As regras de prescrição em casos administrativos que também são crimes

Autor: Pedro Henrique Colombini Delpino (*)

 

O presente trabalho pretende elucidar pontos acerca de uma questão que divergia interpretações, principalmente, no Estado de Minas Gerais: a incidência das regras de prescrição da legislação penal nos casos de infrações administrativas também capituladas como crime. Importante afirmar que uma das principais razões para preocupação com este entendimento no Estado de Minas Gerais se deu devido ao absenteísmo do legislativo mineiro em regular completamente os casos de prescrição por demissão no Estado. Por esse motivo, buscamos, por meio de análise jurisprudencial, legal e doutrinária, indicar caminhos para utilização dos prazos prescricionais previstos na legislação penal, quando presente lacuna legislativa.

Para melhor explanação do problema, resolvemos utilizar o contexto mineiro como objeto de exame, já que com sua lacuna temos noção clara da questão.

No Estado de Minas Gerais, poucas são as leis que preveem prazos prescricionais para extinção da pretensão punitiva da Administração Pública. No tocante às penas de demissão, percebemos ausência legislativa insidiosa. Podemos utilizar como exemplo a lei 5406, de 16/12/1969, antiga lei orgânica da Polícia Civil, que, em seus 222 artigos, não havia nenhum que dispunha de prazos prescricionais para as punições administrativas. E, mesmo após revogação e substituição desta lei pela nova lei Orgânica da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais – lei complementar 129/2013 – não encontramos sequer menção a prazos prescricionais.

Sabemos, como interessados pelo direito, que ausente lei especial versando sobre o assunto, utiliza-se, no que comportar, lei geral. No caso mineiro, trata-se da lei 869/1952, o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de Minas Gerais. É de se esperar que exista previsão para prazos prescricionais de punições disciplinares nesta norma, todavia o que encontramos é:

“Art. 258. As penas de repreensão, multa e suspensão prescrevem no prazo de dois anos e a de demissão por abandono do cargo, no prazo de quatro anos. ”

A partir deste trecho normativo começaremos a evidenciar a grande divergência interpretativa sobre fim da pretensão punitiva da administração em solo mineiro. Conforme observamos, o presente dispositivo nos indica dois tipos de prazo: de dois anos, para repreensão, multa e suspensão; e de 4 anos, para demissão, por abandono de cargo. Devemos nos ater à segunda previsão legal.

No Estado de Minas Gerais, é de se esperar que se entenda que somente a demissão, por abandono de cargo, possui prazo prescricional definido e, por essa razão, aplicar-se-ia analogicamente o regime jurídico dos servidores públicos civis da União. Entretanto não é este o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Conforme acordão do órgão especial do TJMG:

“A analogia, neste caso, revela-se apropriada, na medida em que a expressão “por abandono de cargo” há de ser entendida como meramente exemplificativa. (TJMG –  Mandado de Segurança 1.0000.12.073900-8/000, Relator (a): Des. (a) Carlos Levenhagen, ÓRGÃO ESPECIAL, julgamento em 24/04/2013, publicação da súmula em 17/05/2013)”

Este entendimento venceu por maioria. Sendo assim, não existindo prazo especial, aplicaríamos o prazo do art. 258 de 4 anos.

Ora, percebemos de imediato que esta interpretação se esquiva de fundamentos consagrados por cortes superiores. O legislador mineiro de forma clara e explícita restringiu a previsão do prazo prescricional para hipóteses de demissão, dispondo somente de norma que previa demissão por abandono de cargo. O entendimento do STJ indica que:

“[…] ante a ausência de previsão legal específica para o reconhecimento   da   prescrição   administrativa intercorrente na legislação do Estado do Paraná, ante a inaplicabilidade dos arts 1º do Decreto 20.910/1932 para este fim, bem como das disposições da Lei 9.873/1999, deve ser afastada a prescrição da multa administrava no caso, já que, em tais situações, o STJ entende caber “a máxima” inclusio unius alterius exclusio, isto é, o que a lei não incluiu é porque desejou excluir, não devendo o intérprete incluí-la” (REsp 685.983/RS, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJ 20/6/2005, p. 228)” .

