1. Processos de integração. Os limites do Mercosul
Três são as experiências mais conhecidas de processos de integração:
a) Zona de Livre Comércio, que objetiva a redução ou extinção de barreiras alfandegárias e de obstáculos (inclusive jurídicos) ao amplo intercâmbio de produtos e serviços. É o caso do NAFTA (Estados Unidos, Canadá e México). Dela pode ser destacada a União Aduaneira, quando se implanta uma tarifa externa comum, situando-a em área fronteiriça com o mercado comum.
b) Mercado Comum, que envolve, além de uma zona de livre comércio (ou união aduaneira), o estabelecimento de estruturas jurídicas comuns para definição de diretrizes e políticas gerais e de solução de conflitos. É o caso do MERCOSUL, segundo o modelo que se pretende alcançar com o Tratado de Assunção, de 1991, e os Protocolos posteriores.
c) Comunidade de Nações, que, além do mercado comum, organiza-se de modo confederativo, com duplo ordenamento jurídico: o da comunidade e os dos direitos internos. É o caso da União Européia, após o Tratado de Maastrich, de 1991.
O Tratado de Assunção, que institui o Mercosul, não vai ao ponto de já estabelecer as condições para a integração que ele anuncia. Constitui muito mais uma intenção de se alcançar esse objetivo, como se vê nos consideranda do Tratado:
Conscientes de que o presente tratado deve ser considerado como um novo avanço no esforço tendente ao desenvolvimento progressivo da integração da América Latina
Tal manifestação significa que o tratado não é suficiente à integração jurídica; outros são seus objetivos imediatos, particularmente criar meios para o mercado comum no âmbito econômico, tais como possibilitar a livre circulação de bens e serviços entre os países. É justamente a circulação de bens e serviços que esbarra na heterogeneidade dos direitos privados internos.
Para um processo com um objetivo tão importante e amplo como é a constituição de um mercado comum, os mecanismos previstos para sua realização estão longe de ser verdadeiramente eficazes e põem de relevo a desconfiança que os Estados têm com a adoção de instrumentos que possam comprometer de alguma forma suas soberanias, segundo a amarga conclusão de uma estudiosa do Mercosul (1).
O Tratado de Assunção estabelece, em seu artigo primeiro, o compromisso dos Estados em harmonizarem suas legislações, nas áreas pertinentes, para lograrem o fortalecimento do processo de integração. A unificação é muito mais que harmonização, pois significa dotar os países envolvidos de legislação igual ou comum, sem divergências ou peculiaridades locais. Nos exemplos das federações, os Estados-membros podem contar com um único Código Civil (caso do Brasil) ou diversos códigos civis estaduais, harmonizados ou não (caso do México). O objetivo da harmonização é mais modesto e, portanto, encerra maior probabilidade de êxito: favorecer a convergência das legislações dos países, em seus princípios e estruturas essenciais, eliminando ao máximo as divergências de soluções adotadas e estabelecendo reciprocidades de tratamento. Na harmonização, as legislações dos países permanecem autônomas.
Ao lado da integração positiva que se dá, principalmente, mediante a harmonização legislativa, cogita-se de integração negativa (2), efetivada pelos tribunais comunitários, que determinam a inaplicação de uma lei nacional que esteja em contradição com uma norma comunitária, segundo o princípio da supremacia desta sobre aquela.
2. Unificação do direito civil na América Latina. O papel da Codificação.
A unificação do direito, ou de determinado ramo do direito, em uma comunidade de nações, é uma etapa mais avançada, que pressupõe a superação de obstáculos que os permanentes processos de integração devem enfrentar.
Quanto ao direito civil na América Latina, a unificação é muito difícil (3), porque nem mesmo as tentativas de unificar o direito privado interno em cada país lograram êxito, inclusive do mais unificável de todos, o direito das obrigações. A luta de Teixeira de Freitas no século passado e a sua honestidade intelectual, ao estancar um projeto de Código Civil que o alçaria à grandeza de um Licurgo ou de um Solon das Américas, foi incompreendida. Para ele, não fazia mais sentido um Código Civil ao lado de um Código Comercial, com tratamento legal diferenciado para situações comuns. De lá para cá, os projetos de reforma do Código Civil intentaram unificar o direito das obrigações, sem sucesso. O atual projeto de Código Civil, que tramita no Congresso Nacional desde 1975, também unifica as legislações civis e mercantis (4).
