A Constituição Federal, na primeira parte do inciso X do seu art. 5º, assegura às pessoas o direito à privacidade e à intimidade, direito esse inserido no campo da dignidade humana. Até o advento do novo Código Civil, esse dispositivo não tinha regulamentação legal.
Em agosto de 2002, a Secretaria de Direito Econômico (SDE) do Ministério da Justiça, editou a Portaria nº 05, publicada no DOU de 28.08.2002, ampliando o leque de cláusulas abusivas que diz ferirem direitos de consumidores de produtos e serviços, para considerar abusiva, conforme o art. 1º, a cláusula que: (I) autorize o envio do nome do consumidor, e/ou seus garantes, a bancos de dados e cadastros de consumidores, sem comprovada notificação prévia; (II) imponha ao consumidor, nos contratos de adesão, a obrigação de manifestar-se contra a transferência, onerosa ou não, para terceiros, dos dados cadastrais confiados ao fornecedor; (III) autorize o fornecedor a investigar a vida privada do consumidor; (IV) imponha em contratos de seguro-saúde, firmados anteriormente à Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, limite temporal para internação hospitalar; e (V) prescreva, em contrato de plano de saúde ou seguro-saúde, a não cobertura de doenças de notificação compulsória. Este artigo abordará, de forma passageira, os três primeiros incisos, em face do ordenamento legal vigente.
O Decreto nº 2.181/97 (Regulamento do CDC) estabelece, no art. 56, que “na forma do artigo 51 da Lei nº 8.078, de 1990 (CDC), e com o objetivo de orientar o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, a Secretaria de Direito Econômico divulgará, anualmente, elenco complementar de cláusulas contratuais consideradas abusivas, notadamente para o fim de aplicação do disposto no inciso IV do artigo 22 deste Decreto.”
Portanto, as Portarias da SDE do MJ são o meio idôneo para aditar o elenco de cláusulas abusivas do mesmo Decreto (que regulamenta o CDC).
No que tange à Portaria SDE nº 05, de 27.08.2002 [1], merecem uma atenção especial por parte das empresas voltadas para o fornecimento de produtos e serviços na área de Tecnologia da Informação os incisos I, II e III do art. 1º.
Quanto ao inciso I, é importante salientar que a jurisprudência e a doutrina já haviam consagrado o entendimento, em torno do art. 43 do Código de Defesa do Consumidor, no sentido de que a “negativação” do nome do consumidor ou seu garante em cadastro de inadimplentes deveria ser antecedida da devida comunicação, até mesmo para possibilitar a oportunidade de adimplemento ou discussão do valor do débito, até porque o consumidor esquecido, por assim dizer, tem o direito de saber que deve e o quanto deve.
Com isso, a Portaria apenas “positivou”, ou seja, transformou em texto legal, o entendimento já consagrado. Mas essa positivação tende a dar nova feição às relações consumeiristas, pelo que não resta dúvida de que deve ser feita a prova inequívoca da notificação prévia ao consumidor. O “A.R.”, ou Aviso de Recebimento, é o meio idôneo de comprovação, quando se tratar de correspondência epistolar.
Os meios eletrônicas podem facilitar o processo de comunicação ou notificação ao consumidor inadimplente. Mas, como ainda encontra-se em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Comércio Eletrônico, não há ainda uma forma imperativa legal de regulamentação das transações nos meios eletrônicos. Apesar da lacuna legal, é importante salientar que, de fato, observam-se no comércio eletrônico a realização de transações seguras. O Código Civil não cuidou, nem tampouco deveria fazê-lo, pois a regulamentação específica deve integrar o microssistema jurídico “Direito de Informática”.
O Projeto de Lei do Comércio Eletrônico prevê expressamente que na contratação eletrônica de produtos, serviços e informações, o consumidor pode notificar eletronicamente o fornecedor. Conforme o § 1º do art. 32 do PLCE, os ofertantes deverão, no mesmo espaço que serviu para a exibição da oferta (no estabelecimento virtual), colocar à disposição dos consumidores área específica, de fácil identificação, que permita o armazenamento das notificações ou intimações, com a respectiva data de envio, para eventual comprovação. Já o § 2º estabelece que o ofertante deverá transmitir uma resposta automática aos pedidos, mensagens, notificações e intimações que lhe forem enviados eletronicamente, comprovando o recebimento.
Poderia o leigo imaginar que, em razão de o PLCE não haver tratado das notificações do fornecedor ao consumidor, a lógica e o bom senso mandariam que estas ocorressem pelo mesmo meio que a resposta automática aos pedidos, enviada pelo fornecedor ao consumidor. Mas a recíproca não é verdadeira, seja porque: a) não é possível assegurar que o consumidor tenha sido notificado eletronicamente de sua inadimplência, salvo se ele, voluntariamente, confirmar o recebimento da mensagem; e b) a regra geral é de que o consumidor não dispõe de uma página na Internet, que permita o armazenamento das notificações ou intimações feitas pelos fornecedores. Portanto, o fornecedor deve notificar o consumidor por carta, com A.R., seja agora, seja após a aprovação do PLCE.
Em relação ao inciso II, que cuida de bancos de dados, o mundo se divide em duas correntes, no que tange à privacidade dos dados dos consumidores: EUA e Europa.
