As novas regras dos EUA e o mercado de capitais no Brasil

Marcelo Trindade*

Diante da revelação de graves erros e omissões substanciais em balanços de diversas companhias abertas, e da conseqüente perda de muitos bilhões de dólares no valor de mercado das companhias americanas negociadas em bolsa, os Estados Unidos rapidamente reagiram.

Através da aprovação pelo Congresso do Sarbanes-Oxley Act, em 30 de julho passado, e mais recentemente, em 28 de agosto, com a edição pela Securities and Exchange Comission – SEC (a CVM americana), de algumas das normas regulamentares exigidas por aquela lei, as autoridades americanas pretenderam dar uma rápida resposta às justas ansiedades do mercado.

Além disto, a Bolsa de Valores de Nova Iorque aprovou em 1° de agosto, e submeteu à SEC, diversas normas que imporão, como condição de listagem naquela bolsa, novos requisitos de governança corporativa das empresas. Do mesmo modo, o Nasdaq, em que são basicamente negociadas ações de companhias de tecnologia, também anunciou, em maio e julho passados, normas da mesma espécie, igualmente sujeitas à aprovação da SEC.

As principais modificações promovidas ou propostas nessas diversas frentes têm muito em comum. Em parte preocupam-se com a responsabilidade dos executivos das companhias, seja ao obrigá-los a comprometerem-se mais com os balanços e demais informações financeiras das companhias, seja ao aumentarem as penalidades por fraudes naqueles documentos.

De outro lado, muitas regras pretendem aumentar a independência (e conseqüentemente o poder) de certos administradores, como os membros do Comitê de Auditoria dos Conselhos de Administração das companhias, bem como evitar que quaisquer administradores se beneficiem, na venda de ações, de cotações elevadas com base em informações equivocadas sobre as companhias. Também os auditores receberam especial atenção, sendo-lhes exigida uma independência de fato, e não apenas formal, através, por exemplo, da proibição de prestação de serviços de consultoria e outros enquanto estiverem atuando na auditoria de um certa empresa.

A análise desse conjunto de medidas, se nos deixa a nós, brasileiros, com uma sensação de dever cumprido, não pode e não deve fazer aquietar o necessário ânimo de atualização do legislador e da CVM. É verdade que, em sua maioria, as normas agora adotadas nos EUA já existem entre nós, e há muito tempo (o que comprova, ainda outra vez, a extrema qualidade da nossa Lei das S.A., editada em 1976 com base no magnífico projeto de José Luiz Bulhões Pedreira e Alfredo Lamy Filho).

A diretoria de nossas companhias sempre foi responsável pela elaboração dos balanços, por força do art. 176 da Lei das S.A., e esse balanço já é assinado por administradores, por força do art. 177, parágrafo 4° daquela lei. Embora a lei não cuide dos Comitês de Auditoria (cuja criação, entretanto, é permitida), o nosso Conselho Fiscal tem responsabilidades ainda mais graves, e um dever de independência (ao menos formal, como o agora exigido de certos administradores nos EUA) que não apenas decorre da lei (art. 162, parágrafo 2° e 165, parágrafo 1° da Lei das S.A.), como tem sido reiteradamente ressaltado pela CVM, em diversas decisões administrativas.

Diga-se o mesmo, do ponto de vista da regulação baixada pela CVM. Os auditores já são chamados a não prestar serviços de consultoria, ou outros “que possam caracterizar a perda de sua objetividade e independência”, seja através da Instrução CVM 308/99 (cuja vigência está nesta parte suspensa por liminares obtidas pelos auditores), seja através de regras de divulgação, como a da Instrução CVM 361/02, que impõe aos avaliadores a informação pública do quanto receberam, no ano anterior, da companhia avaliada. Do mesmo modo, a proibição de negociação de ações por administradores em certos períodos de black-out, que aliás já existia na legislação dos EUA em outras hipóteses, também foi incorporada à nossa regulamentação no início deste ano, através da Instrução CVM 358/02.

Além disto, em alguns casos nossa regulação parece ser mais avançada que a dos Estados Unidos. A nova lei americana ainda considera privativa do Poder Judiciário a imposição de pena de inabilitação para o exercício de funções de administrador de companhia, enquanto a Lei 6.385/76 atribui à CVM o poder de impor tal penalidade, o que ocorre muito freqüentemente, desde 1978.

Os administradores nos EUA continuam respondendo apenas por atos praticados com dolo ou consciência de estarem atuando em desacordo com a lei, ou da existência de uma fraude, enquanto no Brasil, ao menos do ponto de vista de responsabilidade administrativa e civil, exige-se dos administradores um padrão de conduta, no exercício de suas atribuições, que os torna responsáveis caso atuem com negligência ou imprudência (art. 153 da Lei das S.A.).

Mas a constatação de que nossa regulação é de bom nível não deve arrefecer o ânimo de aperfeiçoamento. Do ponto de vista do Congresso deveria ser objeto de refletido estudo a edição de algumas regras que demandam a existência de lei, como as que criam ou aumentam penalidades criminais, e proíbem a prática de certos atos – como empréstimos aos administradores, permitidos entre nós e agora em geral vedados nos EUA.

No que toca à CVM, a solução do impasse gerado pela obtenção de liminares pelas empresas de auditoria, suspendendo a vigência da proibição de prestação de serviços de consultoria, possivelmente através da imposição de regras de divulgação como a da Instrução 361/02, parece ser o caminho que se imagina trilhar, segundo inclusive tem noticiado a imprensa recentemente. E no que concerne ao Poder Executivo, o reconhecimento de que a CVM é auto-suficiente financeiramente, e portanto deve ter os seus recursos preservados, de modo a aparelhar-se e desempenhar corretamente suas funções, deveria ser a maior conseqüência dos recentes episódios nos EUA.

Por fim, do ponto de vista dos agentes de mercado, e daqueles que, como este articulista, acreditam na importância fundamental da boa governança corporativa para o desenvolvimento do mercado de capitais, os fatos recentes e a nova legislação americana devem motivar uma reflexão que decorre mais das nossas diferenças que das semelhanças com o maior mercado do mundo. A preocupação americana de alinhar os interesses dos administradores com os dos acionistas dispersos, pulverizados e desorganizados, não faz muito sentido entre nós.

Aqui são ainda poucos os administradores que comandam companhias sem deverem obediência (ou ao menos o emprego) a acionistas controladores perfeitamente identificados. Por aqui, o acionista controlador deve continuar a ser o principal centro das atenções do legislador e dos reguladores. Mas não apenas para que se estabeleçam responsabilidades e proibições (como a que se poderia erigir, de empréstimos desnecessários para a companhia).

Talvez seja chegada a ora de admitir que a construção de um mercado financeiro sadio e desenvolvido não exclui a figura do controlador, ou de grupos de controle, responsáveis e preocupados com a geração de valor para todos os acionistas. Há diversos exemplos vivos dessa realidade entre nós, e talvez seja neles que devamos apostar como modelo de um mercado local.

Companhias em que o acionista controlador concentra seus investimentos, elege administradores capazes, adota práticas de divulgação adequadas, e tem participação substancial no capital, alinhando seus interesses com os dos demais acionistas. Em suma: companhias de um mercado que não será construído à imagem e semelhança do americano, mas com o qual talvez devamos passar a sonhar.

Revista Consultor Jurídico

Marcelo Trindade é sócio de Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados, ex-diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e professor do Departamento de Direito da PUC/RJ

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