Apesar das dificuldades para a unificação legislativa do direito privado, em nossa comunidade regional de nações, a investigação mais detida dos códigos levará ao encontro de princípios comuns. Na perspectiva dos grandes sistemas jurídicos (5), os direitos civis na América Latina entroncam-se no sistema romano-germânico, assim nas fontes, como no predomínio das codificações e da doutrina. A tradição jurídica latino-americana está conformada por elementos europeus de mesma raiz histórica e cultural (os povos da Península Ibérica), a que se agregaram costumes indígenas e africanos, o que dá certa peculiaridade aos direitos de nossos povos. A recepção de modelos oriundos do sistema de common law, máxime de certos tipos contratuais, tem sido uniforme, no quadro amplo das trocas internacionais e do processo de globalização, mas não têm modificado a natureza comum do sistema jurídico de países latino-americanos. Outro dado importante foi a recíproca influência dos codificadores, como se deu, por exemplo, com a adoção de partes inteiras do Esboço de Teixeira de Freitas pelo Código Civil Argentino, com repercussões na legislação civil do Uruguai e do Paraguai. Vélez Sársfield, o grande codificador argentino, conhecia e admirava a obra de Teixeira (6). Na perspectiva da harmonização, pode-se afirmar que há um tronco comum no direito civil dos países do Mercosul, que pode ser aprofundado.
Atualmente, as grandes codificações civis estão em crise funcional. Entre os juristas, é crescente a convicção de que cumpriram um papel histórico; todavia, não correspondem mais às exigências de nosso tempo, em acelerada mutação social. No sistema jurídico romano-germânico simbolizaram, no plano legislativo e ao lado do constitucionalismo, a racionalização iluminista da visão de mundo liberal e individualista, em ruptura com o ancien régime. O reinado dos códigos civis permaneceu incontrastável durante o século XIX e boa parte do século XX. Com o advento do Estado social, logo após a primeira grande guerra – e no Brasil com a Constituição de 1934, a primeira a disciplinar a ordem econômica e social – valores coletivos e sociais subtraíram dos códigos civis matérias inteiras, que passaram a constituir objeto de legislações e, até, de direitos autônomos, como: as relações de trabalho, o inquilinato, a habitação, o parcelamento do solo urbano, a propriedade e os contratos agrários, o regime das águas, a desapropriação por interesse social, os direitos autorais, as relações de família, e, por último, as relações de consumo, o meio ambiente e os direitos da criança e do adolescente. Utilizam-se instrumentos legais mais dinâmicos, mais leves e menos cristalizados que os códigos – embora, às vezes, sejam denominados “códigos”, em homenagem à tradição, a exemplo do código do consumidor – dotados de natureza multidisiciplinar. A variedade de problemas que envolve o trato legal dessas matérias não pode estar subsumida nas codificações tradicionais e monotemáticas, pois, quase sempre, além das relações civis, reclamam o disciplinamento integrado e concomitante de variáveis processuais, administrativas e penais. Por outro lado, esses novos direitos são informados necessariamente de dados atualmente irrefutáveis de vários ramos das ciências ou da ética. As minicodificações multidisciplinares são mais adequadas aos processos de unificação ou harmonização.
Sem a unificação legislativa, naquilo que se compreende como normas gerais, não se atingirá o direito comunitário, que é afinal o destino histórico da construção da comunidade das nações americanas, sonho acalentado por Bolivar e tantos outros que não se agrilhoaram aos caudilhismos regionais. O Mercosul não pretende ser apenas um mercado comum, de caráter econômico.
O espaço possível de futura unificação do direito civil é, induvidosamente, o das obrigações, em particular dos contratos. Não se trata de unificação científica dos ramos do direito, mas unificação naquilo que é comum, notadamente na teoria geral dos contratos, sejam eles civis ou mercantis. Os obstáculos são imensos para a unificação do direito de família, das relações de propriedade e das sucessões, que são vincados em profundas tradições de cada povo.
