior ação da história da Polícia Federal para combate ao crime de contrabando e descaminho. Desencadeada no dia 04 de maio, a operação prendeu 67 pessoas e contou com a participação de mais de 750 policiais federais. A quadrilha que foi alvo da ação tinha como base principal a cidade de Maringá, além de ramificações em outras cidades do Paraná e do estado de Mato Grosso do Sul.”conforme relatório de atividades publicado no site “
[2] O Ministério da Justiça, já tardiamente, através das Portarias n. 1287 e 1288 veio a normatizar a atuação da Polícia Federal no cumprimento das diligências de busca e apreensão em geral e aquelas realizadas em escritórios de advocacia. As duas portarias foram publicadas pelo Ministério da Justiça no Diário Oficial da União de 01 de julho de 2005.Conforme as normas, as diligências de busca e apreensão devem ocorrer sem a presença de pessoas alheias ao seu cumprimento. Também deverá ser preservado “ao máximo a rotina e o normal funcionamento do local da diligência, de seus meios eletrônicos e sistemas informatizados”. Fica definido ainda, que salvo expressa determinação judicial em contrário, não serão apreendidos suportes eletrônicos, computadores, discos rígidos, bases de dados e qualquer outro mecanismo de armazenamento de informação que possam ser analisados por cópia (back-up). Assim como ocorre atualmente, os objetos apreendidos que não tiverem relação com o fato em apuração serão imediatamente restituídos, diz o texto. Advogados – A portaria 1.288 é mais específica, limitando-se ao cumprimento de mandados judiciais de busca e apreensão nos escritórios de advocacia. O texto considera que as prerrogativas profissionais não podem se impor de forma absoluta. Por outro lado, o poder da autoridade policial não deve “se revestir de caráter ilimitado”. Assim, as considerações iniciais da portaria estabelecem condutas que zelam pelo respeito mútuo entre os policiais e os profissionais da área de Direito durante as diligências. O artigo primeiro da portaria resolve que o fato de o local de busca e apreensão ser um escritório de advocacia “constará expressamente” na representação formulada pela Polícia Federal para expedição do mandado. Além disso, a autoridade policial responsável pelo cumprimento do mandado comunicará previamente a Ordem dos Advogados do Brasil, que poderá acompanhar a execução da diligência. A portaria do MJ estabelece que as diligências só poderão ser requeridas à Justiça quando houver provas ou fortes indícios de envolvimento do advogado em ato delituoso, ou indícios de que o profissional detém objeto do crime, bem como dados imprescindíveis à sua elucidação. Salvo expressa determinação judicial em contrário, diz o documento, não podem ser apreendidos nos escritórios de advocacia cartas, fax, mensagens de e-mail e outras formas de comunicação entre advogado e cliente protegidas pelo sigilo profissional.
[3] A Lei 7.960/89 (dispõe sobre as prisões temporárias): em seu art. 1º, o qual prevê os casos de cabimento das prisões temporárias, como forma de regulamentar as chamadas “prisões para averiguação” que eram uma prática comum e ilegal: “Art. 1° Caberá prisão temporária: I – quando imprescindível para as investigações do inquérito policial; II – quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade; III – quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes: a) homicídio doloso (art. 121, caput, e seu § 2°); b) seqüestro ou cárcere privado (art. 148, caput, e seus §§ 1° e 2°); c) roubo (art. 157, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°); d) extorsão (art. 158, caput, e seus §§ 1° e 2°); e) extorsão mediante seqüestro (art. 159, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°); f) estupro (art. 213, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único); g) atentado violento ao pudor (art. 214, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único); h) rapto violento (art. 219, e sua combinação com o art. 223 caput, e parágrafo único); i) epidemia com resultado de morte (art. 267, § 1°); j) envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte (art. 270, caput, combinado com art. 285); l) quadrilha ou bando (art. 288), todos do Código Penal; m) genocídio (arts. 1°, 2° e 3° da Lei n° 2.889, de 1° de outubro de 1956), em qualquer de sua formas típicas; n) tráfico de drogas (art. 12 da Lei n° 6.368, de 21 de outubro de 1976); o) crimes contra o sistema financeiro (Lei n° 7.492, de 16 de junho de 1986)”.
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Sérgio Ricardo de Souza é juiz de Direito, mestre em Direito Constitucional, doutorando Ciências Sociais e Jurídicas pela UMSA (Buenos Aires), professor de Direito Penal e Processual Penal e diretor da Escola da Magistratura do Estado do Espírito Santo.