Vejamos as complexidades daquele entendimento. É notável que a esfera penal e a esfera administrativa não são dependentes. Como corrobora decisão do STF em habeas corpus para anulação do ato de juiz que recebeu a denúncia em ação penal:

“[…] a absolvição em processo administrativo disciplinar não impede a apuração dos mesmos fatos em processo criminal, uma vez que as instâncias penal e administrativa são independentes.[1] [grifo nosso]

Entretanto, conforme disporemos, há situações em que eventos da ceara penal refletem no âmbito de competência administrativa. De acordo com os ensinamentos de José dos Santos Carvalho Filho, para entender a repercussão da decisão penal na esfera administrativa é necessário dividir os crimes entre funcionais e não funcionais. Nos casos dos crimes funcionais, se houver decisão penal condenatória “terá que haver sempre reflexo na esfera da Administração”. E, se a decisão penal for absolutória com afirmação de inexistência do fato ou exclusão de autoria do acusado, “haverá repercussão no âmbito da Administração: significa que esta não poderá punir o servidor pelo fato decidido na esfera criminal”. Além desses casos, se houver condenação superior a quatro anos para crime não funcional na esfera penal, haverá perda do cargo na esfera administrativa.[2] Assim, podemos perceber a dimensão da conexão entre a esfera penal e a esfera administrativa quando as infrações administrativas também são capituladas como crimes.

Logo, de acordo com o que foi exposto, devemos nos perguntar, o prazo prescricional definido genericamente para todos os casos de demissão não colocaria em risco a segurança do jurídica do acusado? Vamos supor que o entendimento exarado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais seja utilizado ao se realizar um Processo Administrativo Disciplinar que versará sobre infração disciplinar que é punida com pena de demissão. Assumiremos também, a título de exemplo, que a infração administrativa analisada no Processo Disciplinar também esteja sendo averiguada, mas no âmbito penal. Devido ao entendimento de que a disposição “por abandono de cargo”, do art. 258 da Lei 869/1952, é meramente exemplificativa, esta infração terá o prazo prescricional de 4 anos no âmbito administrativo, enquanto, digamos, na esfera penal a prescrição esteja calculada em 8 anos. Podemos dizer de imediato que a esfera penal terá mais tempo para analisar o caso. Também podemos afirmar que existe a possibilidade de punição de demissão no âmbito administrativo devido à responsabilização por esta infração que, após algum tempo, com o andamento do longo processo, pode ser constatada falsa no âmbito penal. Por essa razão, percebemos um dos aspectos que indicam a segurança maior para o acusado quando o prazo prescricional para este tipo de infração, na esfera administrativa, é igual ao da legislação penal, pois elementos e fatos que surgirem no processo penal podem ser utilizados para integrar o Processo Administrativo Disciplinar e garantir a ampla defesa.

Ao nos defrontar com este impasse, a solução é buscar em jurisprudências superiores construção interpretativa que possibilite a utilização dos prazos prescricionais da legislação penal nas infrações disciplinares estaduais. Assim, recorremos, inicialmente, a outros julgados do STJ que indicam o entendimento de utilização dos prazos da legislação penal.

Analisamos – não sendo necessário citá-los aqui – julgados do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo, Distrito Federal, Amapá entre outros. Logo, percebemos a orientação do STJ no sentido de, existindo infração administrativa também capitulada como crime, aplica-se a legislação penal para a contagem de prescrição. Entretanto, as jurisprudências analisadasmencionam dispositivos estaduais que preveem a utilização da legislação penal. Em outras palavras, existem nesses Estados normativas que obrigam a utilização dos prazos de prescrição penal nesse tipo de infrações. Conforme decisão do STJ sobre Agravo do Amapá:

“1. Em caso de infração administrativa decorrente da prática de crime, aplica-se o prazo prescricional previsto na legislação penal, contado da data em que o fato se tornou conhecido, conforme os §§ 1º e 2º do art. 158 da Lei Estadual n.º 66/1993, que dispõe sobre o Regime Jurídico dos Servidores Públicos do Estado do Amapá. (AgRg no RMS 27.998/AP, Rel. Min. OG FERNANDES, DJe 15.10.2012).”

Podemos pensar então que a orientação do Superior Tribunal de Justiça pendia para o caminho de que as infrações administrativas também capituladas como crime utilizariam o prazo da legislação penal, somente pela razão das legislações dos respectivos entes, onde as decisões foram tomadas, preverem claramente a aplicação da legislação penal. Pois sabemos que, conforme leciona Carvalho Filho:

“[…] quando se quiser verificar alguma questão sobre a tramitação de processos disciplinares, necessária será a consulta ao estatuto da pessoa federativa que tenha instaurado o respectivo processo disciplinar. Registramos aqui esse fato porque é comum a consulta à Lei nº 8.112/90, o Estatuto dos Servidores Civis da União. Esse diploma, porém, só se aplica aos processos disciplinares relativos aos servidores federais. ”[3]

Por essa razão, nos entes federativos onde houvesse ausência de disposição normativa que indicasse a utilização da legislação penal – como é em Minas Gerais – não estava de todo certo qual prazo prescricional utilizar. Entretanto, este tipo de dúvida pairou somente até 01/02/2017, quando obtivemos resposta no Superior Tribunal de Justiça.