3. Harmonização do direito
A harmonização é processo diferenciado e mais limitado que a unificação jurídica. A unificação completa pressupõe a conversão das comunidades de nações em verdadeira federação, com predomínio do união sobre as unidades federadas. A harmonização é mais indicada aos processos de integração que envolve convivência de variados direitos nacionais, assim nas zonas de livre comércio como nos mercados comuns e comunidades confederativas. A harmonização busca estabelecer princípios e normas gerais consensualmente adotados, convivendo com a legislação própria de cada país. A harmonização vai além do direito legislado; envolve, por exemplo, a jurisprudência dos tribunais, a construção doutrinária, a afirmação de pontos de vistas comuns.
A coexistência de legislações com princípios fundamentais divergentes é obstáculo muito difícil ao intercâmbio entre pessoas de países diversos. Não faz sentido que os países da América Latina, com tradições culturais e jurídicas comuns, não procurem harmonizar suas legislações, em pontos substanciais, sem prejuízo de suas peculiaridades. Há um traço cultural muito difícil de ser superado, na formação dos juristas latinos americanos: nossas referências são européias, e o conhecimento do direito e da experiência jurídica entre os vizinhos não é direto, dando-se pela mediação do direito europeu. É mais fácil lermos e estudarmos os códigos civis e autores europeus, que os da América Latina. Há razões históricas e de dominação das nações centrais, que não podem ser aprofundadas neste estudo. O Mercosul tem sido um marco nesta viragem, na medida que as relações entre nossos povos e os direitos nacionais se intensificam. No campo específico do direito civil é longo o distanciamento que há de ser vencido.
O intercâmbio entre os juristas latino-americanos impõe-se como requisito necessário de harmonização dos vários direitos nacionais, com especial relevo entre os que se dedicam ao direito civil. Não faz sentido que os conflitos humanos comuns e as relações entre as pessoas, campo temático do direito civil, sejam tratados de modo substancialmente contraditório.
4. Um caso exemplar de harmonização possível: o direito do consumidor
Um exemplo animador de perspectivas efetivas de harmonização, é o direito do consumidor. O direito do consumidor construiu sua autonomia, ante a insuficiência do direito comum dos contratos e da responsabilidade civil. A natureza, os problemas e as soluções das relações de consumo na Argentina, no Brasil ou no Uruguai são em tudo assemelhados, aprofundando-se a identidade com a progressiva globalização da economia. Os princípios gerais são os mesmos em qualquer quadrante do mundo. O código brasileiro, de 1990, terminou por ser referência à legislação dos países integrantes do Mercosul. O código da Argentina, de 1993, é muito próximo ao brasileiro, podendo-se afirmar que atendem aos critérios de harmonização. A legislação de consumo em elaboração, no Paraguai e no Uruguai, a eles se aproximam. Muito contribuiu o intercâmbio cultural e científico entre os juristas de ambos os países, que se aprofundou nesses últimos anos.
O Código do Consumidor é uma regulação muito ampla das relações negociais civis, deixando pouco espaço ao direito comum das obrigações previsto no Código Civil. Todas as pessoas diuturnamente demandam produtos e serviços, para o atendimento a suas necessidades reais ou induzidas pela publicidade. Fazem-no contatando fornecedores grandes ou pequenos, ou seja, aqueles que desenvolvem atividades de produção, importação ou distribuição desses produtos ou serviços. As relações negociais com um não fornecedor (atos isolados, sem conexão com atividade), a saber, com pessoas comuns que não exerçam essas atividades em caráter permanente, são numericamente reduzidas, o que comprimiu drasticamente o campo de aplicação do direito comum das obrigações.
Um exemplo de harmonização, entre as leis brasileira e argentina de proteção ao consumidor, é a regra substancial de interpretação, que ambas adotam. Ao contrário da regra de interpretação que manda sacar sentido da intenção íntima ou declarada das partes (contratos de direito comum), a regra básica de interpretação nos contratos de consumo, nos direitos argentino e brasileiro, é objetiva e típica, porque o sentido será sempre aquele que favoreça o consumidor médio do produto ou serviço fornecido, sobretudo quando se tratar de contrato de adesão a condições gerais (interpretatio contra stipulatorem).