De acordo com a primeira corrente, a regra padrão é a da possibilidade de comercialização das informações cadastrais, desde que não haja oposição do consumidor. Nessa hipótese, a “desautorização” tem que ser expressa.
Já no segundo caso, a comercialização só é possível se o consumidor autorizar expressamente. O dispositivo da Portaria, por via indireta, regulamenta o inciso X do art. 5º da Constituição Federal, que versa sobre o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem das pessoas.
O dispositivo abraça a corrente européia quanto ao tratamento dos dados privados. O fato repercute na esfera das empresas que possuem bancos de dados de consumidores, na medida em que:
a) para comercializar informações cadastrais de seus consumidores, nos contratos de adesão, estes devem passar a adotar uma cláusula expressa de autorização para a transferência dos dados cadastrais a ela confiados; e
b) mesmo que o consumidor não adira a essa cláusula, não pode haver recusa no fornecimento do serviço ou do produto pelo fato da não aderência.
Esse dispositivo, mais do que limitar o direito do comerciante de vender os bancos de dados com as informações que possui, visa preservar um valor maior, que é a dignidade da pessoa humana, com repercussões na liberdade individual e na segurança social.
Já o inciso III guarda pertinência com o inciso II e com os preceitos constitucionais citados acima, na medida em que objetiva evitar a banalização da devassa da intimidade e da privacidade da pessoa humana. Cada um destes dois últimos incisos “fecha uma porta” para a possibilidade de ferimento a esses direitos fundamentais. Em conjunto, sua repercussão não é meramente aritmética, alcançando escala geométrica.
Por último, mas não menos importante, o novo Código Civil, trouxe um avanço importante para nosso ordenamento jurídico a respeito da privacidade. Antes disso, não havia norma de hierarquia superior que regulamentasse a primeira parte do inciso X do art. 5º da Carta Magna. Segundo o art. 21 do CC, a vida privada da pessoa natural é inviolável, podendo esta requerer judicialmente as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato que a viole, fato que reforça os preceitos da portaria em comento.
Irônico é o cenário atual em nosso país, em que convivem normas avançadas como o art. 21 do CC, regulamentando preceito fundamental que versa sobre a privacidade e a Portaria SDE nº 05/2002, de um lado, e do outro a retrógrada Lei nº 9.454/97, que institui o número único de registro de identidade civil, pelo qual todos os cidadãos brasileiros, natos ou naturalizados, serão identificados em todas as suas relações com a sociedade e com os organismos governamentais e privados. Esta última ainda não foi regulamentada.
O “número único” implica na vigilância permanente das pessoas pelo Poder Público, implica no acompanhamento integral de todos os passos das pessoas, desde uma pequena compra com cartão de crédito a viagens ao exterior. Esse fato traz a lume a dicotomia entre valores relevantes a serem preservados – a liberdade e a segurança -, um dos quais a sociedade deve eleger como mais importante. Todavia, a referida controvérsia não é objeto deste trabalho.
Iniciativas de outros países visando a instituição de um “número único” não têm sido aprovadas, a exemplo do que ocorreu na Inglaterra em fevereiro próximo passado, em que a Comissão de Informação [2]opinou contrariamente à adoção de um cartão de registro geral digital, segundo declarou Richard Thomas, membro da Comissão, porque “as propostas são ‘tão complexas e engenhosamente escritas que fica impossível confirmar se a proteção aos dados e privacidade estão realmente garantidas’. ‘A proposta ainda tem uma série de questões que devem ser respondidas, caso o projeto realmente deseje encontrar proteção legal’.”
O Código Civil e a lei do “número único” são normas de mesmo grau hierárquico. O CC é posterior. Pelas regras de hermenêutica, a norma posterior revoga a anterior. Mas a norma específica há que prevalecer sobre a geral. Cumpre ao intérprete da lei esclarecer à sociedade o alcance da Lei nº 9.454/97, se ela há que prevalecer diante do Estatuto Civil.
Por todo o exposto, é de se concluir que a Portaria SDE Nº 05/2002 é uma norma em sintonia com a Constituição Federal, com o novo Código Civil e com o Código de Defesa do Consumidor, sendo, portanto, legal e constitucional. Abusos contra seus preceitos devem ser estancados. O consumidor, antes de tudo, deve ter a consciência de sua cidadania, e que esta implica em direitos e obrigações, dentre as quais a de não litigar de má-fé, nem fomentar temerariamente a “indústria do dano moral.”
Notas
1 – Disponível na Internet: http://www.mj.gov.br/dpdc/servicos/legislacao.htm (acessado em 27.04.2003)
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2 – IDGNOW. Comissão inglesa não aprova RG digital. Quinta-feira, 13 de Fevereiro de 2003 – 14h48. Localizado no sítio: http://idgnow.terra.com.br/idgnow/internet/2003/02/0031 (acessado em 27.04.2003)
Eurípedes Brito Cunha Júnior é professor de Direito de Informática da Universidade Católica do Salvador, presidente do IBDI – Instituto Brasileiro de Política e Direito de Informática, membro da Comissão de Informática do Conselho Federal da OAB, conselheiro da OAB/BA, advogado militante e sócio-fundador do escritório Brito Cunha Advogados Associados em Salvador, Bahia.