O STJ julgou recurso em mandado de segurança que afirmava prescrição de pretensão punitiva da Administração, com base no entendimento do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais – mencionado acima – conforme verificamos:

“Aduz o recorrente (fls. 244-282, e-STJ):

[…]

Diante desta lacuna ou da falta de clareza na legislação específica, argumentou o Recorrente, no Writ, que o próprio Órgão Especial do Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais já se posicionou no sentido de que a referência ao “abandono de cargo” contida no Art. 258 do Estatuto dos Servidores Públicos Civis de MG (Lei 869/52) é meramente exemplificativa, de modo que se deve aplicar o prazo de quatro anos também para outras hipóteses de demissão na Polícia Civil: Ao final, pleiteia a reforma do acórdão atacado, com a concessão da ordem.”

A partir daí notamos o posicionamento do STJ em relação à utilização do prazo prescricional previsto no Código Penal quando não houver no âmbito do ente federado legislação que regule a utilização daquele diploma. Valendo-se do parecer do Procurador do Estado de Minas Gerais:

“Conforme se depreende da jurisprudência pátria, basta que a conduta (ação/omissão) investigada no processo administrativo disciplinar, por constituir infração disciplinar, também possa ser punida penalmente, pelo fato de tal conduta conformar também um tipo penal, independente de ser o tipo penal equivalente ao “tipo administrativo”.

Portanto, resta clara, na espécie, a aplicação da legislação penal no que tange à fixação do prazo prescricional.

[…]

O prazo prescricional previsto para tais infrações no Artigo 109 do Código Penal, antes de transitar em julgado a sentença (pena em abstrato), é de 8 (oito) anos.

Considerando-se a pena aplicada (art. 299: 1 ano, 4 meses e 15 dias; art. 304: 2 anos e 22 dias), conforme sentença anexa, transitada em julgado em 31 /07/2015, […] o prazo prescricional a ser aplicado será o prazo de 8 (oito) anos, contados da data cm que a Administração tomou conhecimento dos fatos. ”

 

O Superior Tribunal de Justiça então decidiu:

 

“A jurisprudência do STJ, em consonância com o art. 142, § 2º, da Lei 8.112/1990, fixou compreensão de que é o prazo da lei penal que rege a prescrição administrativa sancionatório quando os fatos constituem crime.

Aplica-se, ao caso, a pena de cada crime conforme a legislação penal […]. (RMS 52.646/MG, Rel. Min. MINISTRO HERMAN BENJAMIN, DJ de 01.02.2017). ”

 

Em virtude dos argumentos demonstrados, devemos, a partir de agora, observar que quando houver infração administrativa que seja também capitulada como crime, deve haver aplicação dos prazos prescricionais previstos na legislação penal. Dessa maneira, quando não existir diploma legal específico que regule prazos para findar pretensão punitiva da Administração, aplicaremos o entendimento do STJ e utilizaremos os prazos da esfera penal. Conclui-se também que nos entes federativos que possuírem legislação específica que regule o assunto, mesmo que a legislação estadual preveja prazos prescricionais diferentes, deve-se aplicar os prazos do Código Penal para infrações administrativas que também sejam crime. Assim, mesmo nestes casos, quando não houver sentença penal condenatória, utilizar-se-á a previsão in abstrato. Logo, não é necessária sentença anterior para aplicação do disposto no STJ.

Por fim, admitimos que esta questão complexa gerada pela lacuna legislativa poderia ter sido resolvida de pronto se fosse observado o princípio “inclusio unius alterius exclusio” pelo interprete responsável, tanto da esfera administrativa, quanto da esfera judiciária. Era perceptível a vontade do legislador em não criar os prazos de prescrição para outros casos de demissão no Estado Mineiro, e também era claro que deveríamos aplicar analogia à lei dos servidores federais, por isso utilizamos este ente como exemplo de absenteísmo no legislativo, pois foi a partir de julgamento deste ente que pudemos disponibilizar, no nosso entendimento, a resposta conclusiva: independentemente do que dispõe a legislação do ente específico, aplicar-se-ão os prazos prescricionais previstos no Código Penal para findar a pretensão punitiva da Administração quando as infrações analisadas constituírem também tipos penais.

 

 

 

 

 

 

Autor: Pedro Henrique Colombini Delpino  atua no gabinete da Secretaria de Estado de Casa Civil e de Relações Institucionais de Minas Gerais.


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