As mesmas leis que se harmonizam, desarmonizam-se em outro ponto. Refiro-me à responsabilidade por vícios do produto ou do serviço. O nosso código prevê a responsabilidade por vícios aparentes, indo além da tradição romanística dos vícios ocultos. Na lei argentina, o artigo simétrico que a previa foi vetado pelo Poder Executivo. Se o consumidor brasileiro adquirir diretamente um produto de empresa argentina, com vício aparente, não estará protegido. Contudo, se o consumidor argentino adquirir o produto de empresa brasileira, poderá valer-se da tutela do código de consumidor brasileiro, que prevê expressamente a responsabilidade do fornecedor por vício aparente. Essa é uma dificuldade que há de ser vencida por um processo intenso de harmonização das leis de nossos países.
Para o civilista é muito difícil cogitar de um direito supranacional. O direito civil sempre foi pensado como a expressão dos valores do homem comum, ou, para muitos, do grupo dominante de determinada sociedade em determinado espaço social, em suma, do direito interno. No Brasil, o estudo da inserção do direito nacional nos grandes sistemas jurídicos sempre foi negligenciado pelos cursos de direito. A atitude dos juristas teóricos e práticos é outro grande obstáculo à harmonização.
5. Harmonização legislativa no Mercosul
No estágio em se encontra, o Mercosul, ainda longe de constituir uma comunidade de nações, ressente-se de instrumentos eficazes de harmonização. A Comunidade Européia vale-se de diretivas, emanadas de seus organismos decisórios, que estabelecem princípios e normas comuns a serem observadas pelas legislações nacionais sobre matérias determinadas. As diretivas não vinculam diretamente os sujeitos de cada Estado mas vinculam os legisladores, quando da formulação de seus direitos internos, nos pontos fundamentais que definam. Não são tratados ou convenções, pois estes celebram-se sem limitação de qualquer espécie das soberanias nacionais, sob a égide do direito internacional público.
A experiência européia demonstrou que o principal elemento de harmonização, ao lado das diretivas, tem sido o importante papel desempenhado pelos tribunais comunitários. Sua forte presença tem evitado que o direito comunitário se disperse nas variadas interpretações dos tribunais de cada país.
O Tratado do Mercosul (artigo 9) contempla apenas dois órgãos para tomada de decisões: a) o Conselho do Mercado Comum, composto dos ministros das relações exteriores e de economia, para condução política do mercado comum; b) o Grupo Mercado Comum, com funções executivas. Não há previsão para um parlamento e tribunais comuns. O artigo 24 prevê uma Comissão Parlamentar Conjunta, sem função legislativa ou decisória. (7) A Decisão nº 1/94 do Conselho do Mercado Comum, convertida no Protocolo de Buenos Aires sobre Jurisdição Internacional em Matéria Contratual, exprime a necessidade de harmonizar as legislações dos quatro países e as decisões judiciais e arbitrais relativas aos contratos internacionais de natureza civil ou comercial celebrados entre particulares. Seus preceitos limitam-se às regras de conexão quanto ao direito nacional aplicável e à competência dos tribunais. As limitações do Mercosul estampam-se nas exclusões que o Protocolo enuncia (artigo 2), pois não abrange todos os contratos internacionais entre particulares, ficando de fora aqueles que tenham por objeto acordos sobre relações de família, sucessões, seguridade social, trabalho, venda ao consumidor, transporte, seguro e direitos reais, dentre outros. A exclusão mais grave é as dos contratos de consumo (8). Afinal, os processos de integração estimulam o consumo mediante contratos internacionais.
6. Conflito espacial de leis civis
Com relação ao conflito espacial das leis civis, não se avançou muito, desde o Código Bustamente, de 1928, aprovado na VI Conferência Panamericana e ratificado por vários países, dentre eles o Brasil (com reservas), mas com ausência da Argentina, Paraguai e Uruguai. O mínimo que se espera é que haja harmonização nesse campo, sob pena de bloquear qualquer processo de integração. Há soluções divergentes nos próprios países do Mercosul, no que concerne às regras de conexão aplicáveis ao direito civil.
No Brasil, vigora a Lei de Introdução ao Código Civil, de 1942. Tramita no Congresso Nacional, o Projeto de lei nº 4.095/95 sobre Aplicação das Normas Jurídicas, oriundo do Poder Executivo, que a substituirá. No que concerne às obrigações contratuais, o projeto opta pelo princípio da autonomia da vontade na escolha do direito aplicável, previsto na Convenção Interamericana sobre Direito Aplicável às Obrigações Contratuais, de 1994, subscrita pelo Brasil, mediante o qual as partes (particulares) do contrato internacional podem escolher o direito do país de uma delas ou mesmo de país estranho ao lugar da conclusão ou da execução.
O Protocolo de Buenos Aires apenas cuidou do foro contratual ou da jurisdição competente, mas não do direito aplicável. Mesmo nesse campo, o projeto vai mais longe, porque faz prevalecer o direito do país onde haja os vínculos mais estreitos do contrato. Para um contrato celebrado na Argentina com um contratante paraguaio e executado no Brasil, qual o direito aplicável? O dos vínculos mais estreitos, que não se confundem com o da constituição ou da execução, porque pode haver vários locais de execução. Por outro lado – e isso é muito importante – os contratos relativos a bens observarão a forma da lei de origem da sua celebração e não mais ficarão sujeitos, como determina o artigo 9º da Lei de Introdução, às normas do direito interno brasileiro. Do mesmo modo, na questão relativa às obrigações por atos ilícitos, prevalecerá o vínculo mais estreito, porque o dano pode ter acontecido em um país, mas se fez sentir em outro, como no caso de difamação por órgãos de imprensa (por exemplo, uma notícia veiculada pela imprensa do país “A” pode afetar a honra de pessoa domiciliada no país “B”).
A rigor, no âmbito do direito internacional privado, é imprescindível que se persiga a unificação, muito mais que a harmonização. Um dos meios de unificação pode ser a elaboração de leis-tipo ou códigos-tipo, que venham a ser adotadas pelos países da Comunidade.
No âmbito mundial, há de se referir às tarefas desenvolvidas pelo Instituto para Unificação do Direito Privado (UNIDROIT), com sede em Roma, fundado em 1926 como órgão auxiliar da Liga das Nações. O artigo 1º de seu Estatuto dispõe como finalidade o exame de modos de harmonização e coordenação dos direitos privados dos Estados, contribuindo para adoção por eles de direitos uniformes. O UNIDROIT conta com a adesão da Argentina e do Uruguai, dentre os membros do Mercosul. Sua influência tem sido mais incisiva no campo dos contratos comerciais internacionais. É interessante observar que os especialistas (9) entendem que a unificação ou harmonização podem ser melhor alcançadas por meio de iniciativas indutoras, de modo a superar as resistências nacionais, envolvendo governos, organizações não-governamentais, empresários, profissionais e acadêmicos, na definição dos princípios gerais e na elaboração dos textos recomendáveis.
Com respeito à uniformização de regras sobre conflitos de leis, a Conferência de Haia sobre Direito Internacional Privado vem produzindo um número considerável de convenções, inclusive a Convenção sobre Reconhecimento de Divórcio e Separação Legal (1970), a Convenção sobre Provas em Matérias Civis e Comercais (1970) e a Convenção sobre Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças (1980).
7. À guisa de conclusão
Ainda é prematuro falar-se em direito comunitário latino-americano, sobretudo no âmbito do direito civil, mas a integração de nossos países parece ser inevitável, porque o “movimento geral da história nos leva a formas de associação política e econômica regionais e continentais” (10). Pode-se, todavia, falar-se em direito comunitário germinal, in fieri, porque a integração econômica e política não se poderá alcançar sem a integração jurídica, com ênfase nos processos de harmonização e unificação do direito.
O passo mais importante será o estabelecimento de órgãos comunitários que sejam dotados de competências supranacionais, para a) que suas diretrizes tenham força normativa geral e suficiente (integração positiva) e b) que possam ser aplicadas por tribunais próprios, cujas decisões tenham efeito vinculante (integração negativa). Para tanto, será necessário que se vençam as relutâncias e resistências dos governos a organismos e direito verdadeiramente supranacionais, salvo se o Mercosul estancar nas fases iniciais de estruturas meramente cooperativas, o que frustará os processos de integração.
Para o Brasil, a integração latino-americana é mandamento constitucional, eleita como foi a princípio estruturante. Com efeito, diz o Parágrafo Único do artigo 4º da Constituição brasileira:
A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.
Como se vê, a Constituição quer muito mais que um mercado comum de caráter econômico. A transferência de competências para organismos supranacionais nela já encontra fundamento. Contudo, e isso é um sério obstáculo, a jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal é hostil aos processos de integração, porque faz subordinar os tratados e convenções internacionais ao controle de constitucionalidade interno, inclusive o difuso.
São, portanto, oportunas as recomendações finais do I Congresso Internacional de Direito Comunitário, que se realizou em Ouro Preto, no mês de setembro de 1996, que fazemos nossas para concluir:
I – Adequação das normas constitucionais dos Estados Membros a fim de se assegurar a supremacia do Direito Comunitário.
II – Incorporação, ao Tratado de Assunção, de um preceito expresso consagrador da regra da supremacia do Direito Comunitário sobre os Direitos Nacionais.
III – Aplicação direta e imediata das normas comunitárias pelos órgãos jurisdicionais e autoridades nacionais.
IV – Criação e instalação de uma Corte de Justiça Supranacional para aplicação, interpretação e unificação jurisprudencial de Direito Comunitário.
NOTAS
1. Cf. Martha Lucía Olivar Jimenez, La Comprensión del Concepto de Derecho Comunitario para una Verdadera Integración en el Cono Sur, in Mercosul: seus Efeitos Jurídicos, Econômicos e Políticos nos Estados-membros, Maristela Basso (Org.), Porto Alegre, Liv. Do Advogado, 1995, p. 51.
2. Cf. Aída Kemelmajer de Carlucci, Nuevamente Sobre el Juiz Nacional Frente ao Derecho Comunitário, La Ley, Buenos Aires, ano LXI, nº 131, julio 1997, p. 2.
3. O marco inicial das tentativas foi o Congresso do Panamá, de 1826, convocado por Bolívar.
4. Entre os países do Mercosul, o Código Civil do Paraguai, com vigência a partir de 1987, unificou o direito das obrigações. Na Argentina, o Código Civil aprovado pelo Congresso foi vetado pelo Executivo, em 1991, mas outras iniciativas legislativas continuam tramitando no mesmo sentido da unificação.
5. Adotamos a classificação de René David , in Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneos, trad. Hermínio A Carvalho, Lisboa, Ed. Meridiano, 1978.
6. Ao Esboço de Teixeira de Freitas (1856), seguiu-se o Código Civil argentino de 1869, projetado por Vélez Sársfield. Outra grande influência convergente foi o Código Civil chileno, redigido por Andrés Bello (1855). O Código Civil uruguaio recolheu influências desses três grandes codificadores. O Código paraguaio, de 1986-7, mantém as linhas básicas do Código de 1876, que reproduziu textualmente o Código argentino.
7. O Protocolo de Ouro Preto, de 1994, criou ainda a Comissão de Comércio do Mercosul (com poderes de decisão no seu âmbito), o Foro Consultivo Econômico-Social e a Secretaria Administrativa do Mercosul. São, no entanto, órgãos auxiliares. O artigo 25 do Protocolo prevê que a Comissão Parlamentar Conjunta “coadjuvará na harmonização de legislações, tal como requerido pelo avanço do processo de integração”.
8. Contudo, o Conselho do Mercado Comum aprovou o “Programa de Ação do Mercosul até o ano 2000”, incluindo a tarefa de “concluir e implementar o Regulamento Comum de Defesa do Consumidor, marco que deverá garantir os direitos do consumidor, no espaço econômico ampliado, sem constituir obstáculos desnecessários ao comércio” (Boletim de Integração Latino-americano, nº 17, dez. 1995, p. 26-33). De qualquer forma, várias decisões e resoluções do Conselho do Mercado Comum e do Grupo Mercado Comum, desde 1992, têm tutelado o consumidor, em situações determinadas.
9. Cf. Alan D. Rose, The Challengers for Uniform Law in the Twenty-First Century, Uniform Law Review, 1996/1, p. 18.
10. Octavio Paz, apud Alejandro M. Garro, Armonizacion y unificacion del derecho privado en America Latina: esfuerzos, tendencias y realidades, Revista de Direito Civil, S. Paulo, 7ª, nº 65, jul.set. 1993, p. 74.
* Paulo Luiz Netto Lôbo
Doutor em Direito e professor da UFAL e da UFPE (pós-